O Brasil celebra nesta 2ª feira, 17 de janeiro, o aniversário da aplicação da primeira dose de vacina contra a Covid-19 no país. Graças ao esforço do governador de São Paulo, João Dória, o Instituto Butantã negociou a produção, no país, da vacina CoronaVac, criada na China e, após a aprovação da Anvisa, ela foi aplicada na enfermeira paulista Mônica Calazans. Por feliz coincidência, nesta 6ª feira, 14 de janeiro, na abertura da temporada da extensão da vacinação a crianças entre cinco e 11 anos, coube ao indiozinho Davi Xavante, de 8 anos, a primazia de ser o primeiro a receber o imunizante da Pfizer, também em São Paulo. O ato não deve ter agradado ao presidente Jair Bolsonaro, que insiste em levar a destrução dos garimpos às terras indígenas. O presidente sempre foi contra a vacinação e medidas preventivas contra a Covid-19, como o isolamento social, o uso de máscaras e a restrição à circulação nos períodos mais críticos, desdenha do governador de São Paulo. Há duas semanas, em cerimônia no Palácio do Planalto, deu a palavra de ordem, que veio na contramão do bom senso para uma parcela da sociedade: “máscaras aqui, não”.
Seus chistes grosseiros agradam à turba bolsonarista (e parecem ter conquistado uma minoria de 26,5% de brasileiros que não tomaram sequer uma dose de vacina). Mas estão completamente descolados da seriedade que o estágio da pandemia exige. Nos países europeus, nos Estados Unidos e aqui na vizinhança da América do Sul, os governos responsáveis retomaram as medidas de prevenção e reforçaram a vacinação horizontal e vertical (dose de reforço). Um governante de atitudes radicais de seu agrado, o autoritário presidente Rodrigo Duterte, das Filipinas, arquipélago no Pacífico com 110 milhões de habitantes, que, como Bolsonaro e filhos, adora exibir metralhadoras e armas automáticas de grosso calibre, que adotou a pena de morte contra traficantes de drogas, ameaçou proibir a circulação em metrô dos não vacinados. As pesquisas eleitorais, com a popularidade presidencial em queda, confirmam a percepção da sociedade de que o governo segue agindo mal na pandemia e na economia. Os pesquisados que declaram voto em Bolsonaro ficam em menor número do que os que não foram ainda vacinados.
Com o avanço da vacinação infantil, podemos repetir no Brasil o fenômeno dos Estados Unidos. Os negacionistas republicanos que apoiaram Donald Trump até o fim e atenderam à sua convocação para a infame invasão do Capitólio, para, sob a falsa alegação de fraude nas eleições, que perdeu no voto direto por mais de 3 milhões de votos e no Colégio Eleitoral, impedir na marra a diplomação do presidente eleito Joe Biden e da vice Kamala Harris, em 6 de janeiro de 2021, são em número semelhantes aos 25% de americanos que ainda não tomaram qualquer vacina. Lá, com o avanço dos contágios recentes e das mortes, que chegaram a 846,6 mil cidadãos, houve uma corrida à vacinação, mas apenas 60% dos americanos (40% ainda resistem) estão com o ciclo de vacinação completo; no Brasil, chegamos a 72,3% da população completamente vacinada, o que impediu a explosão das mortes nos últimos três meses. Desde o ataque de “hackers”, em 9 de dezembro, os dados do DataSus, do Ministério da Saúde são pouco confiáveis. Eles apontam 620 mil mortes, mas o site do IHME, instituto de métricas da medicina da Universidade de Seattle (estado de Washington), que faz projeções mais realistas para as mortes e casos de Covid, indica 621,7 mil. O Peru foi o 1º país a reconhecer a subnotificação, apontada pelo IHME e as mortes dobraram – estão hoje em 203,2 mil. Muito para uma população de 33 milhões de habitantes. Para os EUA, com 320 milhões de habitantes, o IHME indica que as mortes passaram de 852 mil e podem chegar a mais de 900 mil até 1º de maio. No Brasil, com 214 milhões de habitantes, graças à maior cobertura vacinal, deixamos o 2º lugar no “ranking” das mortes para a Rússia. Oficialmente, o país de Vladimir Putin tem 320 mil mortes; nas contas do IHME, são mais de 663 mil, com previsão de superar os 700 mil até a primavera, em maio, pois só 57% dos 147 milhões de russos receberam uma dose, e faltam dados sobre a vacinação completa.
O descaso no Brasil e as urnas
Os casos de contágio se ampliaram com a circulação da variante Ômicron, surgida na África do Sul, e se espalharam por meio mundo. A Ômicron já circulava no começo de dezembro, mas nem assim o governo Bolsonaro reforçou as providências para barrar o contágio no Brasil. Ao contrário, numa demonstração de completa insanidade e desprezo pela ciência e a vida humana, agiu claramente a favor do vírus: reclamou quando a Anvisa recomendou, por prevenção, a suspensão dos voos da África do Sul e países vizinhos, além de aumentar o rigor na entrada de turistas estrangeiros nos aeroportos, portos e por via terrestre; reagiu duramente quando a Anvisa aprovou, em 16 de dezembro, a vacinação em crianças – para atender aos caprichos do presidente da República, o Ministério da Saúde, à frente o médico Marcelo Queiroga, que, apesar de cardiologista, repetiu a tosca mensagem do antecessor, o general Eduardo Pazuello: “um manda, o outro obedece” – Queiroga abriu uma inócua consulta pública sobre a vacinação infantil e só aprovou a extensão da vacinação infantil em 5 de janeiro. Sem tempo hábil para que a criançada retornasse ao intenso contato na volta às aulas, em fevereiro, com um nível mínimo de proteção de uma 1ª dose, pois estabeleceu intervalo de 21 dias entre uma dose e outra.
A negligência do governo em enfrentar a variante Ômicron, insistindo na abertura geral de fronteiras quando a precaução recomendava o contrário – Bolsonaro protestou quando os cruzeiros marítimos foram suspensos na costa brasileira, com a contaminação mais intensa junto aos tripulantes, que deveriam ser os mais testados e vacinados; nas companhias aéreas se sucedem os casos de desfalque nas tripulações, o que aumenta a desconfiança geral sobre a segurança sanitária dos voos. Na prova maior do “laissez-faire, lassez-aller, laissez-passer” geral do governo negacionista, o ministro do Turismo, o pernambucano Gilson Machado, mais conhecido por “tocar”(?) sanfona nas “lives” semanais do presidente Bolsonaro, é a mais nova baixa do governo com Covid-19. Entusiasta dos cruzeiros marítimos e das viagens para festas regionais, Machado, que escapou da contaminação na comitiva que acompanhou o presidente da República na abertura da Assembleia Geral da ONU, em setembro, sucumbiu à Ômicron. O vírus que Bolsonaro disse ser “amigo” e capaz de extinguir a pandemia pelo “efeito de manada”. Um Dr. Pangloss desqualificado de “Cândido” e “Otimismo”, duas obras de Voltaire que satirizam o excesso de otimismo ou ingenuidade do Dr. Pangloss. Jair Bolsonaro está mais para o tresloucado “Simão Bacamarte” do genial “O Alienista” de mestre Machado de Assis. Ou, quem sabe, se inspire na teoria higienista do nazismo, de promover uma “seleção natural”, na qual, a partir da prévia extinção dos judeus, só os fortes sobreviveriam.
As pesquisas eleitorais indicam o divórcio entre as ações do governo e a realidade. Se as eleições fossem hoje, segundo a última pesquisa Quaest/Genial Investimento, com citação dos nomes, Lula teria 45% dos votos no 1º turno, contra 23% de Bolsonaro, 9% de Sérgio Moro, 5% de Ciro Gomes e 3% de João Dória. Com 8% de votos em branco e nulos, Lula estaria roçando os 50% dos votos válidos (92%, ou 46%, isso num universo de 4% indecisos, que costumam votar nos que estão à frente). Mas acontece que uma outra planilha da mesma pesquisa mostrou que 52% dos ouvidos, sem que lhes fossem apresentados candidatos, ainda estão indecisos sobre em quem votar. Nesta pesquisa, Lula liderava com 27%, contra 16% de Bolsonaro, 3% estavam entre brancos e nulos e Ciro e Moro receberam 1º cada. Uma 3ª pesquisa mostrou que muita água pode ainda correr por baixo da ponte (se forem as águas que causaram destruição e mortes na Bahia, em Minas Gerais, no Espírito Santo, em Goiás, Tocantins e Piauí, e Bolsonaro repetir a falta de empatia que teve ante os mortos pela Covid, curtindo as férias adoidado em Santa Catarina, pode ser dar mal: ante a pergunta: “Nas eleições de 2022, você prefere que vença?”: 44% responderam “Lula”, 26% disseram “nem Bolsonaro nem Lula” e só 23% cravaram “Bolsonaro”. O jogo mal começou.
