Qualquer cenário terá que incluir uma boa dose de imprevisão. Nas eleições brasileiras, não há histórico de atentados a candidatos, tentativas de golpe. Houve terrorismo quando começou a abertura lenta e gradual. E esse movimento terrorista foi conduzido por amigos e colegas de Bolsonaro.
Peça 1 – as disputas por hegemonia
Em entrevista à TV GGN, Franklin Martins definiu bem os embates entre mídia-mercado-empresários com os governos petistas desde sempre. Trata-se de uma disputa por hegemonia.
Essa disputa, aliás, remonta à história da República
Foi assim em 1930 e 1937, com a vitória das forças anti-paulistas; em 1946, 1954 e 1964, com a vitória do Sistema; em 1987, 2002 a 2014, com vitória das chamadas forças progressistas. E de 2016 em diante, com a volta do Sistema, primeiro através de Michel Temer, depois, através do acidente Jair Bolsonaro.
Para entender o jogo, é relevante separar personagens centrais dos agentes passivos.
Em todas as crises de governabilidade, o embate central permanente se resume a duas forças históricas: os internacionalistas e os nacionalistas.
Internacionalistas – o chamado Sistema. Engloba empresariado (especialmente o clube dos bilionários), o mercado (hoje em dia preponderantemente paulista), grupos militares pró-Estados Unidos e mídia corporativa. São os mesmos personagens que emergem a cada sinal de ascensão das chamadas forças populares, mesmo não sendo elas anti-empresariais, como foi o caso de Vargas, Jango e Dilma.
Nacionalistas – É o conjunto de agentes que defende um projeto nacional autônomo para o país. Historicamente, a bandeira foi defendida pelo getulismo, depois, pelo trabalhismo. Atualmente, é centralizada na figura de Lula.
É a disputa essencial, que vem desde os tempos do encilhamento ou até mesmo do Barão de Mauá. Não se trata meramente de visão de mundo diferente ou de preconceito social, ameaça à propriedade e quetais. São os negócios, estúpido! (parafraseando o “é a economia, esúpido!”).
Os internacionalistas veem o Estado nacional e as políticas públicas como oportunidades de negócio. Montam parceria com parceiros internacionais, eles entrando com o capital, os brasileiros com o conhecimento e a influência política.
Os conflitos de interesses se dão nos seguintes pontos:
Empresas nacionais – O capital financeiro visa adquirir empresas nacionais – tanto que a maior parte do investimento externo é em fusões e aquisições. O lucro do investidor depende da diferença entre o valor potencial da empresa e o resultado real. Empresas fracas, ou descapitalizadas, são mais baratas do que empresas fortes. Simples assim. Por isso mesmo, a ação do BNDES é vista como negativa pelo investidor financeiro, porque aproxima a empresa do seu resultado potencial.
Serviços públicos – Em um projeto nacional, serviços públicos têm como objetivo final a população atendida. Por definição, deve-se buscar a modicidade tarifária ou mesmo a oferta sem custos. Na visão financeira, a privatização de serviços públicos é um bom negócio. E, como tal, busca-se a maximização dos lucros, ou pela redução do produto entregue ou pelo preço cobrado.
Estatais estratégicas – Em um projeto nacional, energia é preço estratégico, fundamental para políticas de distribuição de renda e para a competitividade das empresas nacionais. Na visão financeira, é oportunidade de negócios. O caso dos combustíveis é pedagógico do que acontecerá com o setor elétrico, caso se concretize a venda da Eletrobras.
Tributação – em qualquer projeto nacional decente, a tributação deve ser progressiva, taxando proporcionalmente mais os mais ricos e os ganhos financeiros.
Função pública | Projeto Nacional | Internacionalização |
Empresas nacionais | Fortalecer empresas nacionais. | Fusão e aquisição. Quando mais fraca, mais barata. |
Estatais estratégicas | Fornecer insumos em conta para consumidores | Maximizar preços e rentabilidade |
Serviços públicos | Foco no público e na universalização | Oportunidade de negócios. |
JK conseguiu celebrar um pacto com os internacionalistas ao condicionar a entrada de montadoras estrangeiras a associações com capitalistas brasileiros.
