O FEITIÇO DA COBRA CORAL

CHARGE DE FRAGA

Na hora em que a forte estiagem de 2021 forçou o acionamento das usinas termoelétricas, para suprir a perda de geração das usinas hidrelétricas, o que encareceu barbaramente a conta de luz, assim como fazem as escaladas de preços dos combustíveis, e deixou como grande ameaça para o ano eleitoral de 2022 a ameaça de um novo racionamento (fatal, em 2001, às pretensões de Fernando Henrique Cardoso em fazer o ex-ministro da Saúde, José Serra, o seu sucessor na disputa contra Lula), o presidente Jair Bolsonaro, sempre tão devoto às causas dos evangélicos, não recorreu às orações contritas com os pastores amigos que cativa na época das eleições. Com a intensa interação e comunhão de ideias, poderia ter apelado às orações do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Ou ainda ao pastor Robson Rodovalho, da Igreja Sara Nossa Terra, outra seita neopentecostal, frequentada pela primeira dama, Michele Bolsonaro. O racionamento derrubaria ainda mais o PIB e o emprego em 2022, desgastando ainda mais a sua popularidade junto ao eleitorado, já revoltado com o negacionismo na crise da Covid-19, que já ceifou quase 645 mil vidas

Como não poderia pedir ajuda ao Padre Cícero, sempre invocado pelos nordestinos para trazer chuva para o semiárido, pois não sabe onde nasceu, no Ceará, nem onde fica sua estátua (em Juazeiro do Norte, onde viveu e morreu Padre Cícero Romão Batista), quem sabe, diante do enorme desafio, poderia ter deixado as rusgas de lado e apelar para a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo. O chefão da Universal se distanciou de Jair Bolsonaro quando a atuação do governo brasileiro para resolver o imbróglio da expulsão e perda de dinheiro e poder dos pastores da IURD em Angola, cujo faturamento da franquia local foi assumida por pastores angolanos. Não era ação para o Itamaraty. O máximo que Bolsonaro fez foi indicar o ex-prefeito do Rio, Marcelo Crivella, pastor licenciado da igreja do tio Edir Macedo, ao cargo de embaixador do Brasil na África do Sul, para, de lá, gestionar pelos domínios da IURD no país vizinho. Mas a indicação foi recusada pelo governo de Cyril Ramaphosa e a IURD ameaçou romper com Bolsonaro, até mesmo veiculando notícias contra o governo na Rede Record, emissora controlada pela IURD.

Na entrevista coletiva, no quartel do Exército na cidade imperial, após a visita de 6ª feira do presidente a Petrópolis, em voo de helicóptero tão logo desembarcou da visita à Hungria no Galeão, a paz entre a IURD e o presidente Jair Messias Bolsonaro foi anunciada indiretamente pelo mestre de cerimônias, que mostrou se tratar de ato da campanha pela reeleição, ao recrutar os jornalistas de emissoras amigas presentes ao encontro (boa parte da imprensa estava lá, mas o locutor pediu a identificação dos representantes da Jovem-Pan, Record, SBT, emissora de Silvio Santos, sogro de seu ministro das Comunicações, Fábio Faria, e CNN). A Band, também chamada, não estava presente no momento. As demais não foram autorizadas a fazer perguntas. O que valia era sair bem na foto para os eleitores do Estado do Rio, 3º colégio eleitoral do país, que lhe deu 67,95% dos votos válidos em 2018, mais do que o dobro dos 32,05% de Fernando Haddad. Em Petrópolis conquistou 74,20% dos votos válidos.

Mas já que não apelou aos pastores e bispos, no desespero, por interveniência do ministro das Minas e Energia, Almirante Bento Albuquerque, no colo de quem estava pré-contratado um provável apagão, o presidente da República a recorreu aos serviços da Fundação Cacique Cobra Coral, entidade que a médium Adelaide Scritori diz incorporar (assim como a Galileu Galilei e Abraham Lincoln). As tratativas foram fechadas no dia 14 de outubro, quando o nível dos reservatórios das hidroelétricas do Sudeste estava caminhando para menos de 20%. No dia 15 de outubro, diversos sites publicaram foto de um Bolsonaro sorridente e confiante, que exibia o emblema da FCCC, sob aplausos do almirante Bento Albuquerque e do atual porta-voz da fundação, Osmar Santos (as bravatas do Cacique Cobra Coral são sempre alardeadas quando dão certo – no passado, a função chegou a falsamente arrolar como seu porta-voz o jornalista Paulo Jerônimo, o Pajê, atual presidente da Associação Brasileira de Imprensa; era uma falsa associação de cacique com pajê). Mas após o encontro, o Cacique, através da médium, prometeu trazer “muita chuva” para Minas Gerais a partir de novembro”. Os fatos posteriores, com seguidas tragédias em Minas Gerais, Sul da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, podem indicar que algo não foi bem feito no “serviço”. Não se sabe o tempo da duração do “contrato”, nem se faltou um “câmbio, desligo”, para interromper o poder de “fazer chover” do Cacique. Era bom que Bolsonaro e ou o ministro Bento dessem por encerrada a missão (militares sabem que “missão dada é missão cumprida”), para evitar já não mais o apagão, afastado, mas tantas mortes e destruição, por excesso de chuvas.

