O SEGUNDO JOGO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Experiências passadas mostram que o segundo turno em eleição majoritária não é apenas etapa de um jogo não acabado, porque, para que ela se defina, é indispensável a interferência de alguns fatores até então imperceptíveis. No caso que resultou das urnas de domingo o primeiro dado a considerar é que temos um candidato, Lula, em primeiro lugar, partindo com a vantagem de cinco pontos favoráveis, números que, mesmo sendo modestos, permitem a seus seguidores lembrar a tradição de que a dianteira ilumina a caminhada para os próximos 30 dias.

Mas parece haver algo mais a despertar atenção, contribuindo para tornar interessante a eleição na última semana do mês. A começar que o favoritismo do candidato do PT é o único número objetivo para avaliação imediata, e não se pode confiar totalmente nos institutos que promovem pesquisas. Foram os grandes derrotados de domingo. Perderam boa parte da credibilidade, quando insistiram em largas vantagens para o mais votado; e apenas a Paraná aproximou-se da realidade, prevendo diferença de 6,3%. Sendo por defasagem nos critérios de aferição, metodologia superada, má fé na interpretação dos números, fato é que ingressaram na crise de credibilidade. O que esperar deles e delas no segundo turno?

(Da herança do primeiro turno não escapa uma preocupação, que resulta do fato de estarem em confronto os dois mais votados, mas com certa singularidade, dessas que conseguimos elaborar no Brasil. É que os dois preferidos são também os mais rejeitados, desmentindo o que seria justo esperar da racionalidade. Virtudes e defeitos igualados. Os eleitores, ontem frustrados ou não, mergulham agora num oceano em que seu título tem a responsabilidade de salvar o que lhe parecer menos ruim. O que preocupa quanto às consequências. Porque o menos ruim não deixa de ser ruim. Quem já se preocupava com isso, anulou ou votou em branco; mas nesse caso nada mais fez que ajudar, indiretamente, a quem reunia maiores chances de ser o primeiro no pódio).

Outro fator que tem potencial para influir decisivamente – e não será demais creditar a ele importância maior – é a força dos governadores eleitos ou reeleitos, porque, acabando de ganhar quatro anos de poder em seus estados, podem ser decisivos e alterar os números de qualquer placar. Em Minas, onde o colégio eleitoral, segundo as pesquisas prometiam, Lula sairia com grande vantagem, tal não aconteceu; e Romeu Zema, governador reeleito, já antecipou apoio a Bolsonaro. De fato, nos estados, quando se elege o executivo, a correlação de forças tende a se acentuar em torno dele. É uma reflexão que permite esperar que no Nordeste os ventos continuem favoráveis ao candidato do PT. Porém, neste outubro, como nos outubros passados, o fiel da balança deve estar com os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas. E, logo depois, Paraná e Rio Grande.

Para a arrancada definitiva, que começa agora, também há situações que podem embalar a caminhada de Bolsonaro, como o fato de seu partido, PL, ter conquistado maioria na próxima legislatura federal, com 99 deputados, contra 76 petistas, além da garantia de bancada expressiva no Senado. O que não é pouco. (Ainda fica por explicar algo interessante. Com oito de seus ex-ministros eleitos, com a caneta na mão, maioria legislativa, a simpatia de poderosos governadores bolsonaristas bem sucedidos, por que Bolsonaro não se saiu melhor? O que diferenciou nas urnas o criador e suas criaturas?)

Sem que esqueçamos uma grande interrogação que fica no ar. Não havia quem a explicasse com segurança antes do domingo; muito menos agora. O fenômeno da abstenção, que chegou a 20,9%, a mais alta em duas décadas. Nada menos de 32 milhões deram as costas às urnas, desinteressando-se, porque os candidatos favoritos eram exatamente os campeões em rejeição?. E agora, no segundo tempo decisivo do jogo, os indiferentes estariam mais animados a participar? Lula e Bolsonaro terão discurso para atraí-los?

Tudo para confirmar, em nome da democracia autenticamente representada, a virtude do segundo turno, que vai ser reeditado neste ano, graças a uma sensível divisão dos votos que caíram nas urnas. Esperava-se esse desfecho, como resultado e consequência da radicalização a que se assistiu na disputa pela Presidência da República. Como esperar algo diferente?, se toda radicalização costuma ser divisor parcimonioso. Não podia ser outra coisa da ferrenha batalha em que se engalfinharam Bolsonaro e Lula.

Já se disse, e o momento autoriza repetir, que a segunda votação, como vai acontecer, tem o primeiro ponto positivo na reintegração, no colégio eleitoral, dos que votaram em Ciro, Simone, D’Ávila, Péricles, Eymael, Kelmon, Soraya e Verá Lúcia. Serão chamados a ajudar a escolher o nome do governante. Para eles, se se desfez o sonho que no domingo levaram às urnas, nem por isso devem estar excluídos. A eleição, no embate inicial, tem o condão de dar aos eleitores minoritários o direito de votar com o coração, condenados a ficar nos poucos por cento, a sonhar o sonho impossível. Não dispensam o direito de continuar participando.

 
Caminho das pedras

Um balancete sobre o que ficou da disputa presidencial revela duas realidades imediatas, contra as quais não parece ser possível obstar. A primeira é que milhões de brasileiros foram levados às urnas como se fossem plateia de um ringue onde se defrontavam poderosos brigões, depois de terem esgotado seus tempos de propaganda com poucos resultados propositivos; ou se dedicaram aos empurrões e cotoveladas, trocaram cobranças, não propriamente sobre o que estavam a pretender, mas o que fizeram ou deixaram de fazer no passado. Esse cenário, como coisas mortas, assemelhou -se a um réquiem em câmara ardente.

Mas, a despeito disso, é interessante frisar que não havia como contrapor desconfianças e divergências essenciais, quando os candidatos abriam parênteses nos ataques para enunciar milagres, boas e maravilhosas intenções. Bem pensando, mesmo que em fantasia, o eleitor que viu e ouviu os debates não teria escolha: impossível ficar contra todas as belas coisas prometidas, a redução dos impostos, o fim do desemprego, a extinção da criminalidade, o ensino para todos, moradia social. E, em breves 12 meses, a heroica façanha de vencer a fome. Diante de tamanhas proezas, a se realizarem em um único mandato, o eleitor tinha direito de, por amor à pátria, sentir-se tentado a votar em todos os candidatos de uma só vez…

Aí vem a grande e aterradora questão a ser avaliada para o segundo turno. Sendo inquestionável a excelência das promessas, devem os candidatos mostrar o caminho das pedras, isto é, a miraculosa cartola de onde tirar os coelhos fantásticos. Como despertar do sonho, avançar do ideal para o real?. Não disseram como. Que o digam agora, sem ignorar dados objetivos sobre a execução dos projetos; como desenterrar as complicadas ferramentas institucionais para livrar as ideias do cativeiro das pranchetas e dos diagnósticos.

No domingo o colégio eleitoral desembarcou nas seções de votação vastamente informado sobre corrupção, quadrilhas de ladrões e bilionários traficantes de influências políticas. Certamente precisava saber de mazelas passadas e presentes, porque, se para qualquer função pública exige-se o currículo e mostrar as coisas realizadas, o passado político tem de ser igualmente exposto. Mas, com igual interesse, o eleitor precisava ser informado sobre as receitas que os candidatos têm para curar os nossos males diagnosticados. Não pode faltar isso. O velho caminho das pedras, porque sem ele não é possível flutuar em águas que têm se mostrado profundas e ameaçadoras.

WILSON CID ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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