OS PÁRIAS SOLIDÁRIOS

CHARGE DE ZÉ DASSILVA

Quando, em outubro de 2020, o então chanceler Ernesto Araújo defendeu junto aos alunos do Instituto Rio Branco, que forma os diplomatas do Itamaraty, que o Brasil se posicionasse na trilha da “liberdade, nem que para isso se torne um pária internacional”, ele visava A agradar ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que estava em campanha de reeleição. Mas a biruta mudou o ar que faltou para George Floyd. Houve grande mobilização dos democratas e do eleitorado negro e hispânico (ambos maltratados pelo governo Trump) e o voto pelo correio – para evitar os riscos do contágio pela Covid-19 nas filas de votação em novembro (a vacinação só começou no Reino Unido e nos EUA no início de dezembro). E, apesar de todos os esperneios prévios (Trump dizia que o voto pelo correio não podia ser válido) e posteriores (que culminaram com a infame invasão do Capitólio quando o presidente eleito, Joe Biden, e a vice-presidente, Kamala Harris, seriam diplomados pelo Congresso, em cerimônia presidida pelo vice de Trump, o republicano Mike Pence, a biruta da política americana mudou em Washington e no mundo. Jair Bolsonaro foi solidário na ideia de fraude eleitoral alegada por Trump e seus advogados, derrotados em todas as instâncias do Judiciário americano, e foi um dos últimos presidentes a reconhecer a vitória de Biden, quando já tinha sido diplomado pelo Congresso.

Essa mudança da biruta internacional, que antes aproximou excessivamente Donald Trump de Vladimir Putin, até hoje está mal explicada. As investigações sobre a influência de hackers russos na eleição do republicano contra a democrata Hillary Clinton ficaram inconclusas. Na era Trumpo, o déspota que comanda com mão de ferro a Rússia há mais de duas décadas, desde a dissolução do governo de Boris Yeltsin, o primeiro presidente russo após a dissolução da União das Repúblicas Soviéticas com Mikhail Gorbachev, em fins de 1991, ampliou sua influência no mundo. A Síria é o maior exemplo. Putin, um antigo quadro da poderosa KGB (o equivalente da CIA nos tempos da cortina de ferro, serviu muitos anos na antiga Alemanha Oriental, região de origem da ex-chanceler alemã, Ângela Merkel, que mais que entender a natureza russa, falava fluentemente russo. Ela e Putin negociavam ora em alemão (ele fala muito bem) ou russo. Vê-se agora a falta que Merkel faz nessa crise da Rússia com a Otan, tendo a Ucrânia sob alvo direto das bombas de Moscou, que cruza o território ucraniano com gasodutos para levar gás à Alemanha e países do Leste europeu.

Os Estados Unidos tinham um projeto antigo de enfraquecer essa dependência energética de parte da Europa ao gás e ao petróleo da Rússia. A rigor, só a Noruega e o Reino Unido não dependem desses insumos, pois são autossuficientes e ainda exportam gás e petróleo do Mar do Norte. Um enorme gasoduto – o Nabuco – traria gás da Arábia Saudita, Catar e Kuwait para a Europa. O problema é que no meio do caminho não tinha uma pedra (como diria o saudoso Drummond), mas uma pedreira chamada Síria, onde o ditador Bashar al-Assad foi mantido no poder a ferro e fogo (cidades foram arrasadas pelos bombardeios da aviação russa, como Aleppo). A permanência de al-Assad barra as pretensões de Washington, que pretendia usar o Nabuco para atrair outros países produtores de petróleo e gás, como o Iraque e, quem sabe, o Irã (quando e se cair a influência dos aiatolás). Esse tabuleiro de xadrez se reproduziu na expansão do Nord Stream 2, pelo qual a Rússia escoaria, através do aliado Bielorússia, mais gás para a Alemanha e Norte da Europa. Os países ocidentais, sob a égide da Otan, tentaram usar a Ucrânia como um contraponto à Síria. Ao convidar para ingressar na Otan uma nação de históricas relações com os russos, desde o tempo do Império, persistindo a ferro e fogo sob o comunismo, e cheio de idas e vindas pós fim da URSS, o Ocidente provocou o urso russo. Aproveitando a tibieza e o vácuo de poder no Ocidente, Putin, que almeja conquistar a interdependência com a Europa (pelo menos a União Europeia, sem Reino Unido, Suíça, Suécia e Finlândia, que estão fora do euro e não dependem do gás de Moscou, assim como a Noruega), moveu peças no tabuleiro e cercou a Ucrânia, que ameaçava romper o acordo de travessia do gás para a Europa. A escalada de declarações bélicas passou da palavra às ações, violentas e indefensáveis.

Pois foi no meio deste vespeiro, com o mundo em suspense com as ameaças de Putin, que se concretizaram, que o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, sem conselheiros de política externa da linhagem de José Maria da Silva Paranhos Júnior, do qual Bolsonaro só tinha como referência a efígie da nota de 1 mil cruzeiros, popularmente chamada de “um barão”, decidiu ir a Moscou se encontrar com Vladimir Putin, disposto a explorar politicamente a visita, graças à presença na comitiva oficial e nas mesas de negociações (!) do filho 02 – o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos que está migrando para o PL de Valdemar Costa Neto, que alojou a candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição) – encarregado de fazer imagens e posts enaltecendo a viagem presidencial. Primeiro, alardearam que a simples presença de Bolsonaro, que apelou para a paz mundial, fez Putin refrear seus ímpetos; depois se jactaram da proximidade entre os dois presidentes, numa alusão à distância precavida que Emanuel Macron, da França, e do novo chanceler alemão, Olaf Scholz, que se recusaram a se submeter a cinco testes de DNA que poderiam ser desviados para fins difusos, e se sentaram a mais de cinco metros de distância de Putin. Já Bolsonaro, que se recusa publicamente a tomar vacina (e a incentivar a vacinação da população brasileira) fez todos os testes e, para demonstrar seu “prestígio”, ficou a uma perigosa proximidade de Putin. O resultado da intimidade – estudada do lado russo, que já tinha fechado previamente um acordo com a China de Xi Jiping, para fornecer gás pelos próximos 30 anos e encontrar um parceriro diante de eventuais bloqueios comerciais e financeiros pelo lado ocidental, como veio a ocorrer – foi o gigantesco escorregão diplomático de Jair Bolsonaro ao expressar sua “solidariedade a Putin e aos russos”. A invasão não tinha acontecido, mas a Casa Branca, através da porta-voz, disse que o “Brasil estava do lado errado da história”. O Itamaraty tentou consertar a gafe, fazendo Bolsonaro corrigir duas vezes suas falas no comunicado final. O estrago estava feito. E o próprio presidente Biden, ao condenar Putin e os países que ficam ao seu lado fez questão de colocar os aliados de Putin como “párias”.

Em tempo de Carnaval, mesmo sem desfile de escolas de samba (adiados para abril) e sem blocos de rua, que recolheram seus flaps pela precaução da Covid-19 e a variante Ômicron, saiu à praça – tal e qual dizia Chico Buarque no “bloco dos Napoleões retintos” e os “pigmeus de boulevard” – o “Bloco dos Párias Solidários”. No alto de um carro alegórico fantasmagórico, que é um misto de um grande tanque e um caminhão lança mísseis, pontifica Vladimir Putin. Na comissão de frente, um sorridente e inconsequente Jair Bolsonaro, que se gabou dos acordos fechados em Moscou, há duas semanas, agora matuta se a Petrobras não pode levar as sobras do bloqueio de contas de bancos e empresas russas no Swift, quando vendeu fábricas de fertilizantes à russa Acron. Ele bem que tentou trazer para o abre alas da direita o primeiro ministro da Hungria, com quem se reuniu em Budapeste, na escala da volta de Moscou. Mas Viktor Orbán deu uma de Romário e sentiu a panturrilha…

Na Petrobras, uma escolha de Sofia

Por falar em Petrobras, Bolsonaro precisa tirar um cara ou coroa para escolher de que lado fica em relação à Petrobras na questão de seus lucros e controle dos preços dos combustíveis. Quando era um ruidoso deputado-capitão que fazia críticas a torto e a direito ao PT, acusava Dilma de arruinar as finanças da Petrobras com exagerado e populista controle de preços dos derivados (aplicado em 2013, quando o povo foi às ruas e mantido em 2024 como estratégia populista para garantir a reeleição (assim como ocorreu com a energia elétrica, o câmbio e os juros, que voltaram a subir em escalada tão logo a reeleição foi garantida em outubro de 2014, com enorme prejuízo à estatal. Candidato em campanha, entrou na boleia de muitos caminhoneiros que declararam a greve que parou o país em maio/junho de 2018, contra a alta dos preços do diesel. Eleito presidente, maldizendo os desvios e má gestão ocorridos na Petrobras (conforme as revelações da Operação Lava-Jato, que ajudou a sepultar parcialmente em seu governo), tão logo os lucros voltaram à Petrobras (com vendas de ativos que ficaram com operações inviáveis diante da escalada do dólar e da queda das cotações, após a crise financeira mundial de 2008, e premissas econômicas que motivaram projetos da era PT – como as refinarias Abreu e Lima, em Pernambuco, e o Comperj, que seria um complexo petroquímico em Itaboraí-RJ, e ficaram inviáveis, passou a louvar os crescentes lucros da Petrobras e mostrar que tudo era fruto do “fim da roubalheira”. Pura “fake news” para iludir o eleitorado bolsonarista.

