A HORA DA ” TRAIRAGEM”

CHARGE DE NALDO MOTTA

É bom ficar de olho para ver quem trairá quem até as eleições. Sobretudo o Centrão

Bem ou mal, a representação política no Brasil, desde o Império, passando pela República, pelas interrupções do processo democrático (nos anos 30, com Getúlio Vargas e no regime militar, de 1964 a 1985), até os dias de hoje, sempre refletiu o grau de representatividade democrática da sociedade. Quando o Brasil era uma sociedade rural e escravocrata, no período imperial, só a elite rural participava da vida política, oxigenada pela vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, que instalou na capital, Rio de Janeiro, a burocracia do Estado Imperial, parcialmente herdada por D. Pedro I e D. Pedro II. Na República, já com a abolição da Escravidão, a representatividade política continuou concentrada na oligarquia rural, sob a vigência da “república do café com leite”, (o café era representado por São Paulo e o leite por Minas Gerais). Com a mudança da capital para Brasília, e o pequeno interregno até a imposição do golpe militar, que baniu da vida política as representações sociais do centro para a esquerda, a cidade virou refúgio da burocracia que encastelou-se no Planalto Central e mais distante ficou dos anseios da população de um país que se urbanizava.

O processo se acelerou, de forma caótica, quando as geadas de 1975, que destruíram os cafezais de Paraná e São Paulo, não só puseram fim ao regime do colonato, iniciado em meados do século XIX, quando a escravidão já tinha os dias contados pela Lei Aberdeen e os fazendeiros paulistas e paranaenses trouxeram famílias de emigrantes europeus (italianos, espanhóis e alemães, com conhecimentos de tecnologia agrícola e outras habilidades, como marcenaria e metalurgia) para cultivar o café nas ricas terras roxas dos dois estados. Ao contrário da escravidão, na qual os negros não tinham liberdade nem acesso à terra para o cultivo de algo para seu sustento (precariamente mantido pelos senhores de escravos), os emigrantes e suas famílias tiveram acesso ao meio de produção, podendo plantar (e repartir em regime de meia ou terça – 50% ou 33%) com o dono da terra o resultado do cultivo de milho, feijão, mandioca e banana nas “ruas” do café. Esse acesso à terra foi determinante para que as famílias dos agricultores europeus evoluíssem na escala social brasileira, enquanto os afrodescendentes (que vieram ao Brasil cativos e apartados de suas famílias), sem acesso à terra quando foram libertados e sem apoio de políticas educacionais para a promoção social, permaneçam até hoje nos estratos inferiores da escala social brasileira, ao lado de descendentes de índios que perderam seus territórios e identidade e nordestinos sem-terra, ou sem água, quando conseguiram acesso ao chão. A ruptura do regime do colonato mudou radicalmente a face agrícola e a composição da população brasileira, que já nos anos 80 tornou-se predominantemente urbana.

Do ponto de vista social, a década compreendida entre o final dos anos 70 e o fim dos anos 80 foi um duro período de tensões. A desorganização na produção de alimentos básicos (a partir do fim do colonato) e a introdução das monoculturas de cana-de-açúcar e laranja onde antes reinava o café no planalto paulista fez a inflação disparar, num período em que o Brasil estava fustigado pela vulnerabilidade cambial para importar petróleo, cujos preços explodiram em 1973, quando o país produzia apenas 15% do petróleo consumido, e dobraram em 1979, após a eclosão da guerra Irã-Iraque. Quem hoje sofre as atribulações da alta de preços das commodities agrícolas, minerais e energéticas provocadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pelas sanções econômicas e financeiras à Rússia de Vladimir Putin, não imagina o que era aquela época, que culminou com um processo de escalada de juros pelo Federal Reserve dos Estados Unidos, comandado por Paul Volcker, um homem de dois metros de altura, que levou os juros a quase 20% ao ano (o histórico oscilava entre 5% e 6,5%). Todos os países emergentes que tomaram empréstimos externos para reciclar suas economias ao choque do petróleo – entre os quais o Brasil, que quebrou em setembro de 1982, após o México declarar moratória em agosto – entraram em longa crise de liquidez, com graves reflexos econômicos e sociais. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que surgiu na cena econômica brasileira no começo dos anos 80, após doutorado na Escola de Chicago, do guru Milton Friedman, podia fazer uma comparação com os atuais dias difíceis para o Brasil e o mundo e reconhecer como, então, era bem mais difícil fazer do que criticar.

