ELZA SOARES DOS GURIS E DAS GURIAS: PRESENTE !

CHARGE DE NANDO MOTTA

Poucas pessoas revelam tanta vida quando morrem quanto a amada Elza Soares.

Muitos lances da história de Elza e, porque não dizer, do próprio povo brasileiro, jorram para as ruas depois que seu coração parou de bater.

A morte de nossa cantora rouca mostrou a crueldade da miséria e do machismo, que matou a adolescência de uma guria, fazendo-a mulher sem que tivesse o direito de percorrer as etapas que teria de completar livremente a adolescência.

O machismo no pai de Elza a fez casar-se aos 12 anos e, com 13,  ser mãe. Ela que precisava essencialmente ser filha teve seu colo usado sexualmente e seu ventre portador de um filho para a fome.

Elza viveu a amarga experiência de milhões de gurias faveladas, pobres e estupradas. O machismo não é outra coisa se não mecanismo violento do massacre da adolescência, fazendo das gurias depósitos de espermas de homens igualmente imaturos,  vítimas e contaminadores de desumanidade. É parte de uma engrenagem de moer carnes negras, infantis e adolescentes.

Impressiona a resistência do talento de Elza. Esta resistência foi a expressão do seu próprio ser indobrável: a sua voz rouca foi a expressão da beleza e da insistência de uma favelada, que nunca desistiu em face do tal mercado e suas reservas, fechado a negras, mulheres e pobres.  PUBLICIDADE

Nas idas e vindas, agendamentos para testes e desistências por parte de interessados pressionados por outros, o talento de Elza, como flor forte, perfumada de feminidade e negritude, insistiu e abriu espaços, talvez coisa que ela aprendeu com os guris ao chutarem bolas,  quebrando vidros de janelas e portas, para se fazerem reconhecidos como fortes muscularmente e na arte de chutar.

Cantar, para Elza,  não era chute casual e sem treino, mas manifestação da energia de seu talento, carregado da força dos chutes nas bolas que os guris das favelas deram.

Hoje a obra dessa grande mulher brasileira é celebrada e reconhecida  pela grande mídia nacional e internacional. Porém, nossa guria favelada negra maior teve que arrombar portas fechadas pelo mercado cruel, movido à muito capital, eufemisticamente chamado de investimento, o mesmo que seleciona produtos lucrativos e rentáveis aos donos de produtoras, gravadoras e da mídia. Lá primeiro penetrou a bola rouca da voz de nossa resistente cantora, que não se curvou à miséria, ao luto pela perda dos filhos  nem à pressão da ditadura militar, discriminadora e covarde.PUBLICIDADE

Como guria oriunda das favelas e com elas formando sua alma, Elza aprendeu a chutar e driblar em todos os terrenos escarpados, vencendo os obstáculos mais cruéis impostos pelo sistema que marginaliza e massacra mesmo pessoas talentosas.

Talvez a energia para chutar e a inteligência para driblar na vida tenham sido arquétipo determinante da resistência e até do amor em Elza. Se foi assim,  o encontro com o homem de sua vida, o glorioso Garrinha, não foi mero acaso.

Diferente de Pelé, que se amoldou à covardia da ditadura, subindo à tribuna do Senado para caluniar o povo brasileiro ao dizer que este não sabia votar e, por isso, sob o ferrolho fascista militar tinha o governo que merecia, Garrinha não se dobrou ao tacão opressor e denunciou o desrespeito à democracia e ao Brasil

Garrincha, com seu talento genial, chutou as vidraças sujas do regime dos generais torturadores e sanguinários.

Por isso Garrinha e Elza foram punidos como se jogassem cometendo faltas no campo nacional e foram expulsos depois que os facínoras  metralharam odiosamente sua casa. Nossa cantora mesma relata isso em artigo escrito à Folha de São Paulo em 25/05/2014.   “Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.

Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?”, escreveu com espírito revolucionário a nossa Elza Soares.     

Elza e Garrincha protagonizaram o amor que transcende a relação a dois para galvanizar esta mesma força ativa e mobilizadora de outras pessoas, igualmente fortes na solidariedade como os gênios de Chico Buarque e Marieta Severo. De novo trago o artigo “a copa que não comemorei” (na íntegra abaixo) no qual Elza pinta a riqueza solidária de Chico, também perseguido e exilado na Itália pela mesma ditadura assassina que expulsou Garrincha e Elza do Brasil, onde faziam as artes do futebol e da música. Ela, sem condições de cantar por falta de contatos em Pátria estranha e Garrincha deprimido por não ser convocado para jogar naquela Copa, sem poderem sequer sair às ruas em Roma  para comemorar a vitória, se sentiram ainda mais abandonados e tristes com nosso jogador maior  se afogando em bebidas alcóolicas.  “Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma”, testemunhou Elza.

A genialidade revolucionária de Elza Soares, de Garrincha, de Chico e de Marieta é arquétipo natural e grandioso em nosso povo, que se desperta mais enfático e generoso em pessoas fraternas como as deste testemunho da biografia da nossa guria de 91 anos, eterna na nossa história brasileira de entraves aos pobres, negros, negras e aos trabalhadores, como intuiu nossa grandiosa sambista da voz rouca.

Além do artigo emocionante de Elza posto abaixo o vídeo com a teatralização da dureza das vidas dos guris e das gurias das favelas na sua insistência por desenvolver seus talentos e por serem dignos em nossa Pátria.

“A Copa que não comemorei

Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.

Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?

Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.

Estávamos trancados dentro de um apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.

Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.

Imagine o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa casa.

Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.

Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.

Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.

Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma -então fomos para Portugal por um tempo.

Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo -mas quem queria camisa da seleção naquela altura?

“Obrigado o…, cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil”, ele disse.

Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.

Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”.

ELZA SOARES

Abraços proféticos e revolucionários,

DOM ORVANDIL ” BLOG BRASILK 247″ ( BRASIL)

Bispo Primaz da Igreja Católica Anglicana, Editor e apresentador do Site e do Canal Cartas Proféticas

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