A pesquisa trimestral “Painel do Poder”, feita esta semana junto aos 70 principais líderes da Câmara dos Deputados e do Senado pelo site “Congresso em Foco”, chegou a conclusões estarrecedoras que explicam o rolo compressor aplicado há um mês pelo presidente Bolsonaro, com o apoio direto do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para mudar o panorama eleitoral, até aqui pendendo para uma vitória do ex-presidente Lula no 1º turno, em 2 de outubro. Mediante uma série de canetadas bilionárias, que valem até 31 de dezembro de 2022, comprovando seu nítido caráter eleitoreiro, o governo reduziu impostos de energia elétrica, telecomunicações e combustíveis e ainda fará farta distribuição de dinheiro, tudo para seduzir o eleitor a mudar de lado. Para conseguir mudar o clima das eleições em urnas eletrônicas (que tanto tenta desmoralizar), a menos de 95 dias da eleição, Bolsonaro não se limitou a rasgar a Constituição, aprovando com ampla maioria no Congresso a decretação do Estado de Emergência (alegando a alta dos combustíveis, que começou em março) que lhe permite, com o aval do Legislativo, driblar a lei eleitoral que proíbe distribuição de benefícios para o eleitor e redução de impostos no ano eleitoral, contornou a Lei de Responsabilidade Fiscal e a regra de ouro, que limitava os gastos correntes dos entes públicos, furou duas ou três vezes o teto dos gastos, que ficou maior que a base original.
Dois sentimentos que rondam nos últimos dias as impressões dos brasileiros já parecem ser certezas para a maioria dos deputados e senadores: o presidente Jair Bolsonaro contestará as eleições deste ano e, ao fazer isso, criará um ambiente político conturbado com consequências imprevisíveis. De acordo com a pesquisa, assim como a maioria dos deputados presentes à estranha sessão comandada por Arthur Lira, em que se podia votar pelo celular, para evitar a pressão do corpo-a-corpo no Plenário, deu 361 dos 403 votos para o governo (142 deputados votaram contra o estupro da Constituição), nada menos que 54,69% dos líderes dos 23 partidos acham altamente provável que Bolsonaro tentará replicar no Brasil o que fez Donald Trump nos Estados Unidos quando questionou o resultado da derrota que sofreu para Joe Biden em 2020.
É preocupante a consciência demonstrada pela maioria dos líderes dos principais partidos da Câmara dos Deputados, de que o presidente Bolsonaro pode não se contentar com as violações em curso para tentar ganhar as eleições corrompendo os eleitores. A campanha eleitoral no rádio e TV começa dia 16 de agosto e os bilhões de reais começarão a pingar no bolso dos eleitores nas cidades, nos campos e nas estradas (caso dos caminhoneiros) já em agosto. Mesmo assim, a maioria das lideranças acredita que se o Plano A falhar, Bolsonaro poderá pôr em prática o Plano B antes mesmo das urnas serem acionadas. O ensaio do golpe foi feito em 7 de setembro do ano passado. De lá para cá a retórica de suspeitas contra o voto eletrônico avançou nas Forças Armadas, sob a liderança do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira. Milhares de cidadãos tiveram mais acesso a armas (Colecionadores, Atiradores e Caçadores, os CACs, milicianos e as tropas de polícias civil e militar. As armas estão engatilhadas, como ficou claro no episódio de intolerância política que causou uma vítima do PT em Foz do Iguaçu (PR).
O mau exemplo de Trump
Só as pessoas que não têm verdadeiro apreço pela Democracia e planejam chegar ao poder ou nele permanecer por meios que não sejam pela via das regras eleitorais consolidadas do processo legal brasileiro criticam as urnas eletrônicas e põem em dúvida a sua acurácia. Os escândalos revelados na infame tentativa do ex-presidente Donald Trump de atropelar o secular ritual da Democracia americana, tentando a última cartada da invasão do Capitólio por fanáticos armados que insuflara pelas redes sociais, para evitar a cerimônia de diplomação do presidente eleito Joe Biden e da vice democrata, Kamala Harris, em ato presidido em 6 de janeiro de 2021, pelo vice de Trump, Mike Pence, a quem o tresloucado presidente sugeria “enforcar como traidor”, dão a pista de até onde poderia ir a ânsia do Poder, mesmo na maior Democracia do mundo.
