DEPOIMENTOS À POLÍCIA FEDERAL DETALHAM AÇÃO MILITAR SOBRE ” DENÚNCIA FAKE” CONTRA AS URNAS

CHARGE DE LOTUFF

Um coronel da reserva do Exército e um empresário de São Paulo descreveram à Polícia Federal como o CMSE (Comando Militar do Sudeste), então comandado pelo atual ministro da SGP (Secretaria Geral da Presidência), o general da reserva Luiz Eduardo Ramos, se interessou, em 2018, em receber e avaliar uma suposta denúncia de fraude nas urnas eletrônicas do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) nas eleições de 2014.

As mesmas alegações que teriam sido recebidas pelo Exército em São Paulo em 2018 – sem qualquer base técnica, elas eram falsidades, cuja metodologia “não tem lógica”, segundo o TSE atestou sobre um vídeo com “críticas” semelhantes – três anos depois apareceram com destaque na live transmitida pelo presidente Jair Bolsonaro em 29 de julho de 2021, quando ele fez diversas afirmações falsas e contraditórias sobre o processo eleitoral brasileiro.

A apuração da PF foi determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes a partir de uma manifestação do TSE para que o conteúdo da live presidencial fosse investigado. O procedimento passou a tramitar no STF na forma de petição (nº 9842), uma apuração preliminar usada pelo tribunal antes da abertura de um inquérito, e como um apenso de outro inquérito, o de nº 4781, o chamado “inquérito das fake news”.

As citações ao CMSE (Comando Militar do Sudeste) foram feitas à PF pelo empresário paulista Marcelo Abrileri e pelo coronel de artilharia do Exército Eduardo Gomes da Silva, que em 2018 era “oficial de inteligência” do CMSE, segundo o militar. Em 2020, Silva passou para a reserva e hoje ocupa o cargo de secretário especial de Modernização do Estado na SGP, no Palácio do Planalto, a pasta de Ramos. Ele participou da mesma live investigada, ao lado de Bolsonaro.

O coronel da reserva do Exército Eduardo Gomes da Silva durante live transmitida pelo presidente Jair Bolsonaro em julho de 2021 - Reprodução - Reprodução
O coronel da reserva do Exército Eduardo Gomes da Silva durante live transmitida pelo presidente Jair Bolsonaro em julho de 2021 – Reprodução – Reprodução

Segundo o currículo de Silva, ele também foi, em 2017, o “chefe da divisão de suporte à Inteligência do CIE”, o Centro de Inteligência do Exército, e “responsável pelos meios de tecnologia de informação em apoio às atividades do Sistema de Inteligência do Exército (Siex)”, além de “assessor de inteligência do Comandante Militar do Sudeste”.

Planilha apresentada em live foi produzida por empresário

A participação do CMSE – um dos oito comandos regionais do Exército no país, responsável pela 2ª Região Militar e pela 2ª Divisão do Exército – numa discussão sobre urnas eletrônicas primeiro veio à tona durante o depoimento do coronel. A delegada da PF responsável pela apuração, Denisse Dias Rosas Ribeiro, indagou sobre uma informação contida nos depoimentos de dois peritos criminais da PF, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro.

Os peritos contaram ter sido chamados a uma reunião no Palácio do Planalto em 23 de julho de 2021, seis dias antes da live. Do encontro participaram Ramos, Silva e mais quatro pessoas, incluindo o diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem, e o ministro da Justiça, Anderson Torres. Ramos depois diria à PF que Bolsonaro “tinha conhecimento da reunião”. Era um preparativo para a live presidencial.

Logo no início da reunião, Ramos citou o prenome de um empresário paulista, “Marcelo”, como “dono de uma empresa de informática e que ele teria identificado uma suposta fraude nas eleições de 2014 (responsável por elaborar a tabela apresentada na live)”.

De acordo com os peritos, Ramos disse que o tema do encontro eram as supostas fraudes nas eleições de 2014 e que “tais fraudes poderiam ser corroboradas por uma planilha e gráficos”. Em seguida Ramos deixou a sala e a reunião passou a ser conduzida pelo coronel Silva.

O coronel fez então uma apresentação que trazia “praticamente o mesmo conteúdo” do que seria apresentado pelo militar na live de Bolsonaro, seis dias depois. A fala de Silva incluiu uma tabela intitulada “o padrão dos números da eleição de 2014”. O coronel foi além: telefonou para o empresário “Marcelo” e colocou-o no telefone em viva-voz para ele explicar “como realizou os cálculos”. A planilha era usada para dizer que uma suposta fraude nas urnas eletrônicas beneficiou a então candidata à reeleição Dilma Rousseff (PT) em detrimento do seu adversário no segundo turno, Aécio Neves (PSDB).