Peça 2 – a proa da lanterna, a pior geração liberal
Esse jogo de hegemonia está permanentemente sujeito aos movimentos de opinião pública, na capacidade de cada ator convencer a opinião pública com suas bandeiras. E aí os grupos de mídia exercem um papel central. Cabe à mídia convencer o empresário não financeiro que pagar mais caro por financiamentos, com a redução do BNDES, é bom para ele; convencer o trabalhador comum de que a redução da Previdência ou dos direitos trabalhistas beneficiará a ele.
Mas são engodos de curta duração, já que o foco de toda política são os negócios.
A principal arma levantada pela banda internacionalista, em toda a história da República, é o tema da corrupção. Foi assim no suicidio de Getúlio Vargas, com o tal “mar de lamas “, que nunca se confirmou. Com o suicídio houve uma mudança radical na opinião pública, garantindo a eleição e a posse de JK – que passou todo seu governo fustigado por denúncias de corrupção. No curto interregno antes da eleição de JK, houve a tentativa de mudança radical na política econômica pelos gabinetes de Café Filho e Carlos Luz.
Depois, em 1964, volta a bandeira da corrupção. E a mesma bandeira é levantada, inicialmente pelo “mensalão” e, depois, pela Lava Jato de 2014. Vem o impeachment e, na sequência, um desmonte total do Estado, iniciado por Michel Temer e completado por Jair Bolsonaro.
A diferença de outros momentos é que em 1964 havia um projeto de país na cabeça dos liberais – conduzidos por Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos. E havia uma preocupação com o interesse nacional por parte da cúpula militar.
Com o impeachment e o advento da era Temer-Bolsonaro, viu-se toda a riqueza do pensamento liberal reduzido à tal Ponte Para O Futuro – e o discurso liberal defendido por um grupo de intelectuais de pensamento raso, mas tão raso que a única bandeira que lhes restou é uma defesa ridícula da Lei do Teto. Ou seja, capturaram o barco da democracia, como os velhos piratas do Caribe, e descobriram que não sabiam nem como nem para onde conduzir a nau.
A consequência trágica foi jogar os destinos do país nas mãos de uma autêntica organização criminosa, com relação direta com os porões das Forças Armadas e as milícias do Rio de Janeiro, e ligações explícitas com o crime internacional.
Peça 3 – os movimentos de opinião pública
Há muita semelhança entre movimentos de opinião no mercado de ações e no mercado político. No de ações, empresas não são “boas” ou “ruins”: são “baratas” ou “caras”.
O processo é simples. Determinada ação se valoriza bastante. A partir de determinado nível, considera-se que está “cara”. Ganham espaço, então, as notícias e avaliações negativas sobre a empresa. Deflagra-se um processo de vendas do papel que provocam o chamado “overshooting”, isto é, uma radicalização do movimento de queda. E vice-versa: quando a ação se torna excessivamente barata, há um movimento inverso de compra e de predomínio das avaliações positivas, e um chute para cima.
Há casos em que a queda é tão acentuada que se torna irreversível. É quando as ações viram pó.
O grande desafio dos jogadores – no mercado ou na política – é manter o movimento até o dia do vencimento, ou das eleições.
Neste momento, o ativo Lula está em alta, quase batendo no pico. E Bolsonaro está em baixa, quase ficando barato (para seus seguidores). Contribui para tanto a perda de rumo da chamada Terceira Via, e a mídia pretendendo aumentar o “overshooting” de Bolsonaro para vê-lo virar pó, e poder, então, explorar o antilulismo. É o que explica, em parte, a moderação da mídia, rompendo um pouco o silenciamento de Lula e permitindo aos comentaristas mais independentes análises menos falaciosas sobre o candidato.
Daqui até março haverá pequenas jogadas destinadas a definir o sobrevivente da Esquadra Brancaleone da Terceira Via, se João Dória Jr (muito mais pelo peso de São Paulo do que por sua empatia) ou Sérgio Moro.