As entranhas das investigações revelam que o patriotismo de altos funcionários do gabinete presidencial e o cumprimento do dever profissional e democrático por parte de importantes chefes militares da hierarquia das Forças Armadas norte-americanas evitaram uma escalada de proporções inimagináveis. Se hoje o mundo paga o preço altíssimo das consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia do autoritário presidente Vladimir Putin, imagine-se o que poderia fazer o tresloucado Donald Trump com poderes ditatoriais no comando da Casa Branca e do arsenal militar e nuclear da maior potência do Planeta? Todos os trejeitos autoritários que deixava transparecer no “reality show” que comandava, revelando perversidade ao demitir os eliminados, ao som do agressivo: “you are fired”, seriam postos em prática. Só mesmo um genial Charles Chaplin seria capaz de fazer uma sátira para remedar a versão moderna de “O Grande Ditador”, que desmoralizava Adolf Hitler. A distância de 1932, quando começou a escalada antidemocrática de Hitler, é de só 90 anos.
O processo eleitoral brasileiro é bem diferente do aplicado nos Estados Unidos. Os dois países são presidencialistas, mas lá vigora essencialmente o bi-partidarismo (nunca houve um presidente ou governador que não fosse Democrata ou Republicano), enquanto no Brasil, os partidos que chegam a 23 com representação na Câmara proliferam mais do que as seitas religiosas, que viraram poderosos currais eleitorais num país onde mais de 83% da população é urbana. A mais marcante diferença, porém, é que nos EUA há o voto voluntário, contra o obrigatório no Brasil. O que não impede a média de abstenção em torno de 30% do eleitorado nas últimas eleições.
Outra grande distinção não se limita ao voto eletrônico brasileiro e o voto manual americano. Nos Estados Unidos, quem comparece às urnas vai mobilizado para exercer a cidadania nas diversas questões submetidas ao escrutínio popular, desde a escolha do xerife do condado e assuntos municipais, até a escolha de presidente e vice, governadores e uma parte do Congresso (diferente do Brasil, onde só uma parte dos senadores é renovada a cada quatro anos, metade da vigência do mandato de oito anos), lá não há sincronia na renovação da Câmara e do Senado com o mandato presidencial. O sistema de freios e contrapesos, “checks and balances”, na política americana permite que as mudanças de poder sejam confirmadas a cada dois anos, com renovação parcial do Congresso, como ocorrerá em novembro próximo.
Entretanto, guardadas as devidas proporções, as manifestações de Trump acusando previamente o processo eleitoral americano de fraudulento quando, em função das medidas de restrição de aglomerações nas seções eleitorais, foi ampliado o uso (vigente há décadas) da votação pelo correio e a mobilização do partido Democrata foi capaz de atrair o eleitorado negro e o hispânico a participar do pleito, funcionaram como um reconhecimento tácito de que “o passeio da reeleição”, que imaginava líquido e certo até a eclosão da pandemia da Covid-19, tinha sido cancelado. Trump, que pensa como um empreendedor imobiliário sempre disposto a evitar a desvalorização dos seus imóveis, desdenhou da “gripe comunista”, do “vírus chinês” e o resultado foi que os EUA registraram 1.023.000 mortes pela Covid-19, 80% das quais no governo Trump. Transposto para a realidade brasileira, é assustador que se tente copiar por aqui os piores exemplos americanos. Mas, afinal, o presidente da República, quando candidato, não foi quem lamentou que a cavalaria do Exército de Caxias não foi tão eficiente quanto os que farda azul para eliminar os índios?