A ciência tem explicação lógica para os sucessivos eventos. A prolongada estiagem, que afetou as lavouras nos estados do Sul e em Mato Grosso do Sul, foi causada pelo El Niño. Já o excesso de chuvas a partir de novembro foi decorrente de La Niña. Não há milagre algum, embora o desmatamento incentivado da Amazônia contribua para acelerar os desequilíbrios. Entretanto, talvez fosse bom para o candidato, que conta com os votos dos evangélicos para aumentar seu cacife eleitoral que anda minguante, com forte rejeição aos descontroles dos preços de alimentos e combustíveis num país virtualmente autossuficiente alimentos e petróleo e derivados, explicar aos pastores e seus devotos fieis que o recurso ao Cacique Cobra Coral não foi uma “momentânea falta de fé, e nos valores cristãos”, mas um ato de desespero eleitoral. O fato é que o presidente da República precisa escolher entre seguir a ciência e o recurso à crendice. No Nordeste, área que concentra 27% do eleitorado e onde o presidente tem a mais forte rejeição, desembarcou uma semana antes de viajar a Moscou, no interior do Rio Grande do Norte para a cerimônia que deslancharia sua campanha à reeleição (fora do calendário previsto pelo Tribunal Superior Eleitoral) com a chegada da água da Transposição do São Francisco a Jardim de Piranhas. Pois a água que está sobrando no Rio São Francisco, com o excesso de chuvas e mortes no Sudeste, não chegou a tempo. Outra trapalhada, das muitas e desnecessárias do confuso governo.

Ernesto dizia: Brasil vai virar pária

Ainda assim, quem sabe imbuído pelos poderes do Cacique Cobra Coral, presidente neófito em história internacional (desconhece a imbricada relação de séculos entre a Rússia e a Ucrânia desde os tempos do império, passando pelos tempos do comunismo até o governo despótico de Vladimir Putin) e canhestro em questões diplomáticas, fez coisas de corar o Barão do Rio Branco e seus sucessores mais respeitados. Só para citar algumas: por pouco não se engajou na invasão da Venezuela em 2019, açulado pelos conselhos de Steve Bannon ao filho 03, deputado Eduardo Bolsonaro, que comandava a Comissão de Relações Exteriores da Câmara; adiante insultou a mulher do presidente da França, Emanuel Macron. Intimorato, em meio um momento de grande tensão internacional, partiu para Moscou disposto a “vender” a ideia – para seus ainda fieis eleitores – de que “faria chover em Moscou”. A diplomacia mais prudente do Itamaraty, afastada nos tempos belicosos e confusos da gestão do chanceler Ernesto Araújo, discípulo de Olavo de Carvalho, ponderava que o momento era delicado e que qualquer escorregão (previsível, em se tratando de Jair Bolsonaro, que pensava em gerar fatos para sua campanha à reeleição) poderia trazer complicações diplomáticas para o Brasil, um país que ganhou um dos cinco assentos rotativos no Conselho de Segurança das Nações Unidas por sua importância estratégica (um dos cinco maiores países do mundo em território e população) e por sua tradicional postura a favor da paz e da conciliação entre as nações. Vale recordar que, em outubro de 2020, em palestra aos alunos do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas brasileiros, ainda na era Trump, quando Steve Bannon já estava afastado da função de conselheiro, acusado de falcatruas, Ernesto Araújo fez uma elíptica defesa da “liberdade”, pregando a opção do Brasil se transformar em “pária” do mundo se esse fosse o preço a pagar por abandonar a defesa da “liberdade”. A dupla Araújo-Bolsonaro fez coro de “fraude” nas eleições com Trump e só cumprimentou Joe Biden em janeiro, após o fracasso da infame invasão do Capitólio pelas hordas trumpistas, que queriam impedir na marra a diplomação de Biden e Kamala Harris.

