O FIM DE UMA ERA

CHARGE DE FRAGA

“A página da cooperação com o Ocidente foi ‘virada'”, escreve o editor-chefe de Rússia in Global Affairs, Fyodor Lukyanov

A intervenção militar da Rússia na Ucrânia enunciou o fim de uma época no estado dos assuntos globais depois que o presidente Vladimir Putin lançou a ação da semana passada. O impacto desta será sentido por muitos anos, porém Moscou se posicionou para “tornar-se um agente de mudanças basilares para o mundo inteiro”.

A operação das Forças Armadas Russas na Ucrânia marca o fim de uma era. Esta começou com a queda e a dissolução da União Soviética em 1991, quando uma razoável estrutura bipolar estável foi derrubada por aquilo que tornou-se conhecido como a ‘Ordem Liberal Mundial’. Isto abriu o caminho para os EUA e seus aliados desempenharem um papel dominante na política internacional, centrado em torno da ideologia universalista.

A crise manifestou-se há muito tempo, apesar de não haver uma resistência significativa das maiores potências – as quais ficaram insatisfeitas com a sua posição no novo campo de jogo político. Na verdade, por um longo tempo (pelo menos uma década e meia), não havia praticamente oposição alguma. Os países não-ocidentais, nomeadamente a China e a Rússia, fizeram esforços para integrar-se na hierarquia. Beijing conseguiu não só fazer isso, mas também fez o melhor da situação para ganhar um ponto de apoio enquanto um jogador dominante. Moscou, no entanto, saiu dessa muito pior e levou muito tempo para ajustar-se a esta mova ordem mundial e cimentar um lugar respeitável nas fileiras desta.

O sistema resultou ser tanto inflexível quanto instável e à medida que excluiu conceitualmente qualquer equilíbrio de poder. Mais importante, no entanto,  é que este sistema não permitiu um nível suficiente de diversidade cultural e política – o que é inerentemente essencial para o funcionamento sustentável do mundo. Foi imposta uma visão de mundo uniforme que excluiu todas as outras, usando vários meios e incluindo atitudes com relação às atividades militares.

 A operação russa é uma imagem espelhada daquilo que os EUA e seus aliados fizeram mais de uma vez em décadas recentes, em várias partes do mundo. Segundo as lendas, o Tzar Pedro, o Grande, fez um brinde aos seus “professores suecos” após a batalha de Poltava, em 1709. Agora, a atual liderança russa também pode dizer que aprendeu muito do Ocidente. É fácil apontar elementos das ações russas na Ucrânia – das ações militares às de informações – que estiveram presentes nas campanhas dos EUA e da OTAN contra a Iugoslávia, o Iraque e a Líbia.

 As tensões têm fervido há muito tempo, e a Ucrânia agora tornou-se a frente de batalha decisiva. Esta não é uma batalha ideológica como a que testemunhamos na segunda metade do século XX. A hegemonia no mundo está sendo desafiada atualmente em favor de um modelo muito mais distribuído. O velho conceito de ‘esferas de influência’ da Guerra Fria não é mais aplicável, porque o mundo tornou-se muito mais transparente e interconectado, fazendo com que o isolamento só possa ser possível até um grau limitado. Pelo menos é o que havíamos pensado – até agora.

 Como ocorreu amiúde no passado, a briga atual está sendo travada por importantes territórios estratégicos. O antigo ditado de que ‘a História se repete’ é evidente quando se troca de um canal de mídia para outro. Duas abordagens diferentes colidiram. Por um lado, há o exercício clássico do uso de poder duro, que é guiado por princípios simples, rudes porém facilmente compreensíveis – sangue e terra. Neste ínterim, do outro lado está um método moderno de propagar interesses e influência – realizados através de um conjunto de efetivas ferramentas ideológicas, comunicativas e econômicas que são, ao mesmo tempo, maleáveis – usualmente referidas como ‘valores’.

 Desde a Guerra Fria, as mais modernas destas abordagens quase sempre têm sido o método de ir lá e fazer. Chamemo-la pelo seu nome que está na moda, porém é impreciso: ‘guerra híbrida’. No entanto, na sua maior parte, isto jamais foi enfrentado com alguma resistência séria, muito menos com uma confrontação armada direta.

 A Ucrânia de 2022 é o teste decisivo que provará qual destas duas abordagens reinará vitoriosa. Neste sentido, estão certos aqueles que suspeitam que as consequências serão muito mais profundas do que eles pensavam.

 A liderança russa, que decidiu dar passos drasticamente extemos, provavelmente entendeu as consequências, ou até aspiravam conscientemente por estas. A página da cooperação com o Ocidente foi virada. Isto não significa que o isolacionismo se tornará a norma, porém marca o fim de um importante capítulo histórico nas relações políticas. A nova Guerra Fria não acabará rapidamente.

 Após algum tempo, muito provavelmente, os efeitos que a atual operação militar causou começaram a esvanescer, e algumas formas de interação recomeçarão a ser usadas – porém a linha foi inevitavelmente traçada. Mesmo num cenário favorável, levará muitos anos até que as sanções sejam suspensas e os laços sejam gradualmente e seletivamente restaurados. A reestruturação das prioridades econômicas exigirá uma abordagem diferente que estimule de alguma maneira o desenvolvimento e o desacelere de outras. A parte mais ativa da sociedade russa terá que dar-se conta que a sua antiga maneira de viver acabou.

 O ‘Forte Rússia’ decidiu testar a sua força e, ao mesmo tempo, tornou-se um agente de mudanças primordiais para o mundo todo.

FYODOR LUKYANOV ” RUSSIA GLOBAL AFFAIRS” ( RÚSSIA) / ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

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Fyodor Lukyanov é editor-chefe de Rússia in Global Affairs (https://eng.globalaffairs.ru/), presidente do Presidium do Conselho sobre Políticas de Relações Exteriores e Defesa da Rússia (https://russiancouncil.ru/en/fedor-lukyanov) e diretor de pesquisa do Valdai International Discussion Club (https://valdaiclub.com/)

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