Obra questionada por muitos, de autoria do jornalista português Carlos Fino, “Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento”, resultado de sua tese de doutorado na Universidade do Minho, publicada em dezembro último, tem causado interminável polêmica neste início de ano – ao denunciar a existência de uma lusofobia no Brasil, ou seja, um sentimento negativo com relação aos lusitanos. O livro provocou, aqui, forte reação.
Talvez por ter sido lançado às vésperas dos festejos dos 200 anos da Independência. E há um mês do centenário da contestatária Semana de Arte Moderna, ocorrida entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal, de São Paulo, responsável, conforme alguns historiadores, por cortar, culturalmente, o cordão umbilical com Lisboa.
Profissional que fez carreira como ágil e erudito correspondente internacional, inclusive no Brasil, tendo servido também na Embaixada de Portugal, em Brasília, o lisboeta Carlos Fino, 73 anos, teria constatado, na pesquisa, que o brasileiro, em geral, tem vergonha da herança de sua colonização. A prova disso, segundo ele, são as infindas e grosseiras anedotas de ‘português’, nas quais os antigos colonizadores fazem, invariavelmente, papel de idiotas.
Podemos argumentar, em contrapartida, como fizeram vários de seus críticos, quase sempre no diário Folha de S. Paulo, que o jornalista levou excessivamente a sério as anedotas – já que, afinal, anedotas são somente anedotas. Mas, em sua tese ‘lusofóbica’, acabou por jogar luz sobre uma questão controversa e que nunca mereceu um estudo mais profundo. Principalmente nesta margem do Atlântico.
Não é de se estranhar a irreverência dos povos colonizados para com seus colonizadores. Acontece o mesmo na vizinha Argentina, onde os espanhóis são chamados de ‘gallegos patas sucias’, isto é, de galegos de pés sujos, ainda que não tenham nascido na Galícia. Como os emigrantes provenientes das Astúrias, León, País Basco, Catalunha, Extremadura, Andaluzia ou das regiões castelhanas.
São vítimas até de edições de coletâneas, verdadeiros bestsellers, contendo exclusivamente piadas de ‘gallegos’. A Semana de Arte Moderna foi, por certo, influenciada pela convivência em São Paulo de múltiplas comunidades de imigrantes vindos de diversos pontos da Europa – semelhante ao que se passava em Nova York.
Com acentuada presença dos italianos – como em Buenos Aires e em Montevidéu. Os ‘oriundi italiani’, oriundos de italianos, estiveram entre os criadores, por exemplo, dos dois maiores clubes de futebol de São Paulo, Corinthians e Palmeiras (antigo Palestra Italia), bem como do queridíssimo Juventus, situado na lendária Rua Javari, no paulistaníssimo bairro da Mooca.
O Modernismo era liderado por destacados sobrenomes ‘quatrocentões’, mas desejosos de romper o vínculo com Lisboa, como o seu inspirador, o versátil Mário de Andrade (1893 – 1945), o escritor Oswald de Andrade (1890 – 1954), o jornalista Plínio Salgado (1895 – 1976) e a pintora Tarsila do Amaral (1886 – 1973). Também lá estavam ‘italianos’ como a pintora Anita Malfatti (1889 – 1964) e o poeta Menotti Del Picchia (1892 – 1988). Exaltavam as raízes indígenas e a mestiçagem racial do País – com os casamentos entre portugueses, índios e negros.
Os modernistas de São Paulo pretendiam implantar um movimento cultural alicerçado, grosso modo, num conceito que o fundador do Partido Comunista Italiano (PCI), o sardo Antonio Gramsci (1891 – 1937), definiria, à mesma época, como ‘nacional popular’, em seus célebres “Cadernos do Cárcere”. Mas o tiro saiu pela culatra. O ardente nacionalismo dos paulistas daria origem até à Ação Integralista, partido de ideologia fascista, comandado por um de seus ilustres membros – Plínio Salgado. A Semana de 1922 foi, sem dúvida, uma das expressões do sentimento antilusitanista que, 100 anos depois, Carlos Fino captou e dissecou em seu trabalho.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador