Não há termos de comparação entre Mino e outros comandantes de redação. Ele é dotado da grandeza épica dos grandes jornalistas, aquele que sabe da importância crucial da independência da jornalística, da redação como um corpo autônomo, em tensão permanente com a empresa.
Carta Capital se zangou com Fernando Morais, por não dar o devido reconhecimento a Mino Carta na biografia de Lula. De fato, Mino foi o primeiro a abrir as portas da mídia tradicional para Lula, no período em que dirigiu a IstoÉ.
Zangou-se comigo também, por não dar o devido reconhecimento a Mino no meu livro “O Caso Veja”, narrando os embates contra a revista Veja, a partir de meados dos anos 2.000. De fato, Carta Capital foi uma trincheira relevante na luta contra o jornalismo de esgoto.
Ranhetice? Não. Foi uma reclamação justa. E, por aqui, peço desculpas a Mino, pelo esquecimento.
As razões de Mino são óbvias. Ele foi não apenas o maior jornalista brasileiro dos anos 70 em diante, mas uma referência fundamental da sociedade civil em todo esse período. Foi o jornalista que abdicou de uma vida tranquila, com os melhores salários da profissão, uma enorme popularidade em todas as classes, de empresários, banqueiros a intelectuais e artistas, para enveredar pela aventura temerária de montar sua própria revista, unicamente para preservar sua independência.
Digo temerária, porque não basta ao empreendedor dominar os fundamentos da profissão: é preciso ter a gana do dinheiro, a prioridade no caixa, o sangue de comerciante. Mino nunca teve, assim como Samuel Wainer e, em um patamar menor, eu próprio, quando consegui sócios para o lançamento da Agência Dinheiro Vivo, a primeira agência de informações digitais do país.
No jornalismo, existem empresários e artistas. E existem as famílias.
O empresário dorme e acorda pensando no caixa. Adequa suas despesas ao seu faturamento. Só amplia o negócio amarrado a perspectivas concretas de aumento do faturamento.
O artista só pensa na obra jornalística. Se consegue um investimento, coloca de pé todos seus sonhos jornalísticos, sem pensar no caixa do dia seguinte. E não tergiversa um centímetro em relação aos princípios jornalísticos.
Com Mino, foi assim.
Nos últimos 50 anos, o jornalismo brasileiro conheceu grandes comandantes, Alberto Dines, Cláudio Abramo, Franklin de Oliveira, Jânio de Freitas, Newton Rodrigues, entre outros campeões. Nenhum superou Mino.
Ele foi responsável por duas das maiores experiências jornalísticas do período.
No campo dos diários, criou o irrepreensível Jornal da Tarde, projeto vilmente assassinado pelos Mesquita quando colocaram à frente da empresa administradores sem tino jornalístico que tentaram transformar o mais sofisticado diário do país em jornal popular.
Implantou, também, o mais bem sucedido modelo de editora – seguindo a receita dos Estados Unidos: a Editora Abril. Colocou de pé as revistas Quatro Rodas e a Veja que, em pouco tempo, se transformou no veículo impresso de maior prestígio da imprensa brasileira, batendo os jornais diários tradicionais. Louve-se, o trabalho pioneiro de Paulo Patarra lançando a revista Realidade, emulando o melhor do novo jornalismo americano.
No início, Mino era apenas o grande jornalista técnico, o criador de publicações. A política, para ele, era vista sempre sob o prisma jornalístico. Podiam ser reportagens sobre os movimentos estudantis, ou uma capa justificando a necessidade de criar primeiro o bolo para depois dividir.
Lembro-me de uma palestra que deu na Escola de Comunicações e Artes da USP. Dei carona para ele na volta à Veja. E ele contava de seu orgulho pelo fato do então ditador Ernesto Garrastazu Médici ter mandado um jatinho da FAB buscar na gráfica a última edição da Veja, em São Paulo, para poder levar em uma viagem internacional que faria logo depois.
