ERA UMA VEZ O PAÍS DO AME-O OU DEIXE-O

CHARGE DE NANDO MOTTA

Caro Sylvio Renan de Medeiros,
Você certamente se lembra da campanha do Ame-o ou Deixe-o. Daquele país exclu-dente, indecente, da ilha de paz e tranqüilidade da ditadura. A calmaria era tão obscena que um dia nos colocaram juntos, você e eu nus, na mesma cela, para uma sessão de choques elétricos.Temi que fossem reeditar a campanha, dado o grau de degradação e barbáries inéditas, manipuladas pelo atual governante. Mas me atrevo a dizer que não. Podemos dispensar as instruções do Manual de Sobrevivência em tempos de Guerra. Estamos a um passo de vencermos o ódio.

Me vejo novamente falando deste Brasil que já foi chamado de país do futuro, de país tropical e do carnaval, às vésperas de uma eleição transcendental. Caímos nas garras de um degenerado, um sujeito que comete bestialidades impunemente, todos os dias. Com ele chegamos às cercanias de um poço sem fundo, verdadeira antecâcamera do inferno. É muito vasto o alcance da destruição causada por sua passagem pelo governo.

Não chega aos pés do que fez a ditadura, mas o efeito do mal é muito pior, se é que você me entende, Como lhe disse pessoalmente uma vez, na clandestinidade, tomando café no balcão de numa padaria no Engenho de Dentro, vem merda aí. Ou não. Mas vou lhe pedir paciência, nada de precipitação, calça de veludo ou bunda de fora. Ainda mais porque, decorrido tanto tempo desde que você subiu, a situação é outra. Você dispõe de segurança para suas caminhadas pelas pradarias celestiais.

Tenho saudades de nossas longas conversas noturnas no Regimento Sampaio. Na gran-de cela-dormitório as luzes não eram apagadas, nossas camas ficavam lado a lado. En-quanto a fumaça dos cigarros inebriava o ambiente, as histórias rolavam. Chegava um momento eu apagava, e você permanecia aceso, ouvindo o som do meu ronco.

Sabemos que os caminhos da História são tortuosos. Já nos intimaram uma vez a amar um país desfigurado e em frangalhos. A opção foi resistir ou cair fora. Não tivemos es-colha. Alguns foram sumariamente expulsos ou banidos. Os que se recusaram e decidi-ram pelejar, foram aprisionados, conduzidos algemados e encapuzados ao cárcere de um quartel militar. Era o Médici o general que ditava as ordens.

Por enquanto, temos o direito de escolha. Se o degenerado permanecer, teremos um novo êxodo, uma corrida para o aeroporto. Muitos não têm mais saúde para agüentar um novo exílio. Lembra aquela peça dos anos 60, Se correr o bicho pega, se ficar o bi-cho come, do Vianinha e do Ferreira Gullar? Difícil de explicar, algo a ver com o senti-mento do filósofo e poeta Caetano Veloso, que, perguntado sobre o que acha desta cruel realidade, respondeu com o sotaque de sua dialética baiana: “Acho que estamos mal, mas sinto que vamos bem.” Vamos sair desta sim, o Lula vai ganhar a eleição, haverá uma profunda recomposição.

Meu caro, imagino que tenhas desistido daquela implicância com o metalúrgico que virou sapo barbudo. Ele tem grandeza. Os fatos passam muito rapidamente. Queria con-versar mais à vontade, por isso optei por escrever uma carta. Chame o Raimundinho, o René e o Salatiel. René vai levar seu maço azul de Gauloises. Como antigamente no Re-gimento Sampaio, sentem em torno de uma mesa e conte a eles as novidades. Como fa-zíamos depois das visitas das famílias aos domingos, na Vila Militar.

Não deixe de procurar logo o Godard, Jean-Luc, que acabou de subir. Fez 91. Em al-gum canto vais encontrá-lo. Bem sei que gostarias de ver primeiro a lourinha encantado-ra da Jean Seberg, quem sabe eles não estarão juntos? Lembro que ela nos seduziu com-pletamente na parceria com Belmondo, em Acossado. Verifique se está com a camiseta do New York Herald Tribune, que ela apregoava numa cena no filme, numa calçada.

Torno a lhe dizer que são tortuosos os caminhos da História. A cada momento a passa-gem do tempo interfere em nossa percepção da realidade. Antes, chegamos a pensar que o seu curso, da História, era uma linha reta, inevitável o desfecho traçado pelo insondá-vel materialismo histórico. Que no final da linha nos deixaria no paraíso, o velho barbu-do nos esperando na estação central, fumando o seu cachimbo.

Nesta estação não chegamos. Houve marchas e contramarchas de uma sinfonia inaca-bada, do andante moderato ao intermezzo, passando pelo allegro graziozo até chegar ao finale. Naquela época de livre pensar estudantil, eu escrevia versos e você compunha. De novo somos espectadores de um drama que presencio, do qual te dou notícias. Da outra vez participamos, fomos escalados e entramos em cena, o Exército de Brancaleone. Re-presentamos com a maior dignidade.

O mínimo que se pode admitir é que não sabemos onde vai dar. Que grande dramatur-go/romancista seria escalado para escrever esse romance? Arte e vida são operações complexas. Se imitam. Quero crer que na trama imaginada pelo criador deva existir uma possibilidade de redenção, senão retornamos ao apocalipse, que pede tudo e não oferece nada. Redenção, eis a palavra chave para a condução desta obra sinfônica.

Um abraço carinhoso. Saudações aos velhos companheiros de guerra.

ÁLVARO CALDAS ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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Álvaro Caldas. Jornalista e escritor

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