Mas Paulo Guedes sequer faz “mea culpa” pelos erros do excesso de liberalismo em 2020. Graças aos técnicos da Embrapa, que desenvolveram sementes de grãos adaptáveis ao cerrado do Centro-Oeste e Oeste da Bahia e Minas Gerais, o país tornou-se, ao lado do café e do açúcar, introduzidos no Brasil-Colônia, o maior exportador agrícola de soja, de carne bovina, de carne de frango (que usam soja e milho na ração, assim como os suínos), de algodão, além de suco de laranja. Pois este Brasil, em setembro de 2020, com os produtores agrícolas, impulsionados pela escalada do dólar, que não foi corretamente administrado pelo governo (Ministério da Economia e Banco Central, dois dos três assentos no Conselho Monetário Nacional), exportando tudo, ficou sem estoque regulador (completa imprevidência) e teve de importar arroz, que subira mais de 70%, leite em pó e soja em grão para fazer óleo de soja, que subira mais de 100%. Guedes também não reconhece a competência da Petrobras em tornar um país de dimensões continentais como o Brasil virtualmente autossuficiente. Agora, é mais fácil botar a culpa no Putin. Antes da urgência da guerra, já se fazia necessária a adoção de uma política de amortecimento das altas sazonais do petróleo e do gás no inverno do Hemisfério Norte. Fundos para isto estavam bem à mão para adotar os subsídios: os altos lucros da Petrobras (que produz o barril a menos de US$ 20 no pré-sal e passa a ter um lucro extraordinário quando o petróleo sobe a mais de US$ 100 por barril). Mas estes lucros, em vez de reverterem para a garantia de abastecimento acessível à sociedade – como deveria ser a preocupação primordial da produção agrícola – foi redistribuído, conforme a cartilha liberal, para os acionistas da Petrobras, inclusive a União. Governos devem ser eleitos para arbitrarem conflitos sociais e econômicos em prol da sociedade, a maioria, e não em proveito de uma minoria de investidores, que nem estão no Brasil.

A urgência da eleição

O que mudou não foi a guerra da Rússia na Ucrânia e suas consequências. O que mudou foi o calendário eleitoral. A seis meses do 1º turno da eleição que terá lugar em 2 de outubro, motivo para a revoada geral dos administradores que estavam nos governos (federal, estaduais e municipais) e tinham que se desincompatibilizar para concorrer em outubro, ou políticos que querem trocar de ninho para garantir representatividade na Câmara Federal, Senado ou Assembleias Legislativas, ou simplesmente conseguir o escudo da imunidade parlamentar para não serem alvos de inquéritos e condenações judiciais por improbidade administrativa no exercício de funções. Atrás nas pesquisas eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro, que se filiou no começo do ano ao PL do notório Valdemar Costa Neto, que cumpriu vários anos de prisão como condenado no “mensalão”, foi o maior responsável pela revoada, trocando 11 ministros, fora uma penca de altos funcionários na burocracia do governo. Na maior parte dos casos, assumiram os secretários-executivos. O que era ruim, continua pior. Ou, como diria o Barão de Itararé, “De onde não se espera nada, é que não virá nada mesmo”. Mas os candidatos que patinavam nas pesquisas e não ousavam apresentar suas verdadeiras faces, tiveram de se render à hora da verdade. Por enquanto, concentrando votos em Lula e Bolsonaro. O ex-juiz da Lava-Jato e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública de Jair Bolsonaro, que deixou o cargo atirando em 23 de abril de 2020, após a reunião ministerial, em plena pandemia, quando o presidente só demonstrou preocupação de proteger seu clã e resguardar amigos, com o uso da máquina pública da Polícia Federal e influência nos tribunais de Justiça, foi o 1º a desistir da candidatura. Trocou o Podemos pelo União Brasil, fusão do PSL com o DEM, mas foi enquadrado pela conveniência da costela do DEM de fazer dobradinha com Lula em alguns estados, sobretudo do Nordeste, para apenas pleitear um cargo de deputado federal por São Paulo, onde poderia puxar votos para a legenda.

O governador de São Paulo, João Dória Jr, do PSDB, repetiu mais de seis décadas depois o blefe de um ex-governador paulista. Jânio Quadros, abrigado por conveniência na UDN, da qual nunca foi soldado, queria mais poder e renunciou à candidatura no começo de 1960. Era apenas uma manobra para se libertar da influência da UDN, inclusive do seu vice, o nobre político mineiro Milton Campos (como o voto para vice era avulso, Jânio, pensando longe, incentivava a dupla Jan-Jan, para estimular votos no vice do marechal Lott, candidato do PTN, João Goulart). Eleito, aproveitou uma ida de Jango à China (num tempo de voos limitados e parco uso do telex) para fabricar uma crise militar renunciando no Dia do Soldado, 25 de agosto, imaginando que teria respaldo das Forças Armadas para ampliar seus poderes perante o Congresso, enquanto Jango, rejeitado pelo estamento militar, estava distante. Deu-se mal porque o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, leu a carta de renúncia (um ato de vontade unilateral) e o cargo ficou vago. Os militares, de fato, se insurgiram contra Jango, defendido pelo cunhado, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, que lançou a “Campanha da Legalidade” e, no impasse, adotou-se o parlamentarismo, com Jango presidente e Tancredo Neves como Primeiro-Ministro. Depois do 3º governo parlamentarista, Jango promoveu o plebiscito e voltou nos braços do povo, para um governo apeado do poder em 31 de março/1º de abril de 1964.

