O XADREX DA MÍDIA E O PARADOXO DO BAR BODEGA

Vou arriscar, teorizando sobre um dos princípios mais universais e deletérios da mídia: o arbítrio da unanimidade, das ondas midiáticas, uma fraqueza da mídia que atravessou o século 20 e ganhou dimensão inédita com a polarização trazida pelas redes sociais.

Antes, recomendo assistir o filme “Segredos Oficiais”, que narra a luta de uma simples tradutora, Katherine Gun trabalhando para o serviço secreto britânico, que identificou uma ilegalidade planejada pelos Estados Unidos para sancionar a guerra do Iraque: chantagear os países membro do Conselho de Segurança da ONU, para obter a aprovação que legalizaria a invasão.

Reportagens sobre Katherine Gun

É um filmaço, que mostra como a mídia mundial endossou plenamente as mentiras de Colin Powell, sobre as supostas armas químicas do Iraque, permitindo uma guerra que matou 100 mil iraquianos e cerca de 4.500 militares norte-americanos. Foi um autêntico crime da mídia, fruto da cumplicidade de grandes veículos globais, como The New York Times, com o governo Bush.

As mentiras oficiais foram amplamente reveladas, mas só após o desastre consumado. Para tanto foi essencial o papel de uma jovem de 29 anos, inspirada por um valor cada vez mais raro no rarefeito panorama midiático e institucional brasileiro: princípios.

Mostra, também, a pressão da redação do The Observer – o jornal que apostou nas informações de Katherine – junto à empresa, defendendo a obediência a princípios jornalísticos e ao interesse público.

Peça 1 – o paradoxo do Bar Bodega

Em linhas gerais, o Paradoxo do Bar Bodega tem o seguinte enunciado:

Cada jornal do pool segue a onda geral, mesmo sem dispor de informações e convicções sobre o tema em questão. Cada jornal parte do pressuposto de que, se a maioria está do mesmo lado, é porque há uma fundamentação consolidada, mesmo que nenhum veículo, em particular, saiba qual é essa fundamentação.

Até que alguém quebra a unanimidade, permitindo a análise objetiva dos fatos.

Os que erraram na cobertura, no entanto, saem blindados pelo fato do erro ter sido coletivo.

É a mesma característica presente, aliás, em grupos de WhatsApp, ou em listas de procuradores e juízes. Monta-se uma sala com muita gente. Apenas alguns falam inicialmente, articulando uma mesma opinião. Quem discorda não se pronuncia por se julgar minoria. Até que a unanimidade dos falantes é rompida por um dissidente. Outras pessoas ganham coragem para se manifestar, formando-se, então, uma nova maioria real.

Peça 2 – as restrições ao jornalismo

Há um conjunto de fatores que explica esse paradoxo histórico no jornalismo de se curvar às ondas:

  1. O primado da ignorância generalista

O jornalista é, essencialmente, um generalista. O dia a dia da imprensa impede as chefias de se aprofundar nos temas do momento, especialmente em temas técnicos, como a economia. A via de menor risco é acompanhar a maioria. Errando, a cobrança será diluída pelos demais veículos.

  1. O risco de ir contra a onda.

Quem vai com a onda não precisa explicar nada. Já investir contra a onda exige uma enorme segurança e preparo para se explicar. Por isso não basta ter disposição de enfrentar as ondas: é fundamental ter argumentos sólidos.

  1. A cartelização do mercado.

Fenômeno que ocorre não apenas quando um ou dois grupos possuem posição dominante no mercado de opinião, mas quando a maioria dos competidores se alinha com o mesmo discurso.

Em países com mídia desenvolvida, há uma busca permanente da diferenciação da cobertura que ajuda a romper com ondas de unanimidade. Na mídia brasileira pós-2005, há o pacto de não-competição que permite a consolidação das teses mais esdrúxulas. Mesmo antes do pacto, o jornalismo dos anos 90 já era amplamente subordinado ao pool de cobertura.

