É verdade que existe um movimento de fascistas na Ucrânia: não são numerosos, mas são influentes, e estão integrados a unidades policiais e às Forças Armadas.
Que tal uma análise da guerra que explicite as intenções imperiais de Putin e o autoritarismo do governo da Ucrânia? Que mencione a censura à imprensa russa, mas também à da Ucrânia? Que fale da guerra de desinformação, mostrando que os dois lados mentem? Provavelmente daria um nó na cabeça da maioria dos responsáveis pela cobertura jornalística, que transformaram a guerra da Ucrânia em um roteiro de Marvel.
Uma das grandes dificuldades da mídia brasileira é a incapacidade de contextualizar rapidamente fatos complexos. Trata-se de preparação fundamental para não se perder na barafunda de informações.
Já escrevi sobre esse método:
1. O ponto central é a teoria do fato, que consiga englobar todos os fatos levantados. Isto é, assim que houver um mínimo de informações, montar uma explicação sistêmica sobre o caso, uma bússola para caminhar na bruma.
2. Depois, submeter cada novo fato levantado à teoria inicial. E ter clareza de que se os fatos não baterem com a teoria, a teoria terá que ser reformulada.
A maior da cobertura recorre ao método binário, como se observa na cobertura da guerra da Ucrânia
1. Identifique de pronto um herói (ou vítima) e um vilão.
2. Dramatize qualquer ato do vilão, mesmo os mais banais. E esconda qualquer fato que possa colocar em dúvida seu perfil de Sir Galahad.
3. Se for cobertura de guerra, na qual todos os lados mentem, escolha a sua mentira e se fixe nela, endossando tudo o que vier do seu herói.
Pode haver um fundo de orientação ideológica mas, no fundo, reflete um grande problema que passou a afetar o jornalismo brasileiro depois que, a partir de 2005, passou a atuar como partido político. Aboliram-se as exigências de qualidade. Consolidou-se en áreas nobres – política, economia e internacional – a análise binária das reportagens policiais.
Na pobreza analítica da cobertura, vez por outra aparecem algumas reportagens essenciais mas, em geral, produzidas por fritas ou correspondentes, com analistas estrangeiros.
É o caso da matéria “Guerra financeira ligada à invasão da Ucrânia volta a pôr em xeque sistema ancorado no dólar”, de Vivian Oswald com Ousmène Mandeng, prestigiado professor da Escola de Políticas Públicas da London School of Economics e ex-chefe de divisão do Fundo Monetário Internacional para Recursos Financeiros e ex-diretor da seguradora Prudential Financial e do banco de investimentos UBS.
Hoje, uma bela matéria na Folha, de Fernanda Mena com o antropólogo ucraniano Volodimir Artiukh, 36, pesquisador da Universidade Oxford (Reino Unido), que poderia servir de base para uma teoria do fato de jornalistas vocacionados para a profissão.
As principais conclusões a serem extraídas:
Sobre a adesão à OTAN
Nos anos recentes, não houve expansão significativa da Otan. E a Ucrânia não estava, sob nenhum ponto de vista, perto de se tornar um Estado-membro. Todas as lideranças políticas expressam claramente: a Ucrânia não será admitida na Otan num futuro próximo. Então, é claro que essa expansão contribuiu para aumentar a tensão na região, mas não foi uma causa imediata para a deflagração do conflito.
Sobre o fator China
Não acredito que o ataque tenha sido uma reação à Otan, mas uma ação para reconfigurar o ambiente de segurança ao redor da Rússia e para criar uma aliança com a China.
(…) A Rússia está buscando seu novo lugar no mundo para os próximos dez ou 20 anos. As elites russas acreditam que o mundo será multipolar e que a China será o novo grande poder global. Pequim está tentando permanecer neutra e se absteve de votar no Conselho de Segurança. Há sinais de que ela pode vender armas para a Rússia e se tornar uma aliada militar, mas não podemos excluir a possibilidade de a Rússia ter errado também esse cálculo, especialmente se considerarmos que as operações russas eram baseadas em suposições erradas. A Rússia tem serviços de inteligência muito fracos hoje em dia.