O longo tempo do regime militar criou um vácuo na representação política. A redemocratização e a Constituição de 1988 tentaram refletir um novo Brasil, urbano, com novos atores. Mas a migração forçada e acelerada de agricultores que largaram as enxadas no campo para as grandes cidades, sem que tivessem passado pelos bancos de treinamento das escolas, na falta de uma política nacional de saneamento básico que desse emprego a quem estava mal habilitado como mão-de-obra da construção civil, criou um conflito social dos excluídos que passaram a viver nas periferias das grandes cidades. As fileiras do tráfico ganharam soldados inesperados. E dois atores entraram em cena para tirar proveito na mediação de conflitos: de um lado, milícias armadas (na verdade um consórcio de Policiais Militares e civis que nas horas de folga montam “empresas” que dão segurança a pequenos comerciantes que pagam por isso, mas a garantia da lei e da ordem é efetivamente garantida pelos efetivos das PMs ou polícias civis de plantão, ou seja, tudo bancado pelo contribuinte que paga ao Estado e aos intermediários). Os negócios desses escritórios do crime se ampliaram como os tentáculos da máfia, incluem gatos de luz, água e serviços de telecomunicações, além de empreendimentos imobiliários em áreas ocupadas irregularmente (no vácuo da ausência de políticas habitacionais das prefeituras), jogos eletrônicos e influência política nas câmaras municipais e assembleias legislativas. De outro, uma miríade de pastores de denominações evangélicas que passaram a explorar a religiosidade natural de quem vivia no campo. Efetivamente, essas suas correntes se transformaram em grandes “coronéis” dos currais eleitorais urbanos. E tomaram de assalto a Câmara e o Senado no governo Bolsonaro, sempre simpático às causas dos milicianos, que não se cansava de elogiar, ao lado dos torturadores das forças armadas.

Se alguém tem dúvidas do “status quo”, da “nova política” instaurado por Jair Bolsonaro & cia, não basta citar a forte influência e corrupção dos pastores evangélicos das diversas denominações ligadas à Assembleia de Deus, que levaram à demissão do ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, ou a pressão exercida pelos bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, que criou o Republicanos como representação política, aliado na maioria dos casos ao PL, o partido de Bolsonaro, seus filhos, ex-ministros e Valdemar Costa Neto, que tende a formar, até que a eleição mude tudo, a maior bancada da Câmara. O mais novo filiado a PTB, o partido que foi comandado pelo também condenado Roberto Jefferson, Fabrício José Carlos de Queiroz, conseguiu um registro para se candidatar a deputado federal pelo Rio de Janeiro resumiu bem o lema, típico da máfia e das maltas de bandidos. Sub-tenente da Polícia Militar do RJ, da qual foi afastado por denúncias de tortura e se aliar a milicianos, Fabrício Queiroz foi abrigado no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), que o cedeu para atuar no gabinete do filho 01, Flávio Bolsonaro, quando este se elegeu deputado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Durante o mandato 2015-2018, Queiroz repetiu na Alerj o esquema de “rachadinha” que aprendeu com a ex-mulher de Bolsonaro Ana Cristina Siqueira Valle, quando ambos assessoravam o gabinete do ex-capitão-deputado: pessoas contratadas com as verbas públicas do gabinete, sem obrigação de bater ponto ou prestar serviços efetivos, tinham de devolver a maior parte dos vencimentos. Este esquema foi descoberto na Alerj no tempo em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual. Eleito senador em 2028, o filho 01 conseguiu barrar no TJ-RJ e tribunais superiores provas de depósitos (nas contas de Queiroz, sob o argumento de violação de sigilo bancário). Queiroz cumpriu pena, mas não abriu o bico, apesar de lamentar certo abandono do clã Bolsonaro, cujo advogado abrigou Queiroz em sua casa-escritório de advocacia em Atibaia-SP, onde foi encontrado e preso em junho de 2020. Pois Queiroz já criou um lema, típico da máfia, para fustigar o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, que pretende esgrimir a bandeira contra a “corrupção”, e a quem espera superar em votos (ainda que em estados diferentes) para a Câmara Federal. Disse que sua disputa contra Moro, símbolo da Lava-Jato “será a luta da lealdade contra a trairagem”. A que ponto chegamos! Mas é bom ficar de olho para ver quem trairá quem até as eleições. Sobretudo o Centrão. Como o escorpião da fábula, sempre trai, pela essência de seu caráter de aderir a quem está no poder ou com perspectiva de, para tirar casquinha da influência.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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