MARÍLIA MENDONÇA LEVOU O FEMINISMO AO FUNDÃO DO BRASIL

CHARGE DE NANDO MOTTA

A intelectualidade adora detestar a nova geração da música sertaneja. Isso acontece porque, de um lado, muitos cantores e compositores do gênero repetem à exaustão uma mesma receita batida, pensando unicamente em fazer sucesso instantâneo.

Mas essa rejeição também é causada pelo preconceito.

Parte dos intelectuais só rende homenagem à música popular quando é considerada “de raiz” — aquela modalidade de composição que segue à risca o figurino ditado pela tradição. Quem pensa assim esquece que a cultura do povão não fica congelada como nos antigos livros de folclore, está sempre se reinventando.

O preconceito está nessa idealização, que usa parâmetros da elite para classificar qual manifestação popular pode ser considerada como boa ou ruim.

Fora a discussão estética, a música sertaneja deu nos últimos anos bons motivos para críticas. Não foram poucos os ídolos do gênero que se aliaram ao lixo político e ideológico que tomou o poder no Brasil. Muitos deles concederam entrevistas apoiando retrocessos democráticos e atacando avanços civilizatórios, entre eles o feminismo.

Nesse contexto, é preciso destacar a importância das criações da cantora e compositora Marília Mendonça, que morreu ontem em acidente de avião, em Minas Gerais. No meio musical marcado pelo machismo, ela foi na contramão e criou uma coleção de sucessos que tiram as mulheres da posição submissa, onde boa parte dos sertanejos preferia mantê-las, para colocá-las no controle das ações.

A começar por “Infiel”, primeiro sucesso que emplacou na sua própria voz (por muito tempo ela foi apenas compositora). Na música, ao saber que foi traída a personagem não lamenta. Pelo contrário, fica aliviada: “No momento deve estar feliz e achando que ganhou/ Não perdi nada, acabei de me livrar”.

A sofrência com as perