- Muitos nem desconfiam, mas o celebrado jornalista português madeirense, Martins Araújo, de 82 anos, meu querido amigo, radicado em São Paulo desde 1954, homem refinado, ganhou a vida, aqui, por 40 anos, dedicando horas e horas de sua jornada semanal a vender, como autônomo, livros e enciclopédias de editoras portuguesas – obras, quase todas, publicadas pela prestigiosa Lello, do Porto, e a arrojada Verbo, de Lisboa. Oferecia ainda lançamentos da progressista Editora Brasiliense – fundada em São Paulo, em 1943, pelos escritores Caio Prado Junior (1907 – 1990) e Monteiro Lobato (1882 – 1948).
- Às noites e fins de semana, a partir de 1964, iniciou-se no jornalismo e passou a atuar no rádio, como comentarista esportivo, enfocando as competições portuguesas, a acompanhar, sobretudo, o formidável Benfica, do qual é adepto, e o Marítimo, do Funchal, capital de sua Ilha da Madeira natal. Mas, durante o dia, com sol ou chuva, ia de porta em porta, bairro por bairro, como uma espécie de ‘mascate literário’, a caçar novos clientes – o que era bastante comum entre as décadas de 1950 e 1980.
- E foi assim, como livreiro, que ele, por acaso, deparou-se, em 1959, com o oficial da Força Aérea, Humberto Delgado (1906 – 1965), o lendário ‘General Sem Medo’, exilado então na capital paulista, após ter perdido as eleições presidenciais de 1958, como candidato oposicionista, para o Almirante Américo Tomás (1894 – 1987), apoiado pelo governo do Professor António de Oliveira Salazar (1889 – 1970).
- Delgado fugiu para o Brasil, posteriormente, por se sentir ameaçado pelos adversários em Lisboa. E tinha razão. Acabaria assassinado, seis anos depois, em 1965, em uma emboscada da PIDE, a polícia política do regime salazarista, próximo à fronteira portuguesa, na localidade de Olivenza, Província de Badajoz, na região espanhola de Extremadura.
- Planejava ingressar, clandestinamente, em Portugal. Seus passos, porém, estavam sendo seguidos por informantes dos serviços secretos dos dois países da Península Ibérica e foi morto com um tiro na cabeça. Foto de Delgado ilustra a coluna.
- O encontro de Martins Araújo com o ‘General Sem Medo’, de caráter dinâmico e extrovertido, aconteceu no italianíssimo bairro paulistano da Mooca, quando o rapaz, aos 19 anos, bateu à porta da empresa Cestas de Natal Amaral, à Rua Canuto Saraiva. Identificou-se como livreiro e pediu autorização para mostrar aos funcionários da firma os compêndios que levava. O porteiro percebeu, imediatamente, pelo forte sotaque luso, que o livreiro era português, e, sorrindo, disse-lhe: “Temos aqui um compatriota militar seu trabalhando conosco”. Martins Araújo não hesitou e respondeu de bate-pronto… “Só pode ser o Delgado, certo?” Era sim.
- O porteiro foi chamar o ‘General Sem Medo’ e ele, ao receber o madeirense, olhou atentamente as obras que trazia na maleta e gostou especialmente de uma sobre relações públicas, afinal, exercia essa função à época na distribuidora de cestas natalinas. Adquiriu o livro e se tornou cliente do jovem vendedor enquanto esteve em São Paulo. Fico a imaginar que bela entrevista Martins Araújo teria feito com o ‘General Sem Medo’ se, em 1959, já fosse, pelo menos, aprendiz de repórter. Seu encontro casual com Delgado teria repercutido em Portugal e no Brasil. Convenhamos, entretanto, o futuro jornalista conseguiu a proeza de transformar em freguês o desafeto de Salazar. Quinze anos mais tarde, na semana seguinte ao 25 de Abril de 1974, quando da Revolução dos Cravos, Martins Araújo estava em Lisboa e muito se emocionou, à Avenida da Liberdade, com a festa do Primeiro de Maio. Veio-lhe à mente, em meio às comemorações, o seu cliente da Mooca e o quanto este ficaria feliz se lá também estivesse.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTÜGAL)
Albino Castro ´é jornalista e historiador