A PAIXÃO DE GRAMSCI DIANTE DA CATÁSTROFE DO SÉCULO XXI

A aposta na paixão de Gramsci é fundamental diante da catástrofe em curso na cena contemporânea nesta Páscoa em meio a guerras, fome, desigualdade e epidemias

Não possuí virtudes morais quem quer. Não se escolhe o caminho do martírio como uma virtude espontânea dos que sofrem A tragédia da vida dos mártires na atualidade se relaciona com o drama das lideranças que resistem diante da catástrofe no tempo histórico. Considerada desde o prisma da globalização neoliberal, a grandeza humana se apresenta na medida em que o “projeto” de um indivíduo se revela em “situação”, como medida e tensão da vida coletiva na ligação visível entre o ser e a consciência, como engajamento e, ou, como escolha de caminhos de emancipação. 

Nas ruínas da guerra e na dor da prisão as “Cartas de Cárcere” de Antonio Gramsci são um misto de poética, narrativa ética, de escrita de sentido múltiplo, de luta, de comunicação e de testemunho na adversidade do encarceramento no regime fascista italiano. Num sistema em que a cunhada, os amigos, o partido e a censura da prisão se mesclam, em muitas “conjunturas” que vive Gramsci, que envolvem programa de estudo, demandas e petições jurídicas, desconfiança do partido, tratamentos de reflexões educativas, contatos e respostas para familiares, pedidos e reclamos com as marcas da dor, da inteligência e do protesto. Na prisão a vida deste militante e intelectual do proletariado internacional, nascido na Sardenha (Itália), se manifesta como luta pela dignidade humana através desta escrita tão atual, tão reconhecida e de tanta precisão no interior de uma forma controlada e cheia de restrições quanto a epistolar na circunstância carcerária. 

Se faz sentido falar de sujeito na primeira pessoa em tempos de guerra, as “Cartas de Cárcere” de Gramsci são um grito de dor, um manifesto e um dispositivo de luta pelo que mais importa em matéria de convicções, afetos, e luta por direitos de um prisioneiro político. Um documento biográfico, histórico e literário, do principal quadro antifascista da Itália, segundo reputavam seus inimigos e se dizia as mobilizações de massas da frente em toda a parte. A obra de Gramsci, seus “Cadernos de Cárcere” e suas “Cartas de Cárcere”, tem merecido um tratamento editorial institucional, como patrimônio nacional da língua e da cultura italiana. Uma obra que já vinha sendo traduzida em dezenas de línguas em todos os continentes. 

As milhares de páginas de seus artigos jornalísticos, documentos, estudos, cadernos e cartas são um instrumento potente de cultura política. A parte elaborada no cárcere tem uma forma aberta involuntária e necessária, permitindo uma grande disputa filológica, acadêmica e política dos escritos de um dos mais originais pensadores marxistas. Gramsci foi um militante comunista que afirmava sua convicção num “humanismo integral”, na grande política, pela construção dos instrumentos e das práticas com base na questão política e pedagógica da hegemonia. Afirmando a virada para a “guerra de posições” travada desde a complexidade que destaca a materialidade e o poder que depende de uma certa visão alargada da soldura e das traduções que criam uma nova cultura, assim como, dos processos chamados de ‘revolução passiva”. Afinal, toda hegemonia atua com base numa pedagogia, por meio da qual se articulam os sentidos que unificam forças na luta no terreno da ideologia, onde tomamos consciência do mundo e, participamos de alguma visão compartilhada de ação em disputa diante de algum tipo de “conformismo”.

A presença e a autoridade intelectual gerada pelo reconhecimento de Gramsci ameaça a mediocridade, a crueldade, o cinismo e a morbidez das forças do tipo fascista. Contra a barbárie Gramsci reafirmou a convicção no devir transformador conduzido pelo intelecto coletivo, sustentado na convicção de que: desde a crítica ao senso comum até as formas culturais e científicas mais complexas, deveriam ser removidas as barreiras da dominação, com destaque para a educação, de forma que os grupos sociais subalternos pudessem confirmar, com base nas suas formas de organização autônoma, o fato de que todas e todos somos filósofos. 

Para Gramsci, transformar o mundo é possível desde que se possa construir um novo bloco histórico, desde a dimensão constitutiva de uma categoria de intelectual, que molda e solda a estrutura social, lida na chave radicalmente democrática de uma possibilidade histórica de acesso ao conhecimento gerada política e tecnicamente na cena contemporânea. O que se pode verificar, especialmente, na relação com os modos de aprendizagem da linguagem e da subjetividade, desde as funções intelectuais presentes através dos aparelhos de hegemonia, na cultura, nas relações de produção e na coerção ampliada, revestida pelo consenso nos países capitalistas onde houve avanço industrial e urbano, de produção e de consumo de massas.

No momento da Páscoa, a memória escrita na “oficina” de quem resistiu na agonia do ciclo trágico aberto pela derrota do processo da revolução do proletariado europeu, na primeira metade do século XX, no cárcere fascista, se torna um instrumento, obra e referência para superar a necropolítica no mundo atual. Na luta contra a mistificação do binômio neoliberalismo-fascismo, no contexto do sistema mundo em crise, do capitalismo histórico no século XXI, podemos ler, pensar e sentir uma dimensão ética explosiva na força imanente da poética presente nas ‘’Cartas de Cárcere’ de Antonio Gramsci. 

A que valores não devemos renunciar dentro desta bela leitura que revela um projeto humano demasiadamente humano, que narra a “vis crucis” do corpo e da alma, do martírio, da grandeza do que chamamos a paixão de Gramsci? Um projeto existencial tão forte do ponto de vista intelectual e moral, posto que das “Cartas de Cárcere”, como uma das chaves de leitura dos “Cadernos de Cárcere”, se extraí uma noção de eticidade que combina convicção e responsabilidade diante do real do fascismo e do refluxo da conjuntura revolucionária mundial. O que nos permite sentir a potência de uma vida longe da hipocrisia, posto que afirma com todas as forças a vontade de viver, como um ângulo da “filosofia da práxis”, destacando uma abordagem político educativa. Gramsci acentua na sua vida e obra o valor da consciência crítica diante da crise orgânica, no entre guerras, desde a perspectiva de ação na conjuntura que atravessava os centros do capitalismo mundial. Destacou a morbidez, a alienação que golpeia a política e o e o peso sistema do penal, com a desmedida destrutiva e assassina do fascismo. Dentro das singularidades de uma linha do tempo, do lugar a que foi forçado, a história e a leitura da vida de Gramsci, tem muito a nos dizer em face da mediocridade dos falsos mitos que lançam seus povos na ruína.

A força e o drama histórico e existencial presentes nas “Cartas de Cárcere”, inspira e serve para sentirmos a paixão pela liberdade como a chave que sustenta a paixão revolucionária de Gramsci. Na luta pela dignidade humana como um projeto intelectual e moral no terreno da batalha cultural, que alcança um grau elevado de força teórica para pensar o poder, a política e a organização do “novo príncipe ”nos “Cadernos de Cárcere”. Será que desde Antonio Gramsci a crítica da cultura pode aprofundar a crítica das armas? De todo modo a aposta na paixão de Gramsci é fundamental diante da catástrofe em curso na cena contemporânea nesta Páscoa de 2022 em meio a guerras, fome, desigualdade e epidemias. 

PEDRO CLÁUDIO CUNCA BOCAYUVA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

Professor do PPDH do NEPP-DH/UFRJ

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