Dize-me com quem andas
Pelo sim, pelo não, o presidente Jair Bolsonaro escolheu os coordenadores de sua equipe para a campanha da reeleição. Além do filho 01, o senador Flávio Bolsonaro, acusado da prática de “rachadinhas” em seu gabinete na Alerj, quando nomeava assessores que não precisavam bater ponto, em troca de abrirem mão de boa parte dos vencimentos, que se filiou ao PL-RJ, presidido pelo notório Waldemar Costa Neto, que cumpriu mais de três anos de prisão por crimes de corrupção no mensalão, passa a fazer parte do núcleo duro da campanha o chefe da Casa Civil e um dos líderes do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Para facilitar o jogo eleitoral, e agilizar as liberações de verbas no Orçamento Geral da União para deputados e políticos aliados, decreto do presidente Jair Bolsonaro conferiu ao ministro da Casa Civil a primazia sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, na liberação dos recursos (se vier com o OK da Casa Civil, Guedes terá mais dificuldades para vetar). Acredito que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) presidido pelo ministro Luís Roberto Barroso, e o Tribunal de Contas da União (TCU) devam examinar melhor esses conchavos com o dinheiro público (do seu, do meu, dos nossos impostos) que já estão sendo tramados em meio ao recesso parlamentar (o Legislativo retoma os trabalhos em 1º de fevereiro) e bem antes do início da campanha. A experiência indica que os acertos prévios ocorrem bem antes.
Um campo sobre o qual o TSE e a Justiça eleitoral deveriam lançar mais atenção é o da atuação dos pastores de seitas evangélicas. Seu poder de persuasão sobre um eleitorado estimado entre 25% e 30% da população brasileira (há quem estime acima disso, superando a influência da Igreja Católica) não é desprezível. O poder dos pastores sobre as comunidades que contribuem com o dízimo mínimo de 10% sobre seus ganhos mensais, é muito forte. Se o pastor faz acordos políticos e cobra lealdade dos fiéis, a adesão à recomendação dos pastores supera de longe os 80%. No interior é sabido que muitas eleições para prefeito passam com negociações com pastores. Muitas vezes, as moedas de trocas são a melhoria do calçamento e da iluminação no entorno do templo evangélico, ou a colocação de nefandos quebra-molas (postos sem sinalização e com padrões aleatórios) antes e depois do templo, que causam prejuízos a motoristas desavisados. A cooptação dos pastores não se faz somente pela encampação de uma agenda conservadora. O governo isentou dívidas bilionárias de alguns notórios pastores. Outros, donos de influentes redes de televisão, ganharam considerável reforço das verbas oficiais. Espero que entre os pastores aliados já não figure Sérgio Amaral Brito, de 49 anos, pastor de duas unidades da Assembleia de Deus, que teve a prisão preventiva decretada esta semana pela Justiça do Rio de Janeiro, sob acusação de ter estuprado ao menos oito mulheres. O pastor se valia do “abraço terapêutico” (contraproducente em tempos de pandemia) para tirar “casquinha” de incautas fieis, que selecionava pela beleza ou formas.
Mas, a partir de amanhã, uma parte do país vai mergulhar numa realidade paralelo, com o começo do Big Brother Brasil 22. Espero que durante os 100 dias de alienação, o país não se deixe enganar pelo desempenho de celebridades e outros com grande penetração das redes sociais. Todos os desafios do Brasil e do mundo (como a pandemia, um vulcão ou um tsunami) continuam presentes.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)