Na longa entrevista chapa-branca gravada semana passada e colocada no ar em capítulos, desde segunda-feira, pela Jovem Pan, agora promovida a emissora oficial, o presidente Jair Bolsonaro volta a ameaçar o país com caos e rebelião, no momento em que governadores e prefeitos começam a adotar novas medidas de circulação para conter o avanço da variante Omicron, que já representa 92,6% dos testes positivos no país, segundo pesquisa do ITpS (Instituto Todos pela Saúde), em parceria com os laboratórios Dasa e DB Molecular, divulgada no último dia 6.
“O Brasil não resiste a um novo lockdown, será o caos, será aqui uma rebelião, explosão de ações onde grupos vão defender o direito à sobrevivência deles. Não teremos Forças Armadas suficientes para a Garantia da Lei e da Ordem”, disse o presidente.
É tudo delírio. Nunca houve lockdown no país, e ninguém está falando nisso, mas as autoridades estaduais e municipais agem bem em tomar providências para impedir o avanço da nova cepa, que volta a superlotar pronto socorros e hospitais, já que o governo federal mais uma vez se omite, como acontece desde o início da pandemia há quase dois anos.
Na mesma entrevista, em que voltou a colocar em dúvida a honestidade da Anvisa _”cria dificuldades para vender facilidades” _, após a dura reação do contra-almirante Barra Torres, Bolsonaro também falou sobre os riscos que a democracia no país corre de cair numa ditadura:
“A nova ditadura não é de uma hora pra outra. Vem aos poucos. Vai tirando pedaços da sua liberdade aqui e acolá. E quando você vê, está até a cintura na areia movediça, não tem como sair mais. O Brasil ainda corre esse risco. Não está descartado”.
Como de costume, o capitão-presidente não cita fatos nem nomes de quem nos ameaça, e quando fala em liberdade defende a liberdade que todos têm de morrer de Covid, por não se vacinarem.
Bolsonaro não acredita em pesquisas nem nas estat´sticas sobre o avanço da Ômicron, que nas últimas 24 horas voltou a bater recorde. De acordo com o Our World in Data, projeto da Universidade de Oxford, foram registrados 3,28 milhões de casos na segunda-feira. E as maiores vítimas são os não-vacinados, responsáveis pelo maior número de internações e de óbitos.
Desde novembro do ano passado, quando foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde, a nova variante está classificada como de “preocupação”, pelo alto grau de transmissibilidade e letalidade entre não-vacinados.
Mas só nesta terça-feira, ao chegar à sede do Ministério da Saúde, o doutor Marcelo Queiroga admitiu pela primeira vez a gravidade da situação, quando vários levantamentos já haviam demonstrado a predominância da cepa no Brasil.
“A nossa expectativa é que não haja um impacto em hospitalizações e em óbitos”, disse aos jornalistas. Quem lhe garante isso? Os números provam exatamente o contrário, como informa o Jornal Nacional todas as noites.
Em lugar de anunciar quais medidas o governo pretende tomar, mais uma vez o ministro jogou a responsabilidade sobre a aquisição de testes diagnósticos para estados e municípios, lembrando que a compra desses exames “não é responsabilidade exclusiva do governo federal”.
Ainda no ano passado, Queiroga chegou a anunciar a compra de milhões e milhões de testes, a melhor forma de combater a nova onda da pandemia de Covid, mas que estão em falta nos postos de saúde, levando as pessoas a formar filas nas farmácias, que cobram cada vez mais caro pelo serviço.
Com o apagão de dados oficiais sobre a pandemia, que completou um mês ontem, técnicos e cientistas trabalham no escuro para fazer frente à crescente propagação da Ômicron, impedindo-os de acompanhar a evolução diária da pandemia nos municípios. Queiroga repete há dias que o sistema já foi restabelecido, mas especialistas relatam instabilidade nas plataformas, o que provoca atrasos na entrada de novas notificações de casos, internações e óbitos.
Enquanto o presidente dá entrevistas apocalípticas à Jovem Pan e o ministro gagueja quando é perguntado sobre a vacinação infantil, que ainda não começou, o número de casos e óbitos voltou a crescer exponencialmente nestes primeiros dias de janeiro, quando se aproxima o reinício dos aulas, deixando pais e professores inseguros e confusos sobre o que devem fazer. Pois é exatamente isso que Bolsonaro e seu obediente ministro querem: criar mais confusão e insegurança na população.
Com qual objetivo? Até quando eles permanecerão leves, soltos e impunes para amedrontar e desinformar o país?
Vida que recomeça, mas desse jeito vai demorar para podermos voltar a ter uma vida minimamente normal.
RICARDO KOTCHO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)