As fraudes e superfaturamentos apurados na Lava-Jato foram contabilizados em 2014 em R$ 6,2 bilhões pela Petrobras. É mais que o dobro disso. Mas as perdas decorrentes de baixas contábeis (por premissas que não se consumaram após a economia mundial virar de ponta-cabeça em 2008) somaram R$ 44,345 bilhões em 2014 (quando a Petrobras fechou com prejuízo de R$ 21,587 bilhões) e R$ 46,390 bilhões em 2015 (quando a Petrobras teve o megaprejuízo de R$ 34,386 bilhões). E o controle de preços dos combustíveis – que o candidato à reeleição, cujos índices de aprovação crescem na razão inversa da alta dos preços da gasolina, do gás de botijão e do diesel, quer voltar a fazer – foi responsável por mais de R$ 45 bilhões de prejuízo/perda de faturamento da Petrobras. Mas Bolsonaro já tinha louvado a volta dos grandes lucros das estatais (a começar pela Petrobras). Então, quando a própria empresa explica que do lucro recorde de R$ 106,668 bilhões em 2021 grande parte foi causado pela “alta de 77% dos combustíveis”, fica difícil voltar atrás. Em manobra canhestra, passou a jogar a culpa no presidente da Petrobras, o general Joaquim Silva e Luna, que tirou há um ano da Itaipu Binacional para substituir Roberto Castello Branco, que prosseguiu na política de paridade de preços internacionais (PPI) criada na gestão Pedro Parente, no governo Temer, e que motivou a revolta dos caminhoneiros em 2018.

Em vez de entrar numa discussão mais ampla, caiu num discurso rasteiro e covarde: “O cara [o general Silva e Luna] ganha 200 mil por mês e os diretores 100 mil, pô, e a bomba do aumento cai no meu colo; ele tem de encontrar uma fórmula de baixar os preços ou de impedir essa escalada”. A fórmula existe. Mas é preciso escolher que lado da moeda deve ser beneficiado: o dos acionistas da empresa, a começar pelo Tesouro Nacional, que vão receber R$ 101,4 bilhões em dividendos da estatal referentes a 2021; ou a população que merecia ter uma política de preços compatível com a do país que se orgulha de sua estatal ter conquistado a virtual autossuficiência em petróleo, gás e combustíveis? (por questões estratégicas, o Brasil exporta petróleo e importa diesel e GLP). Se temos autossuficiência, temos de acompanhar calendário dos preços do inverno no Hemisfério Norte quando (crise da Ucrânia à parte) os preços do gás e dos combustíveis sobem muito pela demanda por calefação das residências e locais de trabalho no inverno rigoroso? O erro de seguir como uma “maria vai com as outras” tem o efeito perverso de que essa subida (que é seguida de baixas no verão do Hemisfério Norte) não ser quase revertida no Brasil, em função do processo de indexação (correção dos preços futuros pela inflação passada). O estrago que a alta dos combustíveis faz nos preços dos alimentos, bens e serviços no nosso verão reverbera adiante no nosso inverno na correção de planos de saúde, aluguéis, tarifas de pedágio, planos de saúde e outros itens atrelados ao IPCA ou ao IGP-DI/IGP-M.

Pelo mesmo princípio, o governo não deveria se jactar dos lucros do BNDES (R$ 34,1 bilhões) e da Caixa Econômica Federal (R$ 17,3 bilhões). No BNDES, grande parte deste “lucro” veio da venda de ativos e participações acionárias, que somaram R$ 30,6 bilhões. Mário Henrique Simonsen, um dos maiores economistas brasileiros, dizia que essa realização de lucro com a venda de patrimônio era comparável à decisão irresponsável de um pai de família que vende o apartamento para passar férias na Europa. Na CEF, a venda de mais de R$ 5 bilhões em patrimônio inflou o lucro. Amanhã não tem mais…

Política, lei e economia

Decididamente, política e economia nem sempre estão no mesmo lado da lei natural das coisas, vale dizer, da racionalidade, ou da legalidade. Vejam o caso da decisão desta semana do governo de promover um corte linear de 25% no IPI (o imposto sobre produtos industrializados). Há um princípio do direito tributário que impede a aplicação de uma lei para que o tributo passe a vigorar no mesmo exercício (algo criado este ano, só pode valer em 2023). Em raciocínio análogo, a Lei de Responsabilidade Fiscal (aplicada pela legislação eleitoral) proíbe que se corte impostos (gerando benefícios) em ano eleitoral e sem contrapartida de receita. Essa redução de IPI pode acarretar perda de mais de R$ 20 bilhões em receitas. Ou seja, vai afetar o equilíbrio fiscal. Mas governo argumenta, economicamente, que a redução de impostos vai gerar mais competitividade em vários setores da indústria (embora isso nem sempre seja verdade). Mas isso só ocorrerá num espaço de dois a três anos. É ganho futuro, com perda no presente. Sobretudo se não houver redução de preços proporcional à redução do IPI e as empresas procurarem ampliar margens.

Situação semelhante, do ponto de vista fiscal, é a ameaça de aumento das despesas futuras da Previdência Social, se passar no Supremo Tribunal Federal a aprovação do princípio de “revisão da vida toda” para as contribuições ao INSS, que podem elevar retroativamente os cálculos de benefícios distribuídos pela Previdência. A interpretação do STF trata de direitos adquiridos. Se passar a revisão de todo o histórico das contribuições e não apenas após o Plano Real (de junho de 1994 em diante, com atualização em 1999), a Previdência terá de abrir o cofre. Os segurados vão reforçar seus rendimentos (poderão consumir mais e melhorar a qualidade de vida). Mas o impacto na produtividade e na maior eficiência da economia não será comparável à da mexida no IPI. Governar e fazer gestão impõe permanentes “escolhas de Sofia”.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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