Na mesma noite da live de Bolsonaro, o TSE teve que vir a público explicar que a planilha que mostra as inversões entre os candidatos “é falsa”.

Planilha entregue ao Exército em 2018 foi “foco” da reunião

Ao final da sua apresentação no Planalto em 23 de julho, o coronel quis saber dos peritos o que achavam do conteúdo da tabela. Peixinho, com larga experiência na perícia de crimes cibernéticos, disse que “não tinha condições técnicas para avaliar a planilha e sugeriu que tal documentação fosse encaminhada para a PF para que pudesse ser analisada pelo setor específico”.

Segundo Peixinho, Silva concordou com a medida, porém “o general Ramos disse que tal medida não seria possível pois essa planilha seria apresentada na próxima quarta-feira e na quinta-feira pelo presidente da República em uma coletiva”.

O perito Polastro explicou à PF que a tabela estava longe de ser um detalhe na reunião ocorrida no Planalto, na verdade “a referida planilha foi o foco da reunião”. Disse ainda que ele e seu colega na reunião “contestaram tecnicamente o resultado exposto em uma coluna” da planilha.

“O coronel Eduardo foi alertado pelo depoente [Polastro] e pelo perito Peixinho de que a coluna na planilha que apresentava comportamento atípico poderia não representar o que estava sendo interpretado, ou seja, a possibilidade de uma fraude nas eleições de 2014”, disse o perito à PF.

A partir dos depoimentos dos peritos, a PF deu atenção à planilha e ao empresário “Marcelo” como aspectos importantes nos preparativos da live de Bolsonaro. O coronel Silva foi indagado sobre esses tópicos em seu depoimento prestado à PF em agosto de 2021.

Silva disse que conheceu o empresário na condição de “oficial de inteligência” do CMSE, em 2018. Ele contou que Marcelo “procurou o Comando do Exército do Sudeste” em 2018 dizendo possuir “informações que indicariam indícios relacionados a possível fraude nas eleições de 2014”. “Como o declarante [Silva] exercia a função de Oficial de Inteligência do Comando do Exército do Sudeste, Marcelo foi direcionado ao declarante para apresentar tais informações”, disse o coronel. Ele não explicou – nem foi indagado – quem foi a autoridade militar que o orientou a receber Marcelo.Trecho do depoimento prestado pelo coronel da reserva do Exército Eduardo Gomes da Silva à Polícia Federal em apuração que tramita no STF

No depoimento, Silva reconheceu que não tem “conhecimento na área [sic] de informática, programação, matemática e/ou estatística” e que possuía mestrado “na área de ciências militares, com especialização na área de inteligência”. Ele disse que assessorava o ministro Ramos “com análise de cenários de política, relações com os ministérios, acompanhamento em reuniões e outras atividades”.

A PF procurou então ouvir o empresário paulista – seu telefone celular fora repassado por Silva. Tratava-se de Marcelo Abrileri, 56, que se apresentou como um “empresário do ramo de internet”, cuja atividade “gira em torno de plataformas online”. Ele tem o segundo grau “técnico na área de eletrônica”. Reconheceu que não possui nenhum “grau de conhecimento formal” nas áreas de matemática, probabilidade e informática, embora se considere, “desde a infância”, como um “autodidata nessas três áreas”.

Abrileri disse ser o autor da planilha sobre as eleições de 2014. Afirmou que não tem e “nunca teve” nenhum “vínculo político-partidário”, mas “passou a ter receio de que o ‘comunismo tomasse o Brasil'” a partir de 2014, “com a vitória da então candidata Dilma”. Ele ficou “surpreso e desconfiado com o resultado das eleições de 2014”. Resolveu produzir a planilha.

Empresário disse que manteve duas reuniões no Exército em SP

Abrileri disse que usou os números divulgados publicamente pelo TSE e reproduzidos pelo portal de notícias G1. Disse que chegou a tentar uma audiência com pessoas da cúpula do PSDB, mas não apresentou a planilha. Nesse meio tempo, recebeu um telefonema que encarou como “ameaça”. Deixou a planilha de lado. Quatro anos depois, disse Abrileri, ele viu uma entrevista do então candidato Bolsonaro e resolveu voltar ao assunto.

O empresário disse ter sido apresentado por um amigo empresário a Luiz Phillippe de Orleans e Bragança, na época candidato a deputado federal pelo PSL, que o orientou “a procurar o Comando Militar do Sudeste”. Bragança “fez um contato prévio com o coronel Gilberto Barbosa”, que “fez a ponte” para que Abrileri “pudesse apresentar a informação no Comando Militar do Sudeste”.

