Giniton Lages conta bastidores da investigação e diz que dá ‘graças a Deus’ por informação sobre condomínio de Bolsonaro não ter vazado na época.
O DELEGADO GINITON LAGES chegou ao prédio da Chefia de Polícia, na manhã do dia 15 de março de 2018, sem saber qual era a pauta da reunião. Com a reestruturação da polícia, motivada pela intervenção federal no Rio de Janeiro, a vaga de diretor da Divisão de Homicídios estava aberta. E ele ambicionava assumir o cargo. Ao chegar, se surpreendeu com a figura de Marcelo Freixo, então deputado estadual pelo PSOL e amigo de Marielle Franco, vereadora que havia sido assassinada na noite anterior. Sem rodeios, o delegado Rivaldo Barbosa, que assumira a Chefia de Polícia dois dias antes, anunciou, olhando para Freixo: “O doutor Giniton está assumindo a DH e vai comandar as investigações desse caso”.
Lages era o titular da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense e, por isso, não esperava assumir a investigação dos crimes contra Marielle Franco e Anderson Gomes, motorista da vereadora. Seu caso de maior repercussão havia sido o assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 2011, em Niterói. Os culpados foram presos no mês seguinte ao crime.
Dessa vez, a conclusão sobre os assassinos levaria mais tempo. Marcado por desconfiança, falsos testemunhos, tentativas de obstrução da investigação e “investigação da investigação”, o caso levou às prisões de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, em março de 2019, num trabalho da equipe de Lages em parceria com as promotoras Simone Sibilio e Letícia Petriz. No mesmo dia, Lages soube que seria afastado do caso.
Ao longo de um ano, as equipes ouviram 230 pessoas, analisaram mais de 33 mil linhas telefônicas (todas foram localizadas nos trechos de deslocamento dos autores da saída no Quebra-Mar até o local de execução) e interceptaram outras 318, com ordem judicial. Desde então, outros quatro delegados passaram pela investigação, sem chegar à resposta sobre os mandantes.
Lages e o jornalista Carlos Ramos narram os bastidores da investigação no livro “Quem matou Marielle?”, publicado recentemente pela editora Matrix. “Em um caso de grande repercussão, nós tomamos a decisão de não falar da investigação”, me contou Lages. “Surgiram muitas especulações, teorias da conspiração, contrainformação”.
Conversei com o delegado sobre os bastidores da investigação em 19 de abril. Até hoje, ele acredita que alguém próximo a Marielle repassava informações sobre a agenda da vereadora. Na segunda-feira anterior ao crime, os assassinos passaram pelo endereço onde ela morou com o ex-marido, Eduardo Alves, no mesmo horário em que os dois haviam marcado uma conversa. “Eles sabiam, né? Ou tiveram acesso à agenda dela digitalmente, ou receberam essa informação de alguém”, afirmou o delegado.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com Giniton Lages.
Intercept – Você lamenta no livro a dispersão de curiosos pela polícia na cena do crime, uma vez que poderiam estar presentes testemunhas oculares. Por que não foram atrás dessas pessoas assim que assumiram o caso?
Giniton Lages – A Divisão de Homicídios foi criada em 2010. Antes disso, era muito difícil o trabalho de investigação. Mas é um processo de longo prazo. Só criar a DH não garante que, de 2010 até agora, a gente chegou ao mundo ideal. Sabemos como as coisas funcionam no nosso país. Tivemos momentos de crises muito severas na política fluminense. A Polícia Civil vem perdendo efetivo, enquanto a sociedade cresceu e as complexidades sociais aumentaram. Ou seja, perdemos capacidade de resposta. Em 99% dos casos, a Polícia Militar é a primeira a chegar ao local do crime e já inicia a preservação imediata do local. E nem sempre ela consegue se comportar da maneira ideal.
A imprensa chegou a duas testemunhas antes de vocês – uma pessoa em situação de rua e outra que esperava o semáforo de pedestres abrir, bem no entroncamento onde foram disparados os tiros. Por que não foram atrás de testemunhas, já que você menciona no livro a importância em encontrá-las?
Tão logo a gente assumiu o caso, o primeiro passo foi arrecadar as imagens. No caso da Marielle, havia uma chance de ter imagens do momento da execução. Mas vimos que [as câmeras] foram desligadas, como parte do modus operandi dos criminosos. Essa perspectiva de imagem é uma coisa que, para o investigador, é muito cara e precisa ser realizada o mais rapidamente possível, porque podemos perdê-las. Divido as equipes, e elas passam a buscar imagens. Nós já tínhamos, àquela altura, o local e a dinâmica – a perícia de local já havia desenhado isso.‘Houve um erro de procedimento, uma falha humana. Não se estava acobertando ninguém’.
Sabíamos que os autores não desceram do veículo. Havia essa perspectiva de que foi tudo muito rápido. Tínhamos o testemunho da Fernanda [assessora de Marielle que a acompanhava no carro naquela noite] e de outras duas pessoas que estavam no centro educacional em frente à cena do crime. O jornal trouxe outras duas testemunhas. Como sabíamos que os autores não desceram do carro, atiraram com o veículo em movimento, fomos buscar imagens de câmera. Uma testemunha presencial, nessa dinâmica, não me dará a autoria, então trazer o morador de rua ou a mulher que atravessava a rua não era relevante. Não houve prejuízo para a investigação. Nenhum deles seria capaz de dar o autor, mas a pedestre poderia nos dar informações para reconstruirmos a cena, por isso a levamos para a reprodução simulada.
Outros erros trouxeram prejuízo, como a falha e demora para coletar imagens do veículo dos autores do crime saindo do Quebra-Mar, na Barra da Tijuca.
É a coisa do humano e uma característica bem específica do policial civil. Eu brinco com os delegados sobre a diferença entre um policial militar e um policial civil: um PM é militar, mais rígido. O policial civil também segue uma hierarquia, mas tem maior poder de decisão quando faz um trabalho de inteligência e execução. Eu digo a ele: “Olha, vai pegar as imagens do Quebra-Mar”. Ele vai cumprir, mas ele raciocina, toma decisão o tempo inteiro.
Foram arrecadando e analisando as imagens. Só que houve um problema nesse trabalho, que foi não perceber um equívoco de captura de codec [programa utilizado para comprimir arquivos de mídia para que possam ser abertos em softwares no computador]. Era um codec com defeito que pulava a imagem, e o ideal era ele ter passado isso para um técnico. Tínhamos um policial civil que só operava com isso. Mas ele se achou capaz de fazer com a mesma técnica do outro. Errou o procedimento. E aí, como não dá para enxergar o carro ali, não coletou imagens para trás. Foi um equívoco, um erro de procedimento. Ele não estava acobertando ninguém.
Mas, se ele tivesse andado para trás, provavelmente, nós teríamos mais imagens. Ah, mas isso trouxe prejuízo? Não trouxe. E eu vou sustentar isso toda vez que falar, como foi no meu primeiro interrogatório em juízo. O que coletamos nessa revisitação ao banco de imagens foi suficiente para seguir na investigação. Talvez tivéssemos mais indícios, mais provas. Ou não, porque eu poderia não pegar o veículo se deslocando. O mais importante eu tenho: a qualificação da informação de que o veículo partiu dali, e eu pego o veículo rapidamente numa esquina imediatamente anterior. Claro que a defesa vai trabalhar com isso. Mas foi uma falha humana que não trouxe prejuízo objetivamente para o inquérito.
Não causou estranhamento o fato de o porteiro do Vivendas da Barra ter registrado, na planilha do condomínio, a autorização de entrada de Élcio de Queiroz no número da casa de Jair Bolsonaro?
Quando traço o perfil psicossocial de [Ronnie] Lessa, uma das primeiras informações é que ele reside no Vivendas da Barra. Sabíamos que ali também morava a família Bolsonaro, estávamos já no primeiro turno das eleições. Mas não trabalho com teorias da conspiração, nem fake news, trabalho com dados objetivos. A única coisa que me interessava era onde Lessa morava. Só que ali também era ambiente de um presidenciável, com movimentos controlados, com Polícia Federal. Tudo era monitorado naquele momento. Sabia que meu alvo tinha muitas relações dentro da Polícia Civil e Militar. Não era qualquer alvo e não era possível fazer qualquer movimentação ali sem que ele percebesse. Eu não podia mandar uma viatura lá para perguntar que horas ele saiu no dia do crime. Isso iria movimentar o condomínio. Todo mundo sabe de tudo em um condomínio. O porteiro sabe e informa. Então, eu sabia que não podia errar. Pedimos que essa diligência fosse feita pelo serviço de inteligência em conjunto com a Polícia Federal. Precisávamos que tirassem do condomínio essa informação muito valiosa: a movimentação de entrada e saída de visitantes, sem que se chamasse atenção de ninguém. Como a Polícia Federal entrava e saía, ninguém ia perceber se pedissem essa informação. Deu certo. Mas o nosso foco não era a família Bolsonaro. Agradeço a Deus até hoje por essa informação [sobre o Vivendas da Barra] não ter vazado na época. Talvez a gente tivesse perdido algo, ou nem tivesse conseguido prender o Lessa.
Essa missão coube a um grupo específico e, mais uma vez, um fator humano operou. Ao fazer a análise daquela planilha, o policial aplicou uma análise conjugada. Buscamos todos os nomes próximos a Lessa que entraram no condomínio com a autorização dele. A essa altura, nós já víamos Élcio como alguém próximo do alvo – e ele nos chamou mais a atenção do que os outros. O analista não percebeu o que a equipe seguinte viu: a anotação de entrada no dia do crime com o número da casa 58, onde morava a família Bolsonaro. Depois eles constataram que o áudio não bateu e, por isso, teria sido um erro material do porteiro. Nós não tínhamos essa informação naquela época, buscamos apenas pela entrada de suspeitos na casa 65, de Lessa.
“Não acredito que outras imagens foram anexadas ao inquérito para além daquelas que nós entregamos. Esquece, não existe”, afirma o delegado.
Foto: Filipe Cordon/Folhapress
É muito arriscado você acreditar numa anotação feita à caneta de alguém postado numa guarita, num entra e sai de gente. Aí toca um número, troca uma informação, é muito perigoso. Não sei o que aconteceu, não conheço a investigação da época [posterior à saída dele do caso], mas o ideal era que se fizesse uma checagem muito rigorosa.
As últimas notícias sobre a investigação indicam que a Polícia Civil só entregou parte das imagens ao Ministério Público no fim do ano passado. No livro, você cita a desconfiança das promotoras com a sua equipe. Havia, da parte de vocês, essa mesma desconfiança? Era por isso que nem todas as informações e materiais eram repassados ao MP?
Desde o início, estávamos cumprindo o protocolo. Nós trabalhávamos com a seguinte ideia: precisamos preservar tudo o que pode ser perdido. E as imagens poderiam ser perdidas. Pegamos todas as imagens do trajeto dos caras na ida, o tempo que permaneceram no local até o ponto de execução, as câmeras da saída da Marielle da Câmara dos Vereadores até a Casa das Pretas, porque queríamos averiguar se ela já estava sendo seguida por outro carro. Nós já sabemos que não era o primeiro [carro], porque ele foi direto para a rua dos Inválidos, mas queríamos saber se tinha um carro seguindo antes. Então nós arrecadamos todas essas imagens e reservamos no banco de imagens, em mídia física, em um HD de 1 Terabyte, e em nuvem. E estão lá até hoje. Eu tenho uma cópia comigo.
Quando as promotoras entraram na investigação, nós fizemos uma reunião para contar tudo a elas. Ficamos até tarde da noite. Fiz questão, até para ganhar confiança, já que elas entraram com pé atrás por tudo que tinha acontecido, e não sabiam onde estava pisando. Assim como eu, elas também recebiam informação e contrainformação. É comum isso acontecer num caso de grande repercussão. Por isso, nós entregamos tudo ao MP. Tudo que tínhamos no banco de imagem, em papel, entregamos a elas.‘Se não houvesse desconfiança sobre o sigilo entre pessoas do núcleo político da Marielle, eu teria avançado mais’.
Eu não sei se é verdade, eu não conheço nada do que foi processado em termos de investigação e diligência depois da minha saída. Eu não sei em que medida é real a afirmação de que alguma coisa não foi processada. Não sei se alguma coisa do que nós entregamos foi aproveitada nessa segunda fase, porque mudou o olhar. Posso garantir, produzimos e arrecadamos tudo. E, se nós não tivéssemos arrecadado, teria se perdido. Isso é fato. O que capta uma imagem é um aparelho eletrônico chamado DVR e, normalmente, ele é programado para preservar a imagem de sete a 30 dias. Passado esse período, as imagens vão sendo sobrepostas. Ou seja, você perde a imagem anterior. Então, não acredito que outras imagens foram anexadas ao inquérito para além daquelas que nós entregamos. Esquece, não existe. E detalhe: a equipe da Polícia Civil processou, e a do MP também pelo CSI [Coordenadoria de Segurança e Inteligência do Ministério Público].
Agora, o movimento natural é que tudo seja revisto. Se eu fosse a equipe que assumiu o caso agora, eu analisaria tudo de novo, porque algo pode ter passado despercebido, somos humanos.
Também foi noticiado um retorno à hipótese inicial de que havia um segundo carro ligado ao crime.
