CASO DORIA: A (I) LÓGICA DAS REDES E A TEORIA DO ESPANTALHO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Tente encontrar no texto de Doria, o Pedro, qualquer argumento que legitime suas afirmações taxativas, de uma esquerda que pensa como a ultradireita americana e coloca em risco a democracia

Não me refiro obviamente ao matemático e lógico Antônio Dória, cientista rigoroso da lógica, mas ao jornalista Pedro Dória, seu filho. Especificamente ao artigo “Guerra da Ucrânia une sites da esquerda brasileira e da extrema-direita americana”, que saiu publicado em dois dos principais diários brasileiros: Globo e Estadão.

Vale menos pelo conteúdo, mais pela análise de casos. Permite comprovar que os recursos terraplanistas das redes têm muito em comum com seu uso por parte do jornalismo corporativo.

Vamos comparar com a metodologia adotada pela campanha anti-vacina.

Passo 1 – as teses conspiratórias

Antivacina: vacina permitirá o controle da mente das pessoas.

Dória: sites de esquerda (genéricos) criarão um bolsonarismo de esquerda, que controlará a mente dos eleitores.

Passo 2 – o grande inimigo.

Antivacina: Bill Gates e os laboratórios fabricantes de vacinas.

Dória: “sites de esquerda”, assim genericamente.

Se der nomes, o “inimigo” se humaniza e a tese conspiratória perde força, já que não tem nenhum grandão como Bill Gates para ser apontado como risco.

Passo 3 – as notícias fora da bolha

Antivacina: desconfie de qualquer informação que venha de fora, especialmente a da mídia convencional.

Dória – desconfie de qualquer informação que venha fora da mídia convencional.

Passo 4 – o método de espalhar o mal.

Antivacina: através da vacina serão injetados algoritmos no corpo humano, preparados por Bill Gates,

Dória – sites repetirão versões da ultradireita americana em relação à guerra da Ucrânia. Os políticos que lêem os sites ficarão prisioneiros daquelas versões. E, através da contaminação dos políticos, a democracia estará irremediavelmente comprometida.

Em ambos os casos, abandona-se o método científico ou lógico. No caso Dória, evita-se mencionar as versões às quais ele se refere porque, aí, os leitores poderiam identificar vulnerabilidades no raciocínio, e avaliar relações pífias de causa e efeito.

Passo 5 –  diga que a teoria conspiratória é do outro.

Antivacinas: os “outros” querem dominar seu coração e mentes.

Dória: os “outros” querem dominar seu coração e mentes.

Tudo isso compõe um método de discussão genericamente batizado de “teoria do espantalho”. Crie um personagem fictício (o genérico “sites de esquerda”), atribua a ele propósitos terríveis (o fim da democracia) e argumentos tolos (“a Ucrânia não é um país”) e bata sem dó no espantalho.

O artigo, na íntegra

Guerra da Ucrânia une sites da esquerda brasileira e da extrema-direita americana

por Pedro Dória

Fossem apenas os militantes de redes sociais, seria menos grave. Mas o fato de que, nas últimas semanas, a imprensa de esquerda na internet brasileira incorporou à sua pauta a desinformação russa deveria preocupar a todos. Pode não ser óbvio, mas é a democracia brasileira que é posta em risco.

A desinformação cumpre um ciclo para que ponha em xeque democracias. Atinge primeiro aquelas pessoas com maior tendência a adotar teorias conspiratórias, que se agrupam como seita nas redes. No segundo momento, veículos noticiosos percebem ali um público fiel potencial e começam a reverberar as informações falsas.

Quando fez explodir o número de fontes de notícias, a internet criou variedade mas também desorientação. Sem entender bem em quem confiar, muitos passaram a usar como bússola a busca por veículos que confirmam suas visões. E muitos veículos escolheram por alimentar isso.

A ameaça à democracia se concretiza quando os políticos entram no jogo. Com os veículos preferidos de seus eleitores repetindo uma mesma versão dos fatos, parlamentares e candidatos se sentem obrigados a adotar as teses..

Foi isto que aconteceu na direita de inúmeros países, incluindo o Brasil. Foi este processo que criou um universo paralelo descolado da realidade que levou ao QAnon americano e pôs no Planalto Jair Bolsonaro. E é inacreditável que, hoje, quem lê os principais sites da esquerda brasileira encontrará as mesmas teses sobre o conflito entre Rússia Ucrânia que estão nos sites da extrema-direita americana.

Para repetir o discurso pró-Putin, a dissonância cognitiva necessária é imensa. É preciso deixar de lado tudo o que a esquerda latino-americana defendeu nos últimos 50 anos. 

O presidente russo argumenta que o povo ucraniano não existe, que é uma invenção recente. O fato de que Kiev tem 600 anos mais do que Moscou, claro, é detalhe. É o mesmo argumento que a extrema-direita israelense usa a respeito dos palestinos – são um povo que “não existe”.

O argumento realista de política externa, que considera inevitável que potências militares invadam seus vizinhos, é outro problema. Este é o argumento de Henry Kissinger para defender a política que auxiliou inúmeras ditaduras militares nos anos 1960 e 70”.

Conclusão

Tente encontrar no texto de Doria, o Pedro, qualquer argumento que legitime suas afirmações taxativas, de uma esquerda que pensa como a ultradireita americana e coloca em risco a democracia.

Não há um único elemento a dar substância para frases de impacto – tipo “é a democracia brasileira que é posta em risco” -, nenhum elemento a identificar os tais veículos de esquerda. Nenhuma indicação de que o argumento de que a Ucrânia não é um país tenha sido invocado generalizadamente.

A discussão concreta é

1. sobre a ameaça que a Ucrânia representaria para a Rússia, caso se aliasse à OTAN e permitisse armamento letal na divisa com o vizinho.

2. o direito ou não de Putin de invadir o país e infligir tamanho sofrimento à população ucraniana.

3. a responsabilidade de Putin, Zelensky, Joe Biden e seu Secretário de Estado no acirramento do conflito.

Se usasse o notável discernimento lógico de seu pai, Dória concluiria que tanto Putin (invadindo a Ucrânia), quanto Biden (armando a Ucrânia em vez de pressionar a Rússia para um acordo) estão usando os ucranianos como bucha de canhão.

Mas, aí, admito, seria uma tarefa mais difícil do que espancar o espantalho, o inimigo genérico a quem se atribui frases sem sentido.

O artigo faz parte de uma ofensiva, que já se reflete na Wikipedia, de criminalização da atuação dos ditos sites de esquerda.Veja mais sobre:democraciadireitaesquerdafake newsPedro DoriaUcrânia

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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