Missões urgentes para as Forças Armadas
O ministro da Defesa, cargo civil, exercido desde abril deste ano pelo ex-comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, parece que não tem outras atividades a zelar no “metier” do Ministério da Defesa. A dúvida surge porque há três meses o ministro se dedica a fazer sempre novos reparos ao processo eleitoral brasileiro, mais especificamente às urnas eletrônicas, introduzidas pela Justiça Eleitoral, no ano de 1996, e com eficiência e acurácia reconhecidas no exterior e no país por todos os partidos políticos. Pelas urnas eletrônicas foram eleitos os prefeitos e vereadores de 1996 até 2020. E os presidentes da República, deputados e senadores de 1998 até 2018, bem como os governadores e deputados estaduais desde então. Vale dizer que o presidente Bolsonaro, além da eleição em 2018, foi efeito pelo voto eletrônico a deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro nos anos de 2014, 2010, 2006, 2002 e 1998. Só a primeira eleição, a vereador na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1988, e as eleições de 1990 e 1994, para a Câmara Federal, foram feitas pelo ultrapassado e fraudulento voto em papel depositado na urna.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que cuida do acompanhamento da inflação e dos indicadores da economia, mas também, através dos censos Decenais (o de 2020 foi adiado para este ano, devido à pandemia) faz uma série de atualizações de projeções anuais sobre o tamanho da população dos 5.568 municípios que serve para determinar a sua cota parte no quinhão das receitas federais e estaduais, realiza ainda levantamentos cartográficos e territoriais, que são seguidos por diversos órgãos da administração pública. A diretoria de Serviço Geográfico do Exército é um dos órgãos que se valem dos levantamentos do IBGE para atualizar seus mapas e orientar os deslocamentos de tropas e monitoramentos das fronteiras.
Na 5ª feira (14.07) o IBGE publicou “Municípios da Faixa de Fronteira e Cidades Gêmeas”, com dados atualizados até 2021, que apontou que 588 municípios brasileiros têm área total ou parcial localizada na faixa de fronteira. Destaque para os estados do Rio Grande do Sul (194 municípios) e Paraná (139). Entende-se por faixa de fronteira a faixa interna de 150 km de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, conforme o artigo 20, parágrafo 2º da Constituição Federal de 1988. Em 2021, a área total da faixa de fronteira era 1.420.925,63 Km2 (16,7% da área do país). Já os municípios, que estão 100% ou parcialmente na faixa de fronteira, apresentam uma área total de 2.265.046,64 Km2 (26,6% da área total do país).
A publicação também listou 33 cidades-gêmeas nacionais, aquelas que ficam uma ao lado da outra, mas em países diferentes. São oito na região Centro-Oeste, sendo sete no Mato Grosso do Sul e uma no Mato Grosso. No Norte, são nove, a maioria no Acre (4). O Sul concentra 16 cidades-gêmeas, com destaque para o líder do ranking nacional, o Rio Grande do Sul, com 11, ou 1/3 do total do país. Segundo o coordenador de Estruturas Territoriais do IBGE, Roberto Tavares, “tais municípios exigem aplicação de políticas públicas específicas para atender o grande potencial de integração econômica e cultural, e enfrentar problemas específicos de cidades fronteiriças”.
Como mostrou o duplo assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no vale do Rio Javari, no Amazonas, na tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, há vulnerabilidades nas nossas fronteiras e graves falhas das Forças Armadas, que dispõem de satélites de vigilância, no trabalho de articulação com a Polícia Federal, para coibir o tráfico de drogas e armas em operações de troca e lavagem de dinheiro do contrabando de ouro e a caça e pesca de animais. A título de colaboração ao Ministério da Defesa, segue o Mapa dos Municípios da Faixa de Fronteira. Tenho quase certeza que as falhas que os escalões das Forças Armadas vão identificar serão bem maiores e evidentes do que a tentativa semanal de procurar pelo em ovo em supostas vulnerabilidades das urnas eletrônicas.
Para que serviu o ataque à Petrobras?
Decididamente, o presidente Jair Bolsonaro deveria ser considerado um santo ou condenado por todas as mazelas acumuladas em seu governo. Ele já lamentou, em 2019, que era difícil governar. Depois desdenhou da “gripezinha”, a Covid-19, do vírus chinês, argumentando que o seu “passado de atleta” o tornaria praticamente imune ao novo coronavírus. Como a imensa maioria da população não é de atletas ou ex-atletas e muitos têm dificuldades para conseguir comida todos os dias, a partir da decisão dos governadores e prefeitos de restringir a circulação, quando milhares de doentes lotavam as enfermarias dos hospitais públicos, Bolsonaro se postou em rota de colisão com aqueles gestores públicos, a quem queria responsabilizar pela crise que sacudiu o mundo, e que pretendia ignorar no Brasil. Quando o país completou 2.543 mortes, em 20 de abril de 2020, ao lhe ser solicitado um pronunciamento, em vez do pesar às famílias e amigos, em total falta de empatia e humanidade, brandiu o famoso “e daí, não sou coveiro, o que quer que eu faça?”.
