Em 2013, depois de assistir a quase 1.600 enterros de políticos e personalidades da vida brasileira, Jaime Dias Sabino, o mais famoso “papagaio de pirata” brasileiro, morria no Rio de Janeiro, pouco antes de completar 84 anos. Você, caro leitor, pode não estar ligando o nome à pessoa (uma foto pode ajudar a relembrar a figura), que não só ia a enterros e velórios de personalidades, mas batia ponto na Cinelândia e no Largo da Carioca para surgir ao fundo de qualquer entrevista dos telejornais da Rede Globo e demais emissoras no Centro do Rio. Baiano de Feira de Santana, figurante do filme “O Assalto ao Trem Pagador”, de Roberto Farias, quando atuou como barbeiro de “Tião Medonho”, ele tomou gosto pela tela. Funcionário público, com horário disponível, “Jaiminho”, como era conhecido, quando a ocasião era mais solene, caprichava no visual: passava uma nova tintura no cabelo e escolhia uma das 200 gravatas para combinar com um dos 150 ternos (preferia os escuros para as cerimônias fúnebres; nas tomadas de rua comparecia com tons mais claros). Em sua casa foram encontradas mais de 20 mil fotografias com registros de suas participações. O curta-metragem “Truques, xaropes e outros artigos de confiança”, de Eduardo Goldenstein, conta um pouco de sua trajetória. Nos tempos das redes sociais, Jaiminho seria uma celebridade.
Quem sabe não fosse induzido a fazer uma aparição até o último ato do velório da Rainha Elizabeth II – o funeral de Estado, na Abadia de Westminster, em Londres. No lugar de Jaiminho, representando o Brasil, estará o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Ele que, quando as vítimas da pandemia da Covid-19 se avolumavam em 2020, exclamou um “E daí, não sou coveiro…” – mais de 685 mortes oficiais depois, que levariam “Jaiminho” à exaustão, tantos foram os políticos e famosos abatidos pelo coronavírus e suas variantes, à falta de vacinas -, como presidente em campanha e até aqui atrás do ex-presidente Lula em todas as pesquisas eleitorais, fez um “mea culpa” e se disse arrependido de não ter demonstrado compaixão pelos milhões de familiares e amigos enlutados. Agora pode ser tarde. Mas não perdeu a oportunidade de tentar aparecer, qual um “Jaiminho” mais solene, em meio aos quase 200 chefes de Estado, soberanos de reinos e principados que vão prestar a última homenagem a quem comandou o Reino Unido e mais outras 15 nações por mais de 70 anos. Jair “não sou coveiro” Bolsonaro, vai ser recebido como “Coffin Jair” na cova da Rainha Elizabeth II, cujo caixão será sepultado na Abadia ao lado dos restos mortais do Príncipe Phillip, o marido morto há um ano. Espera-se que o presidente Bolsonaro tenha a compostura que o cargo e a solenidade exigem e não queira tirar partido pessoal da presença, como Chefe de Estado da República Federativa do Brasil, para explorar na sua campanha pela reeleição.
Pelo menos não levará a tiracolo o seu próprio papagaio de pirata vestido de verde e amarelo, o onipresente Luciano Hang, dono das Lojas Havan, nascida em Brusque (SC), que se tornou um de seus principais apoiadores no meio empresarial. Hang parece mais o folclórico Zé Carioca (de Walt Disney) do que o líder de uma das potências do comércio brasileiro. Tal e qual um “Jaiminho”, que colecionava por vaidade própria as fotos dos eventos em que aparecia nas telas de TV, a campanha de Bolsonaro está à cata de bons cenários e boas companhias. Em Londres, não conseguirá igualar-se a Lula, que foi recebido como Chefe de Estado pela própria Rainha Elizabeth II. Na ONU, onde abrirá, em nome do Brasil, como é praxe desde 1963, a nova rodada anual de Assembleia Geral das Nações Unidas, poderá fazer discurso mais voltado a seus eleitores e tentar aliciar novos na reta final para o 1º turno, em 2 de outubro. Isso não chega a ser novidade. Todos os presidentes recentes (incluindo Lula, Dilma e o próprio Jair Bolsonaro) cansaram-se de usar a tribuna da ONU para alavancar suas imagens. Em ano eleitoral, então, a tentação é bem forte.