Sobre os erros de estratégia de Putin
Foi um período em que as eleições presidenciais nos EUA levaram ao poder uma liderança percebida como fraca, Joe Biden. E, na Alemanha, Angela Merkel estava deixando o poder. Então, a Rússia viu isso como uma oportunidade de fazer algo na expectativa de que o Ocidente não tivesse condições de articular uma resposta militar unificada e robusta.
A invasão da Ucrânia levou a consequências que contradizem esse suposto objetivo de deter a Otan. Ela aumentou de forma dramática a unidade em torno da Otan e a militarização dos países do entorno russo. O ataque russo provavelmente levará a um aumento da cooperação com a Otan por parte de países antes neutros, como a Finlândia. É o contrário do que um país com medo da Otan quer.
Confira com nosso “Xadrez da Rússia com fôlego e da marcha da insensatez em andamento”, de 1o de março, quando desenhamos nossa primeira hipótese de teoria do fato.
Sobre o nazismo na Ucrânia
É verdade que existe um movimento de fascistas na Ucrânia: não são numerosos, mas são influentes, e estão integrados a unidades policiais e às Forças Armadas. Essa não é uma história incomum na Europa. A ascensão do fascismo tem ocorrido em países como a Alemanha e até o Brasil. É uma justificativa ideológica fácil de ser explicada à população devido à memória da resistência russa ao fascismo. “Não estamos lutando contra ucranianos, mas contra fascistas.” E ninguém precisa provar nada.
Sobre o destino manifesto de Putin
Putin é conhecido por dizer que o colapso da União Soviética foi um dos grandes desastres do século. Ao mesmo tempo, é encantado pelo Império Russo, especialmente pelo czar Alexandre 3º [um conservador]. O jeito como ele fala de Lênin e da Revolução Russa… Parece que a Revolução de Outubro [de 1917] foi a pior coisa. Putin culpa Lênin pela destruição do Império Russo ao fragmentar sua unidade, criando Estados, como a Ucrânia, que tinham alguma independência. Para ele, Lênin plantou uma bomba na Rússia, causando sua destruição. Então, é para esse tempo do império que ele gostaria de voltar.
(…) O projeto de Putin é imperial e não vai oferecer uma ideologia alternativa de modernização. Ele vai oferecer proteção, ou mesmo impor proteção, para lideranças como a da Belarus [o ditador Aleksandr Lukachenko] e da Armênia [o premiê Nikol Pashinian], que querem se proteger do Ocidente. Os Estados que não são clientes da Rússia e não querem proteção serão controlados por outros meios, seja indiretamente, como quando Estados-clientes foram arrancados de países como a Geórgia [em 2008] e a Ucrânia, em 2014 [quando da anexação da Crimeia], ou de forma direta, simplesmente atacando e ocupando territórios, como fez o Império Russo no século 19.
Sobre o governo Putin na Rússia
Putin é um liberal em termos econômicos. Se você observar como o Banco Central russo conduz a política monetária conservadora e para como o Estado funciona em termos de cooperação e de regulação do trabalho, ou mesmo se você olhar para a desigualdade extrema da Rússia, vai ver que não tem nada a ver com a história soviética. Hoje temos o mesmo nível de desigualdade da época do império.
A guerra de desinformação
A Ucrânia está em conflito com a Rússia desde 2014, na anexação da Crimeia. Desde então, os dois países reprimiram muito a imprensa livre, ainda que de maneiras diferentes: Rússia foi mais sistemática, e a Ucrânia, mais seletiva. O cenário de mídia ficou muito empobrecido nos dois países e foi tomado por visões unidimensionais e por muito mais propaganda do que notícias e análises.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)