A SERRA PELADA FLUVIAL: DO MAJOR CURIÓ AO CAPITÃO BOLSONARO, A SAGA DA MORTE

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

“O interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério!”.

Trepado numa cadeira em frente ao Palácio do Planalto, assim o presidente Jair Bolsonaro se dirigiu, em 2 outubro de 2019, a meia dúzia de sobreviventes de Serra Pelada, que lhe pediam a intervenção das Forças Armadas para a reabertura do maior garimpo a céu aberto do mundo, onde poucos fizeram fortuna e a maioria daquele exército de mais de 100 mil aventureiros voltou para seus lugares de origem, tão miserável como chegou.

“Vocês foram felizes no tempo do Figueiredo. A legislação era outra e eu tenho que cumprir a lei. Por isso, eu digo a vocês: se tiver amparo legal, eu boto as Forças Armadas lá”, prometeu o capitão em seu primeiro ano de governo, quatro décadas após a descoberta da jazida no sudeste do Pará. O garimpo continua fechado.

Agora, que se descobriu uma esquadra clandestina de mais de 300 barcas de garimpeiros, avançando pelo rio Madeira, a 113 km de Manaus, no Amazonas, em direção a reservas indígenas, uma invasão já chamada de Serra Pelada fluvial, seria bom lembrar o que foi aquela louca corrida ao ouro, no início dos anos 80 do século passado, já nos estertores da ditadura militar.

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Era uma vez um militar chamado major Curió, o codinome de Sebastião Rodrigues de Moura. Nomeado interventor militar plenipotenciário pelo general Figueiredo, ele comandava com mão de ferro um exército que chegou a reunir mais de 100 mil homens, enfiados nas crateras abertas em Serra Pelada, no sudeste do Pará.

Curió foi o último símbolo da ditadura, com poder de vida e morte sobre os miseráveis civis, em sua maioria lavradores expulsos de suas terras no sudoeste do Maranhão, que largaram tudo e correram em busca do ouro “como nunca se viu antes” na terra prometida de Serra Pelada, a 150 km de Marabá.

Esta história eu conheço desde o início, não é de ouvir falar. E acompanhei até o seu final melancólico, dez anos depois, Até escrevi um livro, em 1984, com a série de reportagens publicadas na Folha, em parceria com o fotógrafo Jorge Araújo, lançado pela Editora Brasiliense: “Serra Pelada _ Uma ferida Aberta na Selva”, que tempos depois virou filme, com os poucos garimpeiros teimosos que sobraram lá nos barracos cobertos por lona preta, sofrendo uma epidemia de lepra e aids, sem assistência médica, quando o ouro acabou.

Fui um dos primeiros repórteres a entrar lá, junto com o fotógrafo Ubirajara Dettmar, num monomotor mambembe, pilotado por um refugiado angolano, o único que encontrei em Marabá com coragem para descer naquela pista improvisada, por onde os garimpeiros circulavam. Foi a primeira vez que ouvi um avião buzinar para as pessoas saírem da frente.

Uma vez em terra firme, me deparei com o cenário mais assustador que já havia visto _ milhares de homens em fila, arriscando a vida, subindo com pesados sacos de areia em escadas improvisadas, chamadas de “adeus, mamãe”. Até hoje, não se sabe quantos morreram ali.

É esse o cenário que Bolsonaro agora quer espalhar por toda a Amazônia, com o liberou geral dos garimpos em terras indígenas e a desativação dos órgãos de controle, como prometeu ainda na campanha eleitoral, e está cumprindo.

Só em 2019, foram registradas 160 invasões de terras indígenas, segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Em maio de 2020, o capitão recebeu o major Curíó, com todas as honras e direito a fotos, em audiência no Palácio do Planalto.

A seguir neste ritmo de abertura de novos garimpos, desmatamento fora de controle e queimadas, em breve não haverá mais índios nem árvores para contar a história da Amazônia.

Só restarão os minérios no subsolo, o gado no pasto e as plantações mecanizadas de soja.

E ainda faltam exatos 401 dias para esse governo acabar.

Vida que recomeça. 

RICARDO KOTSCHO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)

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