A passagem de Bolsonaro por Moscou em nada arrefeceu os ímpetos de Putin, que se sentiu estimulado pela “solidariedade” brasileira. Mas parte dessa “narrativa“ que circulou nas redes sociais, dando conta de que Jair Bolsonaro contribuiu para arrefecer os ímpetos belicosos de Putin deve ser creditada a seu filho 02, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, que dá expediente no Palácio do Planalto, mas é o virtual chefe da comunicação do governo e já está engajado na campanha de reeleição, como coordenador da comunicação. Por esse motivo, não só acompanhou o pai na viagem para selecionar imagens e filmes importantes, como sentou-se às mesas de reuniões em Moscou, deixando pelo menos dois ministros do governo de pé, sem assento.

Após o desmoronamento da União Soviética, em dezembro de 1991, a Ucrânia, que recuperou a independência, virou uma espécie de estado tampão entre o Ocidente (europeu) e Oriente (russo). Moscou e os antigos países satélites da URSS que exploram petróleo e gás em torno do mar Cáspio construíram uma extensa rede de oleodutos e principalmente gasodutos (com produção vinda da gelada Sibéria russa) para suprir o Ocidente, em especial a Alemanha. Antes mesmo de o Muro de Berlim cair, em 1989, o chanceler alemão Helmut Kholn, e o então presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev negociaram a construção de um gasoduto que cortaria vários países satélites para suprir a Alemanha, num início de distensão política, em troca de estreitamento de laços comerciais com o Ocidente. O acordo sempre foi visto com desconfiança pelos Estados Unidos e o Reino Unido. Para ambos, que têm interesses seculares no Oriente Médio, o entendimento poderia tirar mercado de seus históricos parceiros Arábia Saudita, Catar e Kuwait. A história avançou, sob a era Putin. Após sucessivos atritos com a Ucrânia, que, açulada pelos EUA, interessados no naufragado projeto do Nabuco (o gasoduto que traria gás dos três países aliados do Oriente Médio para suprir o Sul da Europa, mas encontrou uma pedra no caminho: a Síria, aliada de Moscou que não aceitou a passagem do projeto por seu território), tenta barrar o expansionismo russo para a conquista de novos clientes na travessia do território ucraniano (as terras agrícolas são das mais férteis do mundo, mas a passagem dos gasodutos vale mais na mesa de negociações). Moscou driblou os obstáculos construindo o gasoduto Norte, que corta a aliada Bielorússia e chega à Alemanha pelo mar Báltico. Bolsonaro deveria saber que o tabuleiro do jogo de xadrez jogado entre Putin, que se aliou em pacto à China e vai vender mais gás direto aos chineses por 30 anos, e as principais nações do Ocidente, no qual as peças importantes são oleodutos e gasodutos, que precisam atravessar as “casas-países” do tabuleiro para chegar aos consumidores finais, é também um campo minado. Como não houve conselhos de ninguém, o estrago foi feito.

O troco truculento da Casa Branca

Não se sabe se o 02 vai dar ênfase à frase de Bolsonaro, que, amadoristicamente e sem noção do peso de suas palavras como representante do Brasil, se declarou “solidário à Rússia”, que tanto irritou a diplomacia americana e que, por influência dos quadros profissionais do Itamaraty, teve de ser remendada várias vezes pelo próprio presidente da República. O estrago já estava feito. Na 6ª feira, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou que o Brasil “parece estar do outro lado de onde está a maioria da comunidade global”, ao comentar, em coletiva, a pergunta de um jornalista sobre qual teria sido a reação do presidente Joe Biden aos recentes comentários feitos por Bolsonaro em seu encontro com o líder russo, Vladimir Putin, no qual o brasileiro expressou solidariedade. “Eu não discuti seus comentários com o presidente, mas o que eu diria é que a grande maioria da comunidade global está unida em sua visão compartilhada de que invadir outro país, tentar tomar algumas de suas terras e aterrorizar seu povo é algo que certamente não está alinhado com valores globais, então acho que o Brasil pode estar do lado oposto àquele onde a comunidade global está”, respondeu Psaki.

Ernesto Araújo deve estar satisfeito. O país que se propunha a ser vassalo de Trump e aliado da ultra-direita mundial, da qual Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, que visitou em Budapeste, na escala na volta ao Brasil, virou pária no mundo. Pelo menos aos olhos dos Estados Unidos, de Joe Biden. A nota do Itamaraty, tentando desqualificar a porta-voz da Casa Branca, apenas tentou fugir da questão diplomática.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL Do BRASIL” ( BRASIL)

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