A última pesquisa DataFolha, divulgada na noite de 5ª feira, 15 de setembro, após ouvir 5.926 pessoas em 300 municípios entre os dias 13 e 15 de setembro, mostrou o ex-presidente Lula na liderança da campanha com os mesmos 45% da semana anterior. Já Bolsonaro oscilou, dentro da margem de erro, de 34% para 33%. A pior notícia para o presidente foi que toda a movimentação abusiva de recursos da Presidência da República e do governo no 7 de setembro, em prol da campanha da reeleição, não trouxe quase nenhum efeito prático. A rejeição a Jair Bolsonaro até aumentou para 53%, enquanto a de Lula ficou em 38%. Entre as eleitoras, que representam 53% dos votantes, Lula vence por 46% a 29%, com ambos estáveis em relação à semana anterior, indicando que a estratégia de usar a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, para vencer as resistências ao presidente, não surtiu efeito. E entre o eleitorado masculino, Lula subiu de 43% para 44%, enquanto o presidente descia de 39% para 37% das preferências. Bolsonaro perde nas faixas até dois salários mínimos de renda (R$ 2.424), a maioria do eleitorado, por 52% a 27%. E Lula recuperou a liderança na faixa de dois a cinco salários mínimos (R$ 6.060), com 40% (vindo de 37%), enquanto a pontuação de Bolsonaro descia de 41% para 39%. Na faixa de cinco a 10 salários mínimos (R$ 12.120), a mais beneficiada pelas medidas para reduzir os preços da energia elétrica e dos combustíveis, o avanço de Bolsonaro, que tinha subido a 49%, perdeu força, voltando aos 40% do começo do mês, enquanto Lula oscilava de 34% para 35%, indicando que a inflação dos alimentos e outros produtos desgasta o presidente.
Como se percebe, Bolsonaro não pode cometer nenhuma gafe em sua passagem por Londres (nem pensar em ser agressivo com a imprensa como costuma fazer no Brasil, sobretudo contra as jornalistas). E, na ONU, precisa fazer um discurso sóbrio acenando para a proteção ao meio ambiente e uma agenda moderna para o Brasil se ajustar com o mundo no processo de transição energética. Mas a tentação por mensagens provincianas visando o seu próprio rebanho, deve prevalecer.
Por Bolsonaro, mercado aceita expurgos
Os mais jovens, que nasceram depois do Plano Real, que completou 28 anos em 1º de julho de 1994, e derrubou a inflação em 12 meses da casa de três ou quatro dígitos para apenas um dígito, talvez nem saibam o que se convencionou chamar de “expurgos nos índices de inflação”. Mas os mais velhos – estou com 72 anos, 50 dos quais cobrindo o mercado financeiro – devem se lembrar perfeitamente da grita dos operadores e economistas do mercado financeiro quando o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, pediu, no governo Geisel, à Fundação Getúlio Vargas, que calculava a inflação oficial, que promovesse um “expurgo” da alta exagerada do preço do chuchu, no meio de 1977.
O mercado financeiro tinha apostado, em peso, na disparada da inflação, que tinha sido reprimida por Delfim Neto no governo Médici (a inflação oficial de estava reprimida – oficialmente, o número de 1973 foi de 13,7%, depois a própria FGV reviu o número para mais do que o dobro: 27%). Muitos imaginavam que haveria um salto. O que iria “engordar” a remuneração dos papéis indexados à correção monetária das ORTNs (o mais famoso título entre os bilhões de cruzeiros em papéis que giravam na época no “open market”).
As ORTNs de dois e cinco anos, e obrigações reajustáveis dos Tesouros estaduais (MG, SP, RJ, BA), que tinham sido lançados a partir de 1972, faziam companhia a CDBs pós-fixados e Letras Imobiliárias (com remuneração trimestral semelhante às ORTNs). Todos eram papéis indexados à correção monetária, calculada na base de uma média trimestral do índice de Preços por Atacado, no conceito de Disponibilidade Interna (que já expurgava os preços de exportação).
Como os juros do overnight foram fixados pelo Banco Central atrelados à inflação oficial, abriu-se enorme boca de jacaré favorável a quem formou carteiras em papéis reajustáveis como as ORTNs e as financiavam rolando no “overnight”. Entre as corretoras e distribuidoras que fizeram fortuna e se credenciaram a virar banco de investimento, com cartas-patentes vendidas pelo Banco Central, estava a Garantia (1ª corretora a virar BI, seguida pela Multiplic).
O Banco Central tinha na prateleira uma bateria de cartas-patentes de bancos liquidados desde que a Lei 6024 (baixada pelo governo Médici em 14 de março de 1974, na véspera da posse de Geisel, definindo intervenções e liquidações de instituições financeiras insolventes). A Lei, aplicada em 16 de abril de 1974 no Banco Halles, abriu a porteira a dezenas de casos. Por sinal, a intervenção no Halles, segundo me confidenciou o ex-ministro da Fazenda, Octávio Gouveia de Bulhões, que presidia o Banco do Estado da Guanabara, que absorveu o Halles (ideia que levantei numa mesa redonda no JORNAL DO BRASIL, quando se aventava a hipótese do Banespa comprar o Halles, que tinha base carioca), tinha sido “um golpe de mestre de Simonsen para esfriar a economia e a especulação financeira em 1974”. Concordo 100%.