Uma nova análise pode chamar atenção para um segundo carro, mas estou convicto de que só um carro participou. Não acredito que um segundo olhar possa revelar o contrário, mas temos que aguardar e confiar. E eu confio muito nesse trabalho.
Veja, não há um carro junto do primeiro em deslocamento, não há um carro seguindo Marielle da Câmara até lá. O carro que supostamente teria deixado o monitoramento junto com eles, mostrado na imagem, um Logan, nós também o seguimos. E ele não vai na mesma direção do outro [dos assassinos] na fuga. Então, qual seria a finalidade? Ele não a seguiu até a rua dos Inválidos, se fosse para confirmar que ela iria mesmo até o compromisso. Qual a utilidade de permanecer ali por duas horas, se o atirador não estava dentro dele? E serviria de escolta para quê, se ninguém desceria do veículo? O modus operandi já estava escolhido: atirar com o carro em movimento. Não conseguimos identificar a placa desse Logan, então nunca entramos em contato.
Enfim, é uma informação truncada, a gente não sabe de onde veio, o delegado não disse isso na matéria. O promotor não disse isso. Quem disse foi a repórter, que não diz e não vai dizer de onde tirou a informação para preservar a fonte.
As famílias cobram, desde 2018, acesso completo ao inquérito. Como era a sua relação com os familiares e o que podia ser repassado a eles?
A família é a maior interessada nessas informações, o resto é especulação. Tudo bem que a sociedade também precisa e quer saber, mas precisa confiar em suas instituições. Essa é a relação que talvez, em alguns momentos, a gente observa: a ausência de confiança. Sabíamos que precisávamos dar esclarecimentos aos familiares. Isso a gente estava cumprindo no primeiro momento, depois as promotoras criaram uma empatia e ligação maior até assumirem esse papel [de contato com a família]. Elas me comunicaram sobre isso e eu achei ótimo, porque em determinado momento da investigação até nos falta energia e tempo para continuar fazendo essa interface, principalmente o delegado, que está muito perto das apurações. Eu tinha muita dificuldade em atender a família, então, estrategicamente, escolhemos na época o diretor da divisão, doutor Fábio, para fazer essa interface com a família e com o partido político que, naturalmente, ficou muito impactado. Marcelo Freixo foi o escolhido para fazer essa comunicação entre nós e o Psol.
Se estamos numa investigação em que se pensou muito no pré e pós-crime, sem produzir muitos vestígios, também precisamos tomar cuidado. É vital para uma investigação tão compressa manter sob sigilo o calibre, número do lote da munição utilizados, tipo de armamento empregado, se há ou não testemunhas. Na medida em que você vai dando publicidade a isso, você vai fragilizando a resposta rápida e efetiva. Isso alerta quem está sendo investigado e coloca em risco as testemunhas. Escrevi um exemplo no livro, sobre o vazamento do termo de declaração da Fernanda. Aí alguém vai dizer assim: “Poxa, mas é um direito, as pessoas têm de saber o que está se passando”. Eu penso que a gente precisa contrabalancear os ganhos e perdas. Colocar o termo de declaração da Fernanda no dia seguinte foi um crime. Esse vazamento a colocou em risco.
“Eu não podia mandar uma viatura no Vivendas da Barra para perguntar que horas ele saiu no dia do crime”, argumentou Lages. “Todo mundo sabe de tudo em um condomínio”.
Foto: Arquivo pessoal
Revelar que a vítima disse isso ou aquilo quando não há nenhum ganho é a informação pela informação, a única coisa que a gente ganha é desconfiança. O sigilo dá tranquilidade às testemunhas. Quando vamos conversar, para ganhar a confiança, a primeira coisa que precisa é garantir o sigilo, garantir que não vai vazar. Aí a pessoa confia em mim. Quando vaza, acabou.
Eu tenho certeza de que no caso da Marielle eu conseguiria muito mais coisas… Acho que se não houvesse desconfiança [sobre a garantia do sigilo] entre os assessores da Marielle, entre pessoas do núcleo político dela, eu teria avançado mais. Conseguiria adentrar um pouco mais os meandros. Os assessores políticos desenharam uma realidade que eu sei que não existe, de harmonia, só paz e amor. Não é assim. Isso contradiz o que se observa dentro de uma agremiação política. Mas narraram assim por causa dos vazamentos e por terem vindo todos acompanhados por uma advogada ligada ao partido. Então ficou evidente que havia uma desconfiança do que poderia ser vazado. Pedi ajuda ao pessoal do Psol, depois do vazamento do depoimento da Fernanda, para acalmar os assessores de que isso não aconteceria de novo. Mas eu não tenho certeza de que dei a eles a segurança necessária. Esse é um dos exemplos sobre como o vazamento pode atrapalhar uma investigação.
Em outra oportunidade, um jornalista conseguiu acesso aos 14 volumes do inquérito. Havia ali informações privilegiadas, cujo vazamento traria muitos prejuízos para investigação, revelaria informações para quem está na execução e para quem está no mando – se ele existe, o mandante recebeu informações privilegiadas pela imprensa e, se tivesse capacidade, poderia ter apagado os rastros.‘Se ele existe, o mandante recebeu informações privilegiadas pela imprensa e poderia ter apagado rastros’.
A nossa mídia está acostumada ao que tinha antes, quando a DH abria as perspectivas de investigação em casos de grande repercussão. Abruptamente, quisemos reescrever uma relação que era mais aberta. Comento no livro que talvez eu fizesse diferente hoje, colocaria um porta-voz para controlar as informações repassadas. Já estávamos em uma sociedade polarizada, então surgiram muitas teorias da conspiração, fake news, contrainformação. A família sofria muito com isso, sem saber o que era verdadeiro ou não. E os organismos internacionais, de forma muito legítima, pressionavam por respostas, já que há uma perspectiva de que o crime seja um ataque à democracia. Essa é uma resposta ainda a ser dada pela segunda fase da investigação.
Você afirma no livro que acredita na possibilidade de haver um informante. Por que aposta nessa hipótese?
Veja, pela experiência policial, isso é uma hipótese. Os autores se deslocaram de forma muito devagar, muito tranquila, tudo estava previamente definido. Elas atrasaram para chegar ao evento. Eles não tinham pressa de chegar, não foram mais rápido, então tinham informação privilegiada. Eles já tinham arrecadado essa informação em um momento anterior ou receberam enquanto se deslocavam? As duas hipóteses estão em aberto. Isso passa pela averiguação de todo mundo que estava na Câmara, seja no mandato dela ou no de outros vereadores. Isso, a segunda fase precisa enfrentar: havia alguém dando informação privilegiada.
A gente tentou buscar essa pessoa ouvindo e interceptando pessoas, em nuvem, com quebra de antena, em [quebra de informações] telemáticas [tecnologia usada para captar a localização de celulares por meio dos dados transmitidos pela rede]. Fizemos esse trabalho e encontramos muita gente na cena do crime, dentro da Câmara, no entorno da Câmara, na área de monitoramento, na execução usando o telefone bucha [números cadastrados ilegalmente com o CPF de terceiros], e essa informação não levou para lugar nenhum. A Câmara recebe muita gente. Nós tivemos o cuidado, por exemplo, de pedir todo o registro de entradas e saídas de um período elástico, não lembro agora quanto tempo antes e depois do crime. Fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que trafegam. Qualquer pessoa que entrou lá poderia estar dando informação, então é muito complexo, muito difícil. Mas, para coleta de informação, é evidente que a gente tinha isso no nosso radar, porque daí você traz informações. Por exemplo: quais celulares as pessoas usam, com quem elas falam, e aí você abre redes de conexão e tenta destrinchar quem são as pessoas com quem elas falam dentro do local em que se dá um pré e pós-crime.
Houve uma denúncia sobre um funcionário da Câmara cujo trabalho era monitorar os passos da Marielle. Vocês chegaram a interrogá-lo, certo?
Eu soube que isso está sendo revisitado pela equipe de investigação. Isso aí foi algo que nós trabalhamos, dentro dessa perspectiva de que na Câmara alguém repassava informação. Nós ouvimos essa pessoa, mas ela trouxe um álibi. A gente ficou de avançar nisso, tirando dele o álibi ou não. É preciso aprofundar isso. Durante a investigação, existiu um grupo de trabalho só em cima disso. Ele não foi o único. Investigamos outras pessoas. Mas uma hora tivemos de focar, otimizar nossa energia para processar os dados da quebra telemática. Era um volume absurdo. E o foco, naquele momento, passou a ser pegar os executores. Por que quando você os prende, existe a possibilidade de descobrir a motivação por interrogatório, vestígios ou na busca e apreensão. Mas foi uma coisa que não aconteceu, até hoje eles não abriram a boca. Essa busca por um informante foi algo que ficou pendente. E quero crer que a equipe atual vai revisitar e avançar nisso.
CAROL CASTRO ” THE INTERCEPT” ( EUA / BRASIL)