Continuou “receitando” remédios ineficazes, como a cloroquina, e retardando o máximo que pôde a compra de vacinas, enquanto demonizava a sua eficácia. A “CPI da Covid”, no Senado, revelou uma série de equívocos e trapalhadas do governo, que além de não se empenhar a tempo para trazer vacinas (as denúncias de corrupção seguem emperradas nas investigações da Procuradoria Geral da República, sob o comando de Augusto Aras). O governo foi de uma total ineficiência na gestão dos estoques de alimentos em 2020. O “país celeiro do mundo”, seguindo a política liberal dos ministérios da Economia, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, exportou tudo e chegou a setembro de 2020 sem estoques de arroz (que subiu 75%) e de grãos de soja. Teve de importar soja em grão para extrair óleo de cozinha, que subiu mais de 105%. Um desastre total. Mas tinha sempre um culpado perfeito pela carestia. Como o mordomo dos filmes ingleses de suspense, o vilão era a Petrobras. Domados os preços dos combustíveis, precisa evitar que se repita o desastre dos alimentos em 2020. O preço da Alimentação continua acima de dois dígitos.
Quando os preços internacionais do petróleo, que tinham descido a menos de US$ 30 o barril, em abril de 2020, voltaram a subir em dezembro daquele ano, com o início da vacinação nos Estados Unidos e Reino Unido (no Brasil o início só ocorreu em 17 de janeiro de 2021, por insistência do então governador de São Paulo, João Dória Jr), Bolsonaro começou a reagir aos constantes reajustes da gasolina e do diesel pela estatal (nada falava quando os preços andaram baixando em 2020). Nos dois sentidos, a companhia nada mais fazia do que seguir a Paridade dos Preços Internacionais, adotada em fins de 2016, para evitar que os governos fizessem uso político dos preços dos derivados de petróleo (como fizeram Lula e Dilma em suas reeleições). Outra importante mudança do governo Temer, a nova Lei das Estatais vedou a indicação de ministros para integrar o Conselho de Administração da estatal. Quando não havia essa vedação, a então ministra das Minas e Energia, Dilma Roussef, foi nomeada presidente do Conselho de Administração. Quando ela assumiu a Casa Civil, após o escândalo que levou à demissão de Antônio Palocci, que fora ministro da Fazenda de Lula e foi substituído por Guido Mantega, coube a Mantega ditar a política do governo no Conselho de Administração. Apesar das interferências na fixação dos preços dos derivados (o que gerou prejuízos à estatal), quando foram descobertos malfeitos nos governos do PT, nem Dilma nem Mantega foram responsabilizados por atos quando eram do Conselho.
As críticas dos caminhoneiros, parte de seu eleitorado em 2018, quando insuflou as paralisações de maio e junho, fizeram Bolsonaro encontrar um “bode expiatório”: desde fevereiro de 2021 começou a alardear a demissão de Roberto Castello Branco, cujo mandato, de dois anos, não foi renovado e deixou o cargo em 13 de abril de 2021. A intenção clara era intervir nos preços da Petrobras com a nomeação do ex-presidente da Itaipu Binacional, general Joaquim Luna e Silva, para comandar a petroleira. Luna assumiu em 16 de abril, mas foi destituído em 14 de abril de 2022, depois que, em 11 de março, cumprindo os preceitos da Lei das Estatais e da PPI (que pede equiparação dos preços internos com os internacionais, mais a variação do dólar), reajustou os combustíveis. Bolsonaro tentou emplacar o consultor Adriano Pires (desembaraçado a explicar os meandros que influenciam os preços do petróleo) na presidência da Diretoria Executiva da estatal e o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, no comando do Conselho de Administração. Mais uma vez, os dois instrumentos legais e as normas de governança e transparência instituídas após os escândalos de corrupção da Lava-Jato, barraram os planos intervencionistas e eleitoreiros de Bolsonaro para transformar a Petrobras e os combustíveis em cabos eleitorais. O Comitê de Pessoas, órgão assessor do Comitê de Elegibilidades da Petrobras que examina a competência e eventuais impedimentos para o exercício do cargo. vetou os dois nomes, por conflito de interesses, e ambos desistiram.