A edição desta semana da Veja, com Sérgio Moro, mostra a aposta de André Esteves-BTG-Veja de colocar um pé na canoa de Moro. E, não dando certo, voltar para Dória. E, não dando certo, apoiar Lula.
Aliás, dado o histórico de más apostas de Veja, a capa deveria preocupar Moro.
Com esses movimentos, a trégua, para Lula, durará provavelmente até março. Digo provavelmente porque a prova dos 9 será a minissérie sobre a morte de Celso Daniel, ex-prefeito de São Bernardo do Campo, anunciada pela Globoplay para o final do mês.
Na época, investigação conduzida pela Polícia Civil de São Paulo, governo tucano, concluiu por crime comum. Quando a investigação chegou ao Ministério Público Estadual, este tentou transformar em crime político.
A narrativa adquiriu tal grau de fantasia que, em determinado momento, até o publicitário mineiro Marcos Valério entrou na história, atraído por uma proposta de delação premiada. Aí se considerou que seria demais e a armação não foi em frente.
Mas o factóide continuará sendo ressuscitado em cada eleição. Aliás, desde os anos 90 pululam esses factoides em período eleitoral. Depois do desastre da Lava Jato, seria de se esperar mais bom senso por parte da mídia. Dado o histórico, é esperança vaga.
Por isso, de um lado, levantarão velhos fantasmas contra o PT. Do lado de Bolsonaro, tudo indica uma enorme armação em torno da facada desferida por Adélio.
Peça 4 – o início da guerra
No início da campanha, se verá um movimento inicial de queda relativa de Lula e alta relativa de Bolsonaro. Mas tudo efeito desse movimento de ondas. No momento seguinte, haverá inversão das ondas.
Assim como no mercado, uma maneira de escapar dessas armadilhas das variações de curto prazo é avaliar os fatores essenciais, os fundamentos de cada eleição e traçar uma reta hipotética para o resultado final – quando o candidato estiver acima da reta, estará caro; abaixo, estará barato, se houver descolamento muito grande, refazem-se as hipóteses. Mas evita-se dispersar energia com análises sobre variações pontuais.
Por fundamentos entenda-se os pontos centrais de preocupação dos diversos segmentos de opinião pública. Na etapa anterior, os dados referenciais eram a corrupção – fruto da Lava Jato – e a falta de discernimento nos gastos públicos e nas isenção fiscais. Agora o jogo é outro.
- Crise econômica e inflação. Mesmo com menor pressão da inflação, a questão econômica continuará sendo preponderante, especialmente com o aprofundamento da miséria e da fome.
- Os dois temas anteriores criaram uma onda de solidariedade, em oposição ao discurso de ódio e de polarização que vigorou nas últimas eleições.
- Preocupação com a destruição do Estado brasileiro reforçado pelo fator Bolsonaro, visto por grande parte da opinião pública como uma ameaça ao país. E, por oposição, a imagem de Lula, com seu histórico de bom governo.
Peça 5 – o fim da história
Qualquer análise terá que levar em conta o ineditismo da política após as eleições de 2018.
Até então, os analistas políticos analisavam de acordo com o histórico das eleições anteriores.
Bolsonaro rompeu com todas as regras anteriores. Criou um clima político inédito com seu discurso de ódio e o uso de redes sociais, e trouxe para o centro do poder o crime organizado, as ligações de seus filhos com milícias e com organizações internacionais de ultra-direita.
Qualquer cenário terá que incluir uma boa dose de imprevisão. Nas eleições brasileiras, não há histórico de atentados a candidatos, tentativas de golpe. Houve terrorismo quando começou a abertura lenta e gradual. E esse movimento terrorista foi conduzido por amigos e colegas de Bolsonaro.
Por tudo isso, seria de bom senso os setores democráticos da política, da Polícia Federal e das forças de segurança, abrir os olhos para eventuais tentativas terroristas.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)