Sua carreira como paradigma da democracia começou a ser montada quando se aliou ao governador paulista Paulo Egydio Martins e a Golbery do Couto e Silva para a grande batalha pela redemocratização do país, depois dos assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.
Ali nasce o Mino Carta, referência nacional de democracia. Há uma mudança completa no seu horizonte. O Mino técnico podia aturar o primarismo de um Roberto Civita, escorado nas boas lembranças do patriarca Victor Civita. O Mino republicano, não.
Vem daí sua intolerância cada vez maior com Roberto, a ponto de forçar sua demissão e deixar o cargo mais cobiçado da imprensa brasileira para, junto com Domingo Alzugaray – egresso da parte comercial da Abril – fundar a Editora Três e a revista IstoÉ em 1976.
Juntava-se o comerciante Alzugaray com o jornalista Mino. Mas Alzugaray era espírito prático demais para Mino. Em 1979 deixa a IstoÉ e enfrenta a aventura do jornal A República, junto com Cláudio Abramo, seu mestre.
Não podia dar certo. Só havia artistas. O jornal se afundou em dívidas, foi salvo da falência por Delfim Netto, um admirador de Mino. E, em seguida, Mino montou a revista Senhor e, depois, a Carta Capital, que se tornaria um oásis de jornalismo nas décadas seguintes.
Em todo esse período, qual o motor que alimentou Mino? Certamente não o do enriquecimento, não o da vida sem percalços, mas o do reconhecimento. Nesses tempos de financeirização, em que o único sinal de sucesso é a riqueza, ainda há disso na vida, sim, o sujeito movido a reconhecimento. E Mino foi visceralmente movido a reconhecimento.
Já convivi com outros jornalistas talentosos ao longo de meus 50 anos de jornalismo, mas nenhum com a dimensão de Mino. Depois que saiu da grande imprensa corporativa, havia dois candidatos a substitui-lo, nenhum com sua dimensão.
Assim como Mino, Elio Gaspari tinha a capacidade de enxergar os ângulos mais jornalísticos de cada fato. Mas sempre foi cauteloso demais, temeroso demais, prático demais. No seu tempo de redação, especializou-se em montar alianças para disputas internas, jamais afrontando a casa.
José Roberto Guzzo, que substituiu Mino na Veja, especializou-se em ser o feitor dos Civita. E mostrou uma habilidade maior que Gaspari nas manobras políticas internas, vencendo a disputa e tirando Gaspari da revista.
Tem um grande feito na sua carreira, de ter transformado a revista Exame na publicação de maior prestígio junto ao meio empresarial. E dois pecados mortais.
O primeiro, ter abortado a ida da Abril para o mundo digital, ao boicotar Antonio Machado e qualquer tentativa de digitalização, com receio de perder seu espaço como representante dos impressos. No início da digitalização, mesmo depois de ter perdido o controle da BOL para a UOL, a Abril foi procurada por altos executivos da IBM, oferecendo sistemas de publicação na Internet, valendo-se da ainda enorme relação de revistas da editora. Em pleno apogeu da ascensão das novas classes sociais, a resposta que receberam de Guzzo e Thomaz Souto Correa foi a de que o grande negócio da Abril continuaria sendo a venda de revistas em quadrinho, com grande margem de lucro.
O segundo, de ter sido o principal inspirador do jornalismo de esgoto da revista, a partir de 2005.
Não há termos de comparação entre Mino e outros comandantes de redação. Ele é o maior da fase de ouro dos grandes comandantes de redação, aquele que mais sabia da importância crucial da independência jornalística, da redação como um corpo autônomo, em tensão permanente com a empresa. Daí entender sua implicância maior: a de saber que existiam jornalistas que chamam os patrões de colegas.
Por isso mesmo, longa vida a Mino, e que receba os devidos reconhecimentos por sua obra imortal.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)