  1. As quatro ameaças ao exercício do jornalismo

Há quatro grandes restrições contra o bom jornalismo:

  • A pressão do Estado – dos poderes, especialmente Executivo e Judiciário. É só conferir a perseguição contra Assange ou o endosso da grande mídia norte-americana às mentiras sobre as armas químicas do Iraque.
  • Os interesses econômicos – os mais óbvios são os dos anunciantes explícitos. Os mais influentes são os investidores ou a compra de matérias sem identificação do contratante.
  • Os interesses políticos, especialmente no Brasil. A praga da partidarização contaminou de modo irreversível as mídias de direita e esquerda. Recentemente, Glenn Greenwald enfrentou esse problema com o The Intercept nos Estados Unidos, por criticar Joe Biden.
  • A ditadura dos leitores – o receio de ir contra a primeira versão aceita pelos leitores. Atualmente, com as redes sociais e a caça de likes, a ditadura dos leitores tornou-se o maior entrave ao exercício do jornalismo, tanto pela mídia oficial quanto pelos sites independentes.

Peça 3 – o embate histórico redação x empresa

Desde o início da mídia de massa, havia uma divisão nítida entre o jornalismo e a empresa. Jornalistas fazem jornalismo. Empresas usam o “produto” notícia para os vários modelos consagrados do negócio da mídia: 

  • A dramaturgia da notícia, visando ganhar audiência.
  • Construção/desconstrução de imagem de empresas, nas disputas corporativas.
  • Construção/desconstrução de imagens nas disputas políticas.
  • Lobbies para influenciar decisões de política econômica.

O alcance desses negócios depende do prestígio do veículo de mídia. E esse prestígio é construído por grandes reportagens jornalísticas e pela defesa de temas legitimadores. O papel dos jornalistas consiste em lutar pelas grandes coberturas, e usar esse trunfo para impor limites à exploração comercial da notícia.

Esse embate redação x empresa é a garantia de vitalidade das boas publicações. Em várias ocasiões, jornalistas do The New York Times, Le Monde, entre outros, definiram pactos com as empresas, em torno de princípios jornalísticos.

No Brasil, em alguns momentos, esses pactos funcionaram. No final dos anos 70, na revista Veja, houve um episódio em que a direção de redação, José Roberto Guzzo, manipulou o resultado de uma pesquisa junto a congressistas. Houve uma reunião na sede do Sindicato dos Jornalistas, de onde saiu um manifesto, assinado por toda a redação, reconhecendo a prerrogativa da empresa em definir a linha da revista, mas exigindo respeito às informações.

A partir dos anos 90, no entanto, a maioria das publicações decidiu enquadrar as redações, com algumas poucas válvulas de escape. 

Uma delas era o filtro da relevância. Outra, a válvula de escape era a relativa liberdade de opinião de alguns colunistas.

Depois do pacto de 2005, que inaugurou o chamado jornalismo de esgoto, cessou qualquer veleidade de jornalismo. Os interesses empresariais não encontram mais resistência nas redações. Jornalistas mais independentes foram afastados ou, então, obrigados a se recolher, a burocratizar a opinião para não serem mandadas embora. O resultado foi uma geração de jornalistas incapazes de alargar os limites estreitos da fase anterior, ousando novos enfoques, novas coberturas, saindo da armadilha do pool de cobertura e dos linchamentos periódicos. Passou a campear o jornalista-alpinista.

Peça 4 – as ondas de opinião pública

Nem se imagine que a mídia tenha o controle absoluto sobre as ondas de opinião pública. A criação de ondas é uma questão mais complexa, que envolve formação cultural do país, acúmulo de circunstâncias potencializadas por episódios específicos. O que a mídia faz é adubar o terreno, aguardar as consequências – se sua campanha “pegou” ou não – e atuar de forma pró-cíclica, isto é, tornando mais agudos os movimentos de radicalização da opinião pública.

  • O macarthismo nasceu nas fraldas da guerra fria e da ascensão da União Soviética como potência nuclear e da cobertura do caso do casal Rosenberg, acusado de passar segredos nucleares para a União Soviética. 
  • Os linchamentos midiáticos dos anos 90 foram consequência da campanha do impeachment de Fernando Collor, que permitiu a um país partido ao meio – pela ditadura militar – a confraternização tendo o ódio como leitmotiv.
  • O jornalismo de guerra dos anos 2.000 – assim como a ascensão da ultra-direita mundial – foi fruto da queda de oportunidades da classe média, assim como a ascensão de classes populares, por políticas de inclusão ou por migração.
  • O bom-mocismo atual da mídia é reflexo dos ecos mundiais do caso George Floyd, o negro norte-americano morto pela polícia e da necessidade de levantar bandeiras contra o bolsonarismo.

