O papel dos estadistas é o de tentar compor essas diferenças, exercendo uma liderança pedagógica que consiga consolidar os grandes temas
As críticas de Ciro Gomes ao identitarismo mostram que não entendeu nada sobre o Brasil contemporâneo.
Os movimentos autônomos e mais estridentes de defesa de minorias começaram a ganhar corpo uns 15 anos atrás. Novos protagonistas surgiram, com uma agressividade que incomodava, mas perfeitamente compreensível.
Quem não se lembra da agressividade verbal de Lula e dos metalúrgicos nos anos 80? Faz parte do processo inicial de afirmação. Depois, com o tempo, ganham maturidade e aprendem a atuar politicamente – no sentido de fazer alianças, interagir com outros grupos.
Há sempre espaço para oportunistas, mas também faz parte do jogo.
Lembro-me em 2010, depois de uma campanha exaustiva contra José Serra, em que tive até meu contrato com a EBC cortado por uma jornalista do PT. Éramos meia dúzia de blogs unidos no pacto único de impedir a vitória de Serra.
Terminadas as eleições, estava em viagem para Atibaia, para uma palestra em um encontro organizado por uma jogadora de vôlei, quando me ligaram da redação perguntando se poderiam publicar um comentário que mencionava “feminazi”. Não tinha a menor ideia do que o termo significava e autorizei.
Por aqueles tempos, começara a ganhar espaço o jogo do “cancelamento” – isto é, de pessoas dentro do Twitter montando campanhas para deixar de seguir determinados perfis. Fui alvo de uma campanha pesada, agressiva, tocada por uma professora de nome Lola, que já fizera o mesmo com outros perfis. De nada adiantava explicar minha ignorância em relação ao termo. Como assim? Todo mundo sabe o que significa feminazi! E nem adiantava o fato de estarmos do mesmo lado, da rede anti-Serra.
Anos depois, a professora foi alvo de ameaças pesadas, mereceu uma ampla solidariedade e, provavelmente, aprendeu que as brincadeiras de atiçar as massas contra qualquer alvo atraía o que de pior existe nas redes sociais.
Nem por isso, o feminismo ficou comprometido. Foi se consolidando através de lideranças maduras e teve seu momento simbólico mais significativo no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, com ela, Gleise Hoffmann, Vanessa Graziottin e outras mostrando a fibra da mulher brasileira.
O mesmo aconteceu com o movimento negro. Lembro-me de um debate com lideranças negras, no Sindicato dos Jornalistas, no qual questionei a insensibilidade em relação a outros vulneráveis: as pessoas com deficiência, as mulheres negras, as mulheres negras e obesas etc., tentando chamar a atenção para o fato de que havia uma luta mais ampla, da frente ampla dos vulneráveis contra os fatores de opressão.
Tempos depois, reencontrei os líderes negros, que já entendiam o jogo da resistência de uma forma mais ampla. O que mudou? O fator tempo, o amadurecimento.
Significa que deixaram de lado a prioridade dada às suas próprias reivindicações? Longe disso! Apenas aprenderam a enxergá-las dentro de um contexto mais amplo.
O processo de amadurecimento passa pelos seguintes passos:
- A tomada de consciência de cada grupo sobre sua situação e a constataçào de que eles devem ser os próprios porta-vozes de seus direitos..
- O início da organização política, processo que não prescinde da retórica agressiva.
- O amadurecimento progressivo e a constatação de que não há saída permanecendo na bolha. A partir daí passam a entender a relevância da atividade político-partidária.
Muitas vezes o radicalismo inicial cria resistências. Há quem atribua a adesão ilimitada dos ruralistas ao bolsonarismo ao radicalismo dos ambientalistas. Hoje em dia, por exemplo, não pode ser colocada em dúvida nenhuma acusação de mulher contra assédio sofrido, suposto ou real. Anos atrás, houve uma campanha para prender uma idosa, visivelmente desequilibrada, por ter ofendido um PM negro na avenida Paulista.
Mas todos esses episódios fazem parte de um movimento de consolidação das pautas identitárias, inevitável e necessário.
Hoje em dia, ainda mais em uma sociedade relativamente sofisticada como a brasileira, as pautas identitárias são irreversíveis, das mulheres, dos negros, dos índios, das pessoas com deficiência, dos sem terra, dos sem teto, dos pró e dos anti-aborto.
A diferença entre os políticos está na maneira de trabalhar o problema. O papel dos estadistas é o de tentar compor essas diferenças, exercendo uma liderança pedagógica que consiga consolidar os grandes temas de interesse geral com as pautas de cada movimento. É um processo eminentemente político e pacífico, um exercício pedagógico.
Nesse mundo sútil, socialmente complexo, como atua Ciro Gomes? Agredindo as pautas identitárias, como se o Brasil fosse um imenso Sobral, sob as ordens de déspotas esclarecidos e a única pauta relevante fosse a dele. E sua percepção piorou muito quando se aproximou de Aldo Rabelo, o que pretende cimentar a grande aliança ruralista-militares para salvar o Brasil.
Ciro entendeu menos de política que a Rede, quando lançou Marina Silva candidata. Cada tema do programa de governo foi montado por grupos identitários. Só não deu certo porque, no fim do caminho havia a proposta de redução radical do Estado, de acordo com a visão Itaú.
Enfim, não há como voltar atrás o relógio e espanar da vida nacional as pautas identitárias. Longe de significar dispersão, mostram as características de um país complexo e que se pensa democrático.Veja mais sobre:Ciro Gomes, pautas identitárias
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)