Trecho do depoimento do empresário Marcelo Abrileri à Polícia Federal em apuração determinada pelo STF - Reprodução - Reprodução
Trecho do depoimento do empresário Marcelo Abrileri à Polícia Federal em apuração determinada pelo STF – Reprodução – Reprodução

Assim, conforme a declaração do empresário, foi um encontro formal dentro da instituição. Ele participou de uma primeira reunião no CMSE “para repassar as informações e a planilha para alguns militares, dentre eles o coronel Eduardo”.

Abrileri disse que participou de uma segunda reunião no Comando sobre o mesmo tema, “dessa vez com a presença do general Ramos”. Um dos principais apoiadores de Bolsonaro no governo, Ramos foi o comandante Militar do Sudeste de maio de 2018 a julho de 2019, quando se tornou ministro de Bolsonaro. Abrileri disse que “não sabe informar o que os militares fizeram com a informação” que entregou a eles em 2018.

Mas como foi que o tema da planilha voltou a aparecer em 2021 no coração do Executivo em Brasília? O coronel Silva argumentou que o próprio Bolsonaro já o procurou, após ter seu nome indicado por Ramos como interlocutor sobre o tema da live, repassou o contato de Abrileri e solicitou que Silva entrasse em contato para “tratar sobre a planilha apresentada anteriormente ao declarante [Silva] em 2018”. E como foi que a história de Abrileri chegou a Bolsonaro? O próprio empresário explicou ter sido acionado pelo general Ramos, por telefone.

Na ligação, Ramos disse estar ao lado de Bolsonaro. Colocou a ligação no viva-voz e Abrileri até falou com o presidente. Ramos pediu ao empresário “para falar um pouco sobre as informações que descobriu em 2018”. Depois disso, Silva foi colocado em contato com Abrileri. Os dois seguiram falando por muitos dias.

Mas aquela não foi a primeira interação do empresário com Bolsonaro intermediada por Ramos. Abrileri revelou que houve um encontro pessoal, no final de 2019, portanto meses antes da live, no Palácio do Planalto. O encontro foi agendado por Ramos e teve a participação de Bolsonaro e “mais outras oito pessoas”. Abrileri “falou sobre as informações que descobriu em 2018”. Outras pessoas falaram sobre supostas fraudes eleitorais.

Ramos não foi indagado sobre reunião no Comando

Ramos não foi perguntado, no depoimento que prestou à PF, sobre o papel do Comando Militar do Sudeste no tema da tabela. Seu depoimento ocorreu no dia 30 de agosto, antes do depoimento de Abrileri (prestado em 3 de setembro), porém depois do depoimento do coronel Silva.

Ramos disse que, três semanas antes da sua live, Bolsonaro o procurou “informando que precisava de alguém que pudesse auxiliar na elaboração da live”, cujo tema seria “o sistema eleitoral”. O ministro sugeriu o nome de Silva, “que era alguém de sua confiança e que trabalhava com o declarante [Ramos] desde 2018”. Ramos não soube dizer como foi que o tema da planilha apareceu nos preparativos da live.

O ministro disse que “não tinha conhecimento sobre o conteúdo que seria apresentado” na live por Bolsonaro e que “não foi comunicado da integralidade da apresentação do coronel Eduardo”. Ramos disse que acreditava nas urnas eletrônicas, mas “como tudo na vida a urna, acreditava, que carecia de aperfeiçoamento”.

A coluna encaminhou às 12h00 deste sábado (28) diversas perguntas às assessorias de Ramos, do CMSE e do Comando do Exército, em Brasília, mas não houve retorno até o fechamento deste texto. A coluna indagou ao Exército, entre outros pontos, se “oficiais de inteligência” e/ou generais do CMSE costumam apurar, receber ou investigar supostas denúncias sobre sistema de votação eletrônica no Brasil, cuja responsabilidade cabe ao TSE; se cabe ao comandante Militar do Sudeste participar pessoalmente desse tipo de captação de supostas informações de inteligência; e o que o CMSE fez a respeito das supostas informações repassadas por Abrileri.

As citações ao CMSE nos depoimentos de Silva e Abrileri não receberam atenção especial da delegada da PF Denisse Ribeiro no seu relatório parcial. Quando a imprensa o divulgou, em dezembro, foi possível verificar que a delegada sequer citou as reuniões no Comando paulista. Ao transcrever boa parte das declarações do empresário Abrileri, por exemplo, o relatório também pulou todas as citações ao CMSE.

No relatório, a delegada pediu o apensamento da petição, que chegou a 176 páginas, a outro inquérito, de nº 4874, e o envio de cópia da apuração – ou seja, incluiria todos os depoimentos que falam do Comando Militar do Sudeste -, ao TSE, à CGU (Controladoria Geral da União) e ao MPF (Ministério Público Federal) “para avaliação quanto à possível repercussão do evento em tipos administrativos previstos na lei 8429/1992”, que trata de improbidade administrativa. 

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