Turrão que dificilmente se emenda, o presidente Bolsonaro cansou de dar murro em ponta de faca quando a pandemia da Covid-19 recomendava medidas de isolamento e restrições à circulação. Dizia que se a economia afundasse, o governo iria junto. Só não naufragou de todo porque as vacinas, que tanto procurou desmoralizar e resistiu em estimular o uso, ajudaram a reerguer a economia quando o avanço da 1ª e 2ª dose (e agora as doses de reforço) deu segurança à população. As novas variantes do vírus estão provocando aumento dos contágios no início do inverno, vitimando mais de 300 brasileiros por dia. É mais do que o dobro de dois meses atrás, acumulando 670 mil vidas perdidas. É preocupante. Mas, o número é bem menor que os 3 mil a 4 mil óbitos de um ano atrás. Estudos indicam, porém, que, sem o avanço na vacinação, o Brasil teria um milhão a mais de baixas. Seria uma hecatombe, pois os Estados Unidos, bem mais populosos, tiveram 1 milhão de mortes. A percepção do erro da gestão da pandemia (não enfrentada na dimensão requerida pela gravidade da situação, e o exemplo mais claro foi a elasticidade do Auxílio Emergencial, em 2020) vem sendo sentida, agora, na campanha eleitoral de 2022, quando Bolsonaro corre atrás do ex-presidente Lula na preferência do eleitorado.
Não foi assim quando criou o Auxílio Emergencial de R$ 600, em 22 de abril de 2020. A popularidade de Bolsonaro crescia, até que a ajuda murchou na virada de 2020 para 2021 (o governo não percebeu que a Covid-19 não respeitaria o calendário). Mas o governo nunca teve convicção sobre as virtudes do Auxílio. Primeiro, acenava com R$ 200, que era a base do Bolsa Família. Depois, começou a admitir R$ 300. Quando a questão começou a ser discutida na Câmara dos Deputados, então presidida por Rodrigo Maia (DEM-RJ), a Oposição pressionou para R$ 500, com forte resistência do ministro da Economia. Paulo Guedes, que abrira os cofres do Banco Central para o sistema bancário refinanciar dívidas de famílias e empresas, incluindo programas de garantia do emprego, sobretudo no setor de serviços, ficou contra, argumentando que ia estourar o teto dos gastos, aprovado no governo Temer. Enfim, para não dar à oposição o gostinho da vitória, Bolsonaro fez Guedes aceitar o valor de R$ 600 e ganhou simpatia. Quando o programa foi interrompido, na virada do ano, e voltou em abril do ano passado, minguado para R$ 250, cresceu a insatisfação contra Bolsonaro, agora com a escalada da inflação, que já atingira os alimentos em 2020.
A tentativa de criar um Bolsa Família (que tinha a marca do PT, que enfeixou os programas assistenciais do Comunidade Solidária, criada por Ruth Cardoso nos governos do marido Fernando Henrique, num único programa), através do Auxílio Brasil de R$ 400 não pegou. Nem a propaganda eleitoral na qual uma jovem mãe dizia que melhorou muito em relação ao Bolsa Família. Para a maioria da população (53 milhões de brasileiros chegaram a ser amparados pelo Auxílio Emergencial de R$ 600, encolhido para R$ 300 no último trimestre de 2020), o que conta não é a comparação do Auxílio Brasil de R$ 400 ao Bolsa Família de R$ 200. O AE chegou a atingir 53 milhões com R$ 600 e depois uns 43 milhões com R$ 300 mensais, incluindo os 18 milhões do BF. O AB ficou restrito a pouco mais de 18 milhões de beneficiários. Trocar a camisa do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil não ajudou: a palavra auxílio lembra o Auxílio Emergencial, que já foi de R$ 600, pago a mais do dobro de gente.
Apagando o incêndio da gasolina
O governo está atarantado e não sabe como fazer para conquistar votos na urna eletrônica que tanto demonizou. Se fosse nos tempos antigos do voto de cabresto com cédulas escritas, levadas pelo próprio eleitor às urnas, Bolsonaro já podia se declarar eleito, com o emprego dos velhos métodos de votação conduzidos pelos “coronéis” deste imenso sertão brasileiro do atraso. Dos políticos desta época, ainda estão vivas para contar histórias da “eleição em troca de sapato” figuras como o ex-presidente José Sarney e Jader Barbalho. Os “coronéis” mantinham seu poder político junto aos chefes de partidos com métodos bem arcaicos. Eles providenciavam a ida dos colonos e moradores dos rincões para as cidades do interior em caminhões pau-de-arara. Os eleitores eram instruídos a depositar nas urnas as cédulas já preenchidas pelo estafe dos “coronéis”. Em troca de promessa de voto, ganhavam um pé do sapato (esquerdo ou direito). O par só era entregue após a apuração, quando o candidato do “coronel” estivesse eleito.