Peça 5 – a herança ancestral do linchamento

Confira artigo meu do ano 2.000.

No caso brasileiro, os linchamentos são recorrentes devido à herança secular da escravidão, presente na insensibilidade da classe média – e da mídia – em relação aos massacres de populações periféricas, de índios, de lavradores, de jovens negros. Naturalizou-se o fenômeno do massacre dos diferentes. Desde os anos 90, o Brasil ostenta os maiores índices de assassinatos per capita entre todos os países. Na época, já tinha um padrão colombiano, mesmo antes da ascensão das milícias e da ampliação das organizações criminosas.

Ao definir o alvo de suas campanhas de linchamento, a mídia torna-o “diferente”, facilitando a demonização ampla. Completa-se o quadro sonegando qualquer informação que possa humanizar o personagem.

Antes de 2005, no entanto, havia um pacto tácito. O filtro da empresa se dava na hierarquização da cobertura. O que interessava ao jornal ganhava a manchete principal, o título e o lead da matéria. O que não interessava ia para o pé da página.

  • Mesmo com o linchamento de Gabriel Chalita, o Estadão deixou vazar uma nota em que mostrava que Valter Feldmann, servindo a José Serra, oferecera 500 mil reais para um funcionário da área de educação corroborar uma denúncia sem provas contra Chalita. 
  • Do mesmo modo, matérias da época mostravam a montagem do esquema Serra no Ministério da Saúde, inaugurando a era dos dossiês.
  • Na cobertura da Escola Base, a Folha deixou escapar, sempre em pé de página, algumas declarações do dono da escola, permitindo a quem sabia ler os detalhes, identificar a indignação autêntica.

Esses pequenos vazamentos permitiam aos críticos dos linchamentos juntar fatos e apresentar sua versão, erodindo a unanimidade inicial. Fiz isso na minha série “O Caso Veja”, que acaba de sair em livro.

A partir de 2005, eliminou-se até esse filtro. O jornalismo se rendeu completamente aos interesses das empresas, submetido a uma guerra cultural que só encontra paralelo no período 1968-1975, auge da repressão. 

É curioso perceber que o melhor jornalismo dos últimos anos foi praticado por um jornal popular, o Extra, das Organizações Globo, mas, por ser “popular”, fora da vigilância inquisitorial da nomenklatura. Outra revista, a Época, sob o comando de Paulo Nogueira e Paulo Moreira Leite, chegou a mostrar um jornalismo promissor, resgatando a qualidade do jornalismo semanal, jogado no lixo pela Veja. Mas não resistiu à nomenklatura da Globo.

Peça 5 – o jornalismo de hashtags 

O bolsonarismo teve o mérito de expor, sem meias palavras, a face mais grotesca do que o país se tornou, mídia, justiça, política, deformados pelo terraplanismo jornalístico pós-2005.

Os novos tempos exigirão novo protagonismo dos jornalistas e a quebra de uma série de tabus impostos pelo período do jornalismo de esgoto ou, ao menos, uma volta aos pactos pouco ambiciosos pré-2005, antes da era do silenciamento.

Mas, assim como na Justiça e nas Forças Armadas pós-ditadura, os veículos permanecem, na grande maioria, sob comando da geração que ascendeu pisando no pescoço dos colegas, uma reedição piorada da geração do impeachment de Collor.

A tentativa de se impor sobre as redes bolsonaristas e as redes sociais abriu algum espaço para jornalistas mais preparados e independentes. Hoje em dia, é possível encontrar laivos de jornalismo até na improvável Globonews. A CNN injetou sangue novo na mídia corporativa. E o Valor continua uma nau isolada de bom jornalismo, impedida de crescer pela nave-mãe.

Mas, acima de tudo, paira a sombra tenebrosa da financeirização da mídia, uma ameaça à ordem democrática muito mais permanente do que os assomos do bolsonarismo.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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