Quando o governo induzia a FGV a mexer no sistema de cálculo (já se usou média de seis meses, depois encurtada para três) ou expurgar este ou aquele preço (nas hortaliças e legumes há quebras de safras que são rapidamente repostas, ao contrário de lavouras anuais, como soja, milho, cana de açúcar, café, suco de laranja, por exemplo), havia uma grita dos operadores e economistas que assessoravam as instituições. É que as carteiras de títulos indexados à ORTNs projetavam uma curva de rendimento bem acima do juro médio do overnight. Os expurgos (justificados estatisticamente e cujo objetivo era não amplificar como permanente, no processo de indexação, uma inflação temporária) recebiam duras críticas dos economistas ligados ao mercado financeiro, pois implicavam lucros menores e bônus mais magros aos envolvidos.
Em 1979, na gestão de Delfim Neto no Ministério do Planejamento do governo do general Figueiredo, o cálculo da inflação saiu da FGV para o IBGE. Em vez do excessivo peso dos preços por atacado (60%), dos 30% dos preços ao consumidor, então só levantados no Rio de Janeiro pela FGV, e dos 10% da Construção Civil, o IBGE, usando pesquisas de Orçamento Familiar, criou dois índices: o Índice Nacional dos Preços ao Consumidor (INPC), que mede as despesas da cesta de consumo das famílias com renda até cinco salários mínimos (R$ 6.060), que serve de reajuste ao salário mínimo e às aposentadorias do INSS; e o índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a inflação oficial que mede as despesas das famílias com renda até 40 salários mínimos (R$ 48.480).
O atual ministro da Economia, Paulo Guedes, após voltar ao Brasil de sua pós-graduação em Chicago, com parada no Chile para assessorar colegas economistas que trabalhavam no governo Pinochet, no começo dos anos 80, se criou neste ambiente. Suas previsões estratosféricas de inflação (embora nunca confirmadas), ajudaram a tornar parte das profecias autorrealizáveis. Com gordos lucros para quem apostava na alta da inflação. Por isso, foi convidado por Luiz Cesar Fernandes (que deixara a diretoria do Banco Garantia) a integrar, com André Jakurski, a Pactual Distribuidora, na 2ª metade dos anos 80. A DTVM gerou o Banco Pactual, atual BTG-Pactual, sob controle de André Esteves, que retomou o controle do banco, vendido ao UBS, depois que o próprio banco suíço fez água na crise financeira mundial de 2008.
Correção cambial também gerou atritos
Se você veio até aqui, caro leitor, saiba que também a correção cambial (indexador de títulos de longo prazo vendidos pelo Tesouro Nacional nas crises da dívida externa até o Plano Real. As apostas bem sucedidas na desvalorização cambial (ocorreram duas máxis de 30% em 1982, quando o Brasil renegociou a dívida com o aval do FMI (sucessivas renegociações foram feitas na década de 80), em 1979 e no governo Sarney. Nos preparativos do Plano Real, o Tesouro Nacional lançou ORTNS indexadas em dólar. Como o mercado apostava em ágios de até 20% do dólar em relação à nova moeda (repetindo o que ocorreu na Argentina em 1993-94, houve grande aposta nestes papéis.
Por isso, houve grande frustração quando o Real foi lançado com âncora cambial com a relação de R$ 0,94 por US$ 1,00. E ainda recuou a R$ 0,83 no final de 1994. Durante meses, os jornais e noticiários das TVs traziam críticas de economistas, entre os quais pontificava Delfim Neto, ao “erro do Banco Central”. Era uma forma de se isentarem pelos aconselhamentos que levaram grandes empresas e bancos a perderem muito dinheiro. No caso do mercado financeiro, os bancos Garantia e Multiplic, que, como “dealers” (agentes do Banco Central no mercado aberto) eram obrigados a manter grandes carteiras, perderam muito dinheiro e foram brigar na Justiça contra o Banco Central. Foram punidos com a perda da credencial de “dealers”, abrindo caminho a seu esvaziamento e venda posterior.
Canetadas cortaram quase 3% do IPCA
Agora imagina, caro leitor, o que não estaria gritando de críticas ao governo o economista Paulo Roberto Nunes Guedes se não tivesse trocado a figura de estilingue, que alvejava todos os ministros da Fazenda e dirigentes do Banco Central, pela de vidraça-mor, como ministro da Economia, do governo Bolsonaro, diante das sucessivas canetadas feitas pelo governo do presidente candidato à reeleição para derrubar os preços da energia elétrica, combustíveis e comunicações.
Cálculos da XP Investimentos apontam que em vez de alta acumulada de 1,74% no IPCA de julho a setembro, espera-se um IPCA negativo de -1,18% para o período diante dos cortes de impostos e preços. O desvio é de nada menos que 2,94%. É muito mais do que qualquer inflação do chuchu, da batata ou da cenoura. Mas nem por isso houve chiadeira.
Moral da história: Esse parece ser o preço a pagar pelo mercado financeiro que, em maioria, prefere a reeleição de Bolsonaro ao retorno do ex-presidente Lula. Até porque, como os cortes são temporários e parte dos impostos tende a voltar em 2023 (com ou sem Bolsonaro), as perdas atuais podem ser recuperadas adiante nos papéis indexados à inflação.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)