Dois fatos começaram a mudar esse “sistema eleitoral” brasileiro: 1 – A TV a cores, via Embratel, na 1ª metade dos anos 70, trouxe uma nova realidade ao campo e às cidades (a comunicação instantânea a milhões); 2 – A geada do café, no Paraná e em São Paulo, em 1975, extinguiu rapidamente o colonato, com a erradicação dos cafezais e sua substituição pela soja/milho, no PR, e pela cana-de-açúcar e laranja em SP (o café mudou-se para Minas Gerais). O amplo uso da mecanização provocou uma forte migração da população do campo para as cidades. O censo de 1980 já mostrou o predomínio do Brasil urbano sobre o Brasil rural (e a perda da importância política dos coronéis). A adoção das urnas eletrônicas na 2ª metade dos anos 90 completou o avanço sobre um eleitorado mais escolarizado e melhor informado.
Bolsonaro e seus apoiadores no Nordeste e nos rincões imaginavam que a abertura das torneiras no sertão do semiárido, pela transposição das águas do São Francisco – que atravessou os governos Lula, Dilma, Temer e coube a Bolsonaro fazer os 10% que faltavam (e ainda falta alguma coisa) – iria irrigar sua popularidade na região. Não houve resposta até agora. Outros chefes da campanha, que, apesar do visual mais moderno, carregam os DNAs dos velhos “coronéis” – como o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), o ministro das Comunicações, Fábio Faria (PP-RN), o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), herdeiro dos Coelho de Petrolina, e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), cujo clã reina em Alagoas – foram mais diretos. A ideia da CPI da Petrobras (governo investigando a si próprio) parece ter funcionado só para apressar a demissão do presidente José Mauro Coelho e abreviar a aprovação do 5º presidente (Caio Paes de Andrade), a ser ratificada nesta 2ª feira (no intervalo assumiu Fernando Borges, diretor de Exploração e Produção).
Para eles, mais do que medidas emergenciais para derrubar o impacto dos impostos (ICMS) e PIS/Cofins na gasolina e etanol, e no diesel e no gás de cozinha (GLP), a um custo de até R$ 100 bilhões, cujos efeitos só seriam sentidos quando o eleitor estivesse sendo bombardeado na reta final para a votação em 2 de outubro, o que pode fazer efeito na veia é a adaptação do voto do sapato aos tempos atuais.
As medidas de redução temporária dos impostos (válidas até 31 de dezembro de 2022) tendem a funcionar como um efeito bumerangue: a inflação poderia baixar de 2 a 3 pontos percentuais até o fim do ano (muito pouco, pois cairia dos atuais 12% para 9%) e recrudesceria em 2023, quando os impostos do ICMS (cujos recursos bancam duas áreas importantes como a educação e saúde nos estados, junto com a segurança pública) voltassem a ser cobrados sobre energia elétrica, telecomunicações e combustíveis.
A tramitação do pacote aprovado sem muitas ressalvas na Câmara andou no Senado quando o relator Fernando Bezerra acolheu as emendas da oposição com salvaguardas de compensação da União aos estados por perda de receitas do ICMS, para que não houvesse prejuízo à saúde e à educação. De boa-fé, a oposição que queria, há muito, um fundo de sustentação dos combustíveis, aceitou. Erro estratégico da oposição. Os velhos “coronéis” estão mortos ou aposentados, mas seus espíritos foram seguidos pelos herdeiros políticos.
ight=”250″>O Cavalo de Troia de Bolsonaro
Mas quando foi sancionar o PLP 18, que reduzia as alíquotas do ICMS a 17% ou 18%, o presidente Jair Bolsonaro mostrou que a concessão à oposição funcionara como um Cavalo de Troia, que embutia uma traição em seu âmago: Bolsonaro simplesmente resolveu sacar sobre o dinheiro que estaria reservado à compensação pela perda de receita de ICMS. Só os estados que se comprometerem a zerar a alíquota do ICMS serão assistidos pela compensação do Tesouro. Os demais levarão um beiço.
É que o governo resolveu fazer uso, supostamente mais eficaz, do ponto de vista eleitoral, dos bilhões surrupiados dos estados (e municípios, que entram no rateio da arrecadação do ICMS). Com o aumento de 50% no Auxílio Brasil (de R$ 400 para os R$ 600 do Auxílio Emergencial), a redução de dois para um mês na periodicidade do vale gás (subsídio que era de R$ 53 a cada dois meses para a compra de um botijão de GLP de 13 kg), e ainda a elevação de R$ 400 para R$ 1 mil do “voucher” que seria concedido aos caminhoneiros, transformado em PIX, de saque imediato, além de gratuidade no transporte urbano para maiores de 65 anos. A soma disso é um pacote de R$ 35 bilhões, que estoura o teto de gastos. A justificativa é atenuar as altas do óleo diesel e combustíveis. O objetivo real é atrair eleitores que hoje estão com Lula.