Como solução paliativa foi nomeado novo conselho sob o comando de Marcio Weber, e assumiu a presidência José Mauro Coelho, vindo da PPSA, estatal que cuida da gestão das áreas de concessão do pré-sal. Mas José Mauro Coelho, seguindo os trâmites do PPI e da Lei das Estatais, aprovou dois reajustes que desagradaram profundamente a Bolsonaro, ao provocarem queda de seus índices eleitorais. No 1º, em 10 de maio, como tinha pouco mais de 30 dias no cargo, Bolsonaro e o núcleo político do governo que coordena sua campanha acharam por bem sacrificar o ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque. Para seu lugar veio o Secretário Especial de Política Econômica, Adolfo Sachsida, que tratou de indicar novos membros para o Conselho de Administração, incluído Caio Paes de Andrade (que o era secretário de Desburocratização, responsável pela implantação do e-gov) para ser submetido à aprovação dos comitês de Pessoas e do Comitê de Elegibilidade da Petrobras. Após muitas discussões e duas restrições, Paes de Andrade foi aprovado e empossado em 28 de junho.
Mas aí o governo, diante do pouco tempo hábil para travar os preços dos combustíveis na Petrobras, que segue o PPI e a Lei das Estatais, já tinha optado por outro caminho para reforçar as chances eleitorais da reeleição de Bolsonaro. Para confirmar a narrativa de que os governadores tiveram culpa pelos sucessivos fracassos do governo, a ideia foi fazer caridade com o chapéu alheio. Ou seja, o caminho para baixar temporariamente (até 31 de dezembro de 2022) os preços dos combustíveis, da energia elétrica e das comunicações, foi reduzir as alíquotas do ICMS, imposto incidente sobre aqueles insumos (bem como outras mercadorias), que são a base da arrecadação dos estados, cujos recursos (após destinar o quinhão proporcional a cada município) são utilizados para bancar os programas de educação, na área da saúde e segurança pública. O golpe de Bolsonaro só não foi completo porque o Congresso derrubou o veto presidencial que iria ignorar a compensação da União aos estados na perda de receita para poderem bancar programas sociais. A desfaçatez era tal que os bolsonaristas já espalhavam memes contrários aos governadores que não quiseram zerar as alíquotas do ICMS, com as quais a União se comprometeria a compensar a perda de receita. Quem dará a garantia em 2023, quando o Orçamento federal herdará uma série de compromissos com as receitas em queda, pela menor inflação e o baixo crescimento? Um governo que deu calote nos precatórios em 2021 (sentença judiciais transitadas em julgado contra a União), com os pagamentos postergados por vários anos para furar o teto de gastos e alargar as bondades eleitorais, (e acaba de driblar normas constitucionais e legais) não merece crédito de confiança quanto a honrar compromissos federativos no futuro.
Estado de emergência, com barril em queda?
O que importa para o governo é que, sob a alegação de um “Estado de Emergência” pela escalada dos preços dos combustíveis (consequência da alta do petróleo e do gás após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro), alterou grosseira e sem motivo a Constituição e conseguiu abrir as porteiras para passar a “boiada” do gasto público com fins eleitorais. Só que a reviravolta da economia mundial, com forte esfriamento das atividades econômicas, depois que os bancos centrais elevaram os juros para debelar a inflação que ameaça entrar na casa dos dois dígitos (que o Brasil voltou a viver desde agosto de 2021) produziu nesta semana, justamente quando a PEC kamikaze era votada, uma queda acentuada das cotações das “commodities”, em especial as cotações futuras do barril de petróleo, que caíram abaixo de US$ 100. A Petrobras é que pagou o preço alto de ser apedrejada como a Geni. Ela arrecadou bilhões de reais para o governo com os impostos sobre as atividades de exploração de petróleo e gás e refino de combustíveis, além de dividendos bilionários recolhidos à União. Mas “ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir”. Só não precisava fazer tanto desgaste do patrimônio nacional.
