A BAHIA NA ROTA DA CARREIRA DA ÍNDIA

Mestre do Direito Comercial, Waldemar Ferreira (1885 – 1964), nascido em Bragança Paulista, ilustre professor da célebre escola dos doutores do Largo de São Francisco, de São Paulo, costumava repetir, nas aulas, a máxima, segundo a qual, “comércio que por mar se faz, marítimo se lhe chama” – imortalizada na sua imprescindível obra “O Comércio Marítimo e o Navio”, publicada em 1930. Uma óbvia conclusão. Mas até hoje a pérola é cultivada pelos seus antigos e novos discípulos.

Foi, de fato, através das compras e vendas feitas pelo mar que se deu, no Brasil, a ampla miscigenação racial, cultural e gastronômica. O comércio marítimo, conforme explicitou Ferreira, avô de um querido e saudoso amigo, Luiz Fernando Ferreira Levy (1939 – 2017), proprietário do jornal Gazeta Mercantil (1920 – 2009), é a definição perfeita para emoldurar o ocorrido, entre os séculos XVI e XIX, quando Salvador foi o porto de escala dos navios da Carreira da Índia, que viajando em direção à Europa ou à Ásia, cruzavam o Sul do Atlântico.

A lendária rota, tema do livro do historiador campineiro José Roberto do Amaral Lapa (1929 – 2000), com o título “A Bahia e a Carreira da Índia”, editada em 1968, foi o embrião das miscigenações brasileiras. Sobretudo à mesa. Prova disso é que a refinada cozinha baiana, apesar do forte tempero das Áfricas, banhadas pelo Atlântico e o Índico, não foi reproduzida em nenhum ponto das Américas – igualmente povoada por centenas de milhares de africanos durante a colonização. Inclusive nos Estados Unidos. Não há outra culinária regional, nem em todo o Brasil, com as mesmas características.    

Foram os portugueses que começaram, a rigor, o processo de globalização dos cardápios, nos séculos XV e XVI, com a passagem do Cabo Bojador, na costa do Saara Ocidental, nas águas ao Sul do Marrocos, e o início dos Descobrimentos, provocando uma lenta alteração dos hábitos alimentares de muitos povos. Seriam os lusitanos a trazer para o Brasil, por exemplo, dois ingredientes que se transformariam em símbolo das ementas do dia a dia do País – o feijão e o arroz.

Transportaram ainda do Oriente e de África, entre outras culturas, os coqueiros, que se espalharam pelo litoral brasileiro, as bananeiras, as frondosas mangueiras e as próprias laranjas – conhecidas como ‘portuguesas’ em grande parte da Europa Central. A miscigenação dos sabores, promovida pelos lusos, ao mesclar, na Idade Moderna, especiarias e frutos orientais com condimentos europeus e os recém encontrados produtos americanos, mudaram, definitivamente, o paladar do mundo.

Lisboa levaria às mesas da Europa, com fartura, a pimenta tipicamente indiana. O comércio que se fazia, na Idade Média, a partir do Oriente Próximo, foi praticamente desviado para Portugal, com a introdução da Carreira da Índia. O que justifica o gosto ardido da exótica gastronomia de Salvador e do vizinho Recôncavo Baiano, influenciadas pelas sacas de pimenta cá desembarcadas em troca, quase sempre, dos rijos troncos de Jacarandá. Brasão da Índia Portuguesa ilustra a coluna.  

A Bahia, aliás, teve o privilégio de ser por 45 dias, de 22 de janeiro a oito de março de 1808, capital do Império Português, com a chegada, no Cais da Baiana, da Família Real Portuguesa, a caminho do Rio de Janeiro. A Corte do então Príncipe Regente Dom João VI (1767 – 1826), O Clemente, viveu momentos gloriosos. Os baianos reverenciam, com razão, a Carreira da Índia, que tanto sabor agregou à sua cozinha, e as semanas durante as quais Dom João VI, como soteropolitano, comandou, diante da sereníssima Baía de Todos os Santos, um Império onde o sol nunca se punha. 

ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)

Albino Castro é jornalista e historiador

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