Esse pacote de mais de R$ 100 bilhões em bondades eleitoreiras, com vigência até 31 de janeiro de 2022, não é apenas um engodo eleitoral. As medidas se parecem com o “sapatinho de cristal” da Gata Borralheira, que se transforma em Cinderela, com efeitos mágicos que durariam até o 1º ou 2º turno (se houver). As bondades acabam à meia-noite da véspera da posse do governo, em 1º de janeiro de 2023. E a ressaca do baile – o alto custo fiscal – vai se abater sobre a população. Quer Lula vença ou Bolsonaro se reeleja.
Para recuperar a estabilidade fiscal, esgarçada pelo casuísmo eleitoral, o Banco Central terá de manter juros altos elevados por mais tempo em 2023. Isso vai travar a economia (o Bradesco, que prevê aumento de 1,5% para o Produto Interno Bruto este ano, reduziu de 0,5% para apenas 0,3% a previsão de avanço do PIB em 2023 – ao contrário do discurso de Paulo Guedes, de que o mundo está em desaceleração e a economia brasileira “decolando”, o Bradesco prevê que a economia mundial repita em 2023 a expansão de 3,2% prevista para este ano). Juros altos tendem a frear a recuperação do emprego e dos salários. No próprio mercado financeiro, que prefere Bolsonaro a Lula, a reação inicial à cogitação das medidas resultou na 6ª feira, 24 de junho, em aumento da desvalorização do real. O que anularia, antes mesmo de 2023, parte do impacto deflacionário do pacote de redução de ICMS.
As medidas, a 100 dias do 1º turno, parecem configurar uma escancarada violação das normas eleitorais. A tradução das medidas poderia ser “compra de votos”, ou estelionato eleitoral. Com a palavra os partidos políticos que podem, e devem, recorrer à Justiça Eleitoral.
Apagando os rastros
Esconder um Cavalo de Troia não parece fácil. Mais difícil ainda será apagar os rastros, não apenas das pegadas do “sapatinho de cristal”, mas do estrago político na credibilidade do governo causados pela prisão do ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, e dos pastores-atravessadores de verbas do bilionário Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação junto a prefeitos, para construção de escolas ou compra de ônibus escolar em troca de votos dos munícipes nas eleições próximas.
As idas e vindas de Bolsonaro em torno da honorabilidade de Milton Ribeiro mostram a delicadeza do caso. Antes de sua demissão, quando as denúncias do jornal “O Estado de S. Paulo” vieram à tona, em março, Bolsonaro reiterou que “não havia corrupção em seu governo”. O presidente chegou a dizer que botaria não a mão, mas “a cara no fogo” pela honestidade do ministro. Em três dias, com a cara chamuscada, teve de aceitar a demissão do ex-pastor presbiteriano e muito ligado à sua mulher, Michele.
Quando a Polícia Federal, acionada por juiz federal, efetuou a prisão de Milton Ribeiro, na 2ª feira, 20 de junho, em Santos, onde reside, um Bolsonaro conformado disse em entrevista à Rádio Itatiaia, de Minas Gerais, que o fato “provava que a PF age livremente” em seu governo, “sem interferências” de cima. Nem bem passaram-se três dias (um prazo recorrente neste caso do MEC), vieram à tona denúncias do delegado federal que conduzira a prisão de Milton Ribeiro, acusando interferências do alto escalão da PF, para que o ex-ministro não fosse levado a Brasília, como indicava o mandado judicial.
Em mais 24 horas tornaram-se públicos os diálogos de Ribeiro com parentes e amigos que mostravam que Jair Bolsonaro chegara a ligar dos Estados Unidos, onde estava uma semana antes, na Cúpula das Américas, para alertar o ex-ministro sobre o “pressentimento” de mandados de busca e apreensão contra Ribeiro e demais envolvidos. Pela presteza com que advogados que trabalham para a família Bolsonaro entraram rapidamente no circuito para defender Milton Ribeiro e desqualificar a ação da PF contra o ex-ministro (que acabou solto por decisão do desembargador Ney Belo, cotado para uma das vagas do Superior Tribunal de Justiça, sem ter de prestar depoimento), dá para se depreender que havia um outro interesse por trás da CPI da Petrobras: evitar a mais danosa CPI do MEC.
Segue o baile da Cinderela, em ritmo de forró, no Nordeste e no interior, e ao som de funk, nas periferias dos grandes centros urbanos.
GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)