De qualquer forma, os mecanismos introduzidos em 2016 para deixar a governança da Petrobras menos expostas à interferência do Executivo, que comanda a União, acionista majoritário, funcionaram. Esta semana, dois dos sete novos membros indicados pelo governo em 9 de junho para o Conselho de Administração da Petrobras foram vetados pelo Comitê de Elegibilidade (Celeg). São eles, o secretário executivo da Casa Civil, Jonathas Assunção Salvador Nery de Castro, que eventualmente poderia assumir o posto, num completo conflito de interesses com a Lei das Estatais, e o procurador-geral da Fazenda, Ricardo Soriano de Alencar, por notório conflito de interesses, já que a companhia tem cerca de R$ 110 bilhões em processos judiciais contra o fisco federal. Mas o Celeg chamou a atenção para outro fato inusitado: o novo nome indicado para presidir o Conselho de Administração da Petrobras, instância que está acima da diretoria executiva, Gileno Gurjão Barreto, que era presidente do Serpro, foi subordinado do atual presidente da Petrobras, uma vez que o Serpro está vinculado à estrutura organizacional do Ministério da Economia, do qual Paes de Andrade era Secretário de Desburocratização.
Se Bolsonaro perder a eleição (e não instigar seus aliados contra o resultado, como Trump), em janeiro de 2023 a Petrobras terá o 5º presidente em menos de um ano, contando o mandato interino de uma semana do diretor executivo de Exploração e Produção, Fernando Borges (de 20 a 28 de junho).
Apagando a escravidão
Quem já leu a indispensável trilogia de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil e se extasiou com suas recentes entrevistas a Roberto D’Ávila, na GloboNews, e ao Roda Viva, da TV Cultura. não pode deixar de ter sido tocado pelas duras reflexões do histórico de desigualdades e dívida social que o Brasil tem com os povos africanos que fizeram a riqueza do país nos três séculos anteriores à Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888. A dívida só fez aumentar quando os escravos libertos não tiveram acesso às terras como os emigrantes que vieram para cá com as famílias para substituir gradativamente a mão-de-obra escrava, cuja migração forçada ao Brasil foi interrompida a partir da Lei Aberdeen, baixada pelo Parlamento inglês em 1845. E muito menos foram amparados por políticas sociais como educação e moradia.
Mas o discurso de ódio e alienação contra os afrodescendentes que aflorou na campanha eleitoral de Bolsonaro, em 2018, segue de vento em popa mesmo sendo a população brasileira composta por 53% de pretos e pardos. O horror da ficção, “à la 1984”, de George Orwell, que incomoda no excelente “Medida Provisória”, filme de Lázaro Ramos, disponível nas mídias eletrônicas por assinatura, infelizmente encontra eco. E não é só na “queima simbólica de livros”, que foi a entrega de Medalha da Biblioteca Nacional ao deputado-tornozeleira Daniel Silveira. Há dias, na beira-mar de Ipanema, um conhecido disse – para meu espanto – que não se sentia em dívida social com os negros brasileiros e que, se dependesse dele, “mandava todos de volta à África” (sic). Os descendentes dos mais de 5,4 milhões de negros que vieram ao Brasil ser explorados como escravos nas lavouras de cana de açúcar, café, fumo e na mineração de ouro e diamante, são hoje mais de 110 milhões de brasileiros. No continente africano só Nigéria, com 210 milhões de habitantes, supera a população que se declara negra no Brasil, maior que as da Etiópia e do Egito.
Ainda assim, dois importantes partidos da base aliada de Bolsonaro, o PP, que tem 56 deputados (mesmo número do PT) e só perde para a bancada de 78 deputados do PL, de Valdemar Costa Neto, novo partido do presidente Jair Bolsonaro, e o Republicanos, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, que tem 42 representantes (abaixo dos 53 deputados do União Brasil e dos 47 do PSD e acima dos deputados do MDB) propuseram esta semana o fim do sistema de cotas para garantir 20% de vagas nas universidades públicas federais a estudantes pretos ou pardos. É inacreditável que um total de 92 deputados num universo de 513 nomes queiram excluir direitos e a compensação de dívidas sociais para com a maior parte da população brasileira. E, na cara de pau, vão pedir votos em 2 de outubro.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)