O papel de articulador, de Lula, ganhará enorme eficiência com o uso recorrente das redes sociais. Cada vez mais, será essencial que todos saibam o que todos estão fazendo, para que a reconstrução nacional ganhe consistência e visibilidade.
Peça 1 – os modelos de capitalismo
Os estudos do economista russo Sergey Glazyev são o que de melhor li recentemente, sobre a luta ideológica por trás da disputa Estados Unidos x China. Aqui, um resumo de suas ideias: “Xadrez da nova ordem mundial e do fim do império do dólar”.
São dois modelos capitalistas, ambos em torno das duas entidades centrais: a burocracia estatal e os bilionários, oligarcas ou o nome que se dê a essa articulação do grande capital. A diferença entre o modelo americano e o chinês se dá na maneira como os dois poderes hegemônicos se relacionam. Os demais atores são secundários, demais poderes de Estado, cidadãos, trabalhadores, empresas e setores fora do circuito do poder.
No modelo americano, há uma simbiose entre os dois grupos – a alta burocracia e as grandes corporações – , com as grandes empresas representando a extensão do poder do Estado. É comum a porta giratória – o alto funcionário indo trabalhar na empresa que ele regulava -, assim como a parceria nas grandes operações internacionais. Vide as relações com o Pentágono dos grandes escritórios de advocacia a quem a Lava Jato entregou as grandes estatais brasileiras. Ou a absoluta naturalidade com que se aceita que o mais radical falcão americano, o Secretário de Estado Antony Blinken, seja investidor da indústria de armas.
Essa promiscuidade criou uma corrupção intrínseca ao modelo, que comprometeu irreversivelmente seu dinamismo, conforme se verá a seguir.
No modelo chinês há uma separação entre as duas estruturas, com a preponderância da burocracia estatal.
Peça 2 – as diferenças nos modelos de desenvolvimento
Em ambos os casos – nos EUA e na China – , o desafio consiste no modo de administrar o terceiro elemento, a opinião pública, uma entidade difusa, composta de consumidores, pequenas e médias empresas, movimentos e setores econômicos que não integram o bloco de controle, o grande capital. O desafio consiste em dividir as sobras do banquete de maneira a manter o terceiro grupo sob controle.
No modelo chinês, a legitimação se dá pela inclusão social e redução da miséria. Por isso, há foco na produção de bens, na economia industrial e na geração de emprego. No americano, há a preponderância do capital financeiro, com foco total no corte de custos.
No modelo chinês buscou-se o crescimento como única maneira de incluir a população e legitimar o regime. No americano, com o modelo já estratificado, a emissão de moeda se dispersou em bolhas especulativas. A China cresceu; os EUA estagnou. E a disputa pela hegemonia global é tema para outro artigo.
Peça 3 – as diferenças no modelo político
Outra diferença – também decorrente desse jogo – é no modelo político: o Ocidente com a democracia imperfeita e a China com sua autocracia.
Numa autocracia, tudo depende da cabeça do ditador ou do grupo de controle. No caso da China, há uma autocracia esclarecida.
A democracia imperfeita tornou-se o símbolo do modelo ocidental pela óbvia razão de permitir um controle efetivo sobre o jogo político. Desde o século 19, há alianças entre o grande capital, imprensa, Judiciário e política, modelo mais previsível que a cabeça do ditador de plantão, ainda que aliado.
O capital se articula internacionalmente a partir dos centros financeiros centrais – em fins do século 19, a banca londrina; depois, Wall Street – em parceria com os capitais nacionais.
No século 20, a entrada dos grandes grupos internacionais no Brasil se deu com dois movimentos simultâneos: trazendo suas próprias agências de publicidade (influenciando a mídia) e contratando grandes escritórios de advocacia. E, obviamente, montando as parcerias com os grupos nacionais.
Os nacionais são relevantes para garantir o poder político e jurídico e identificar os grandes negócios públicos locais.
A conquista do poder político depende da cooptação de um partido político, do financiamento de parlamentares e do apoio de três instituições democráticas essenciais: mídia, Judiciário e poder militar.
São a elas que recorre quando o ritmo da inclusão coloca em risco o controle do poder político. No Brasil esse pacto foi nítido nos golpes de 1954, 1964 e 2016.
A retórica política é sustentada pelos financistas (como eram denominados no final do século 19 os economistas de mercado).
A retórica é a mesma de cem anos atrás:
- Trata todas as benesses do mercado como se fossem princípios científicos universais.
- No oposto, demoniza qualquer gasto social como populismo que impede o funcionamento eficiente da economia.
- Mantém acesa a fantasia do pote-no-final-do-arco-íris, com a fábula da lição de casa. Se os sacrifícios propostos forem aceitos, o resultado final será bom para todos.
- A cada ano de promessa não-cumprida, levanta o argumento de que o sacrifício foi insuficiente e relaxar a lição de casa significará desperdiçar todo o sacrifício anterior.
- Fantasia os casos de sucesso individual, como se fossem disponíveis a qualquer um.
Peça 4 – a superexploração e a crise das democracias
Quando exagera-se na superexploração, a reação contra o regime torna-se ampla e resultado – como no início do século – é a eclosão de formas alternativas de regime, como o nazi-fascismo e o comunismo.
Os horrores da guerra trouxeram um período de bom senso, em que se procurou reduzir a superexploração do período anterior. Houve um controle maior dos fluxos financeiros, estabilidade nas moedas nacionais e investimento em desenvolvimento econômico. Foi o período de maior prosperidade da história moderna até a volta do velho modelo no governo Richard Nixon, com o fim do acordo de Bretton Woods.
Paradoxalmente, grandes personagens dessa revolução humanista foram cientistas brasileiros tratados como subversivos pelo regime militar – Celso Furtado, Paulo Freire, Josué de Castro, Anísio Teixeira (cujo modelo pedagógico serviu de base para a Coréia do Sul).
O modelo de desenvolvimento ocidental consolidou-se, então, em cima dos seguintes princípios:
- Ritmo lento e gradual de incorporação dos vulneráveis, de maneira a controlar as pressões das massas.
No caso brasileiro, o movimento é lentíssimo. Só agora a questão racial veio para primeiro plano. As cotas raciais não têm 15 anos e foram conquistadas a fórceps. Os movimentos dos sem-terra ainda são criminalizados, assim como o dos sem-teto. Os direitos das mulheres só são reconhecidos em ambientes mais modernos.
- Políticas sociais superficiais
Direito à saúde, educação, segurança e alimentação deveriam ser conquistas universais. Riquezas do subsolo, exploração das terras, mercado interno deveriam ser tratados como bens públicos e as rendas derivadas distribuídas de maneira a permitir a universalização dos direitos. Nas democracias imperfeitas, sáo substituídos por placebos, políticas sociais restritas. Só a partir dos anos 2.000 o Brasil ousou políticas sociais um pouco mais amplas, desmontadas com o golpe do impeachment.
- Inclusão política lenta.
Apenas no final dos anos 80 houve a liberação que deu a conformação aos novos partidos políticos, permitindo pela primeira vez um partido de sindicalistas.
- Algumas pausas para redução da superexploração
Em geral, ocorrem após grandes tragédias ou grandes períodos de compressão social. Foi o caso da Constituinte brasileira após o período profundamente anti social da ditadura. Ou no período lulista, após a financeirização do período fernandista e das crises após-1999.
Peça 5 – a eterna República Velha
O aumento da desigualdade econômica, devido à extrema financeirização da economia, no período fernandista, e da crise pós-1999 trouxe ameaças concretas ao modelo. O interregno Lula foi uma bóia de salvação para a estabilidade política do país. Soube aproveitar o boom das commodities e, sem comprometer os ganhos do mercado, implementou políticas sociais eficientes, tirando o país do mapa da fome e abrindo espaço para formas democráticas de militância social – como o Movimento dos Sem Terra, o Movimento dos Sem Teto, os recicladores de lixo, as pequenas e microempresas – e algumas políticas desenvolvimentistas de sucesso relativo.
Foi movimento similar ao pré-1964, com um partido trabalhista ascendendo politicamente, um grupo de intelectuais humanistas, uma redução, ainda que tímida, das desigualdades sociais e movimentos se organizando para o jogo democrático.
O resultado seriam políticas mais inclusivas, fortalecimento da democracia brasileira – com a inclusão política de novos grupos -, fortalecimento do desenvolvimento – com ampliação do mercado de consumo e redução da superexploração.
Não é por outro motivo que Lula se tornou um símbolo da paz mundial e da estabilidade democrática, inclusive nos mercados internacionais, à altura de um Mandela.
Se, em ambos os casos, 1964 e 2016, não havia ameaças ao regime – a não ser como retórica para a oposição -, e um arrefecimento da superexploração, essencial para a estabilidade do modelo, qual a razão dos golpes de Estado? Aí entra a faceta mais atrasada do país, a síndrome da República Velha. De um lado, o preconceito social arraigado, contra qualquer forma de trabalhismo. De outro, negócios! E um componente externo das grandes disputas geopolíticas globais, expresso na política anticorrupção da OCDE e do Departamento de Estado.
A “Ponte para o Futuro” – implementada por Michel Temer – nada mais foi do que o passaporte para os grandes negócios públicos e o desfecho de uma operação, a Lava Jato, que juntou os três grupos centrais de aliança do grande capital – mídia, Judiciário e Forças Armadas -, mais o Departamento de Estado americano.
A maneira como o Supremo Tribunal Federal convalidou o desmonte da Petrobras, perpetrado pelo Centrão, é uma das peças mais ilustrativas da irresponsabilidade institucional brasileira. Não analisou o papel da empresa no desenvolvimento tecnológico do país, nas cadeias de produção, na segurança energética, no desenvolvimento de novos setores.
O mesmo ocorreu com a reforma trabalhista, na qual se quebraram as pernas dos sindicatos e das ações trabalhistas. Em vez de uma modernização da legislação, necessárias para as novas formas de contrato, o STF enfraqueceu radicalmente a representação trabalhista em uma fase de tecnologias eliminadoras do emprego.
Mais que isso, graças a “iluministas” como Luís Roberto Barroso, houve o fortalecimento quase irreversível da ultradireita, da anticiência, da apropriação do orçamento público pelo Centrão e da ameaça recorrente a golpe de Estado por um presidente ligado aos porões da ditadura.
Peça 6 – a radicalização como apelo político
Nos próximos anos, haverá dois desafios pela frente. O primeiro, o de tirar o país das mãos do crime organizado. O segundo, o de administrar uma agenda de conciliação.
Não será fácil.
O fracasso da democracia, expressa no golpe do impeachment, fortalecerá enormemente o discurso radical da esquerda. E a crise internacional impedirá o jogo do ganha-ganha que marcou o primeiro pacto do lulismo.
Depois do período de carência, haverá enorme pressão sobre o governo, não apenas pelos conservadores, mas também pelos progressistas.
Lula já se impôs dois desafios: tirar o controle do mercado sobre a política econômica e colocar o pobre no orçamento. Não é tarefa trivial, mas não basta. O caminho a ser percorrido será o do aprofundamento da democracia em todos os níveis.
A construção das políticas econômicas terá que ser amplamente participativa, para poder consolidar o grande pacto nacional.
A economia industrial terá que retomar os grandes pactos entre setores industriais e centrais sindicais. Na gestão da economia, entender o país como uma federação e os municípios como os entes federados centrais. Terá que convocar fóruns de secretários do planejamento, da educação, da assistência social na formulação das grandes políticas públicas.
As pequenas e micro empresas têm que ser prioridade, através da articulação do Sebrae com institutos de pesquisa e com grandes empresas, a exemplo do Movimento Empresarial pela Inovação. As políticas sociais precisam incorporar a tecnologia social desenvolvida pelo MST e MTST.
O descrédito a que a democracia foi jogada pela ação conjunta do Judiciário-Mídia-Forças Armadas-Congresso exigirá ideias claras e ações objetivas. Senão a polarização se tornará irreversível.
O papel de articulador, de Lula, ganhará enorme eficiência com o uso recorrente das redes sociais. Cada vez mais, será essencial que todos saibam o que todos estão fazendo, para que a reconstrução nacional ganhe consistência e visibilidade.Veja mais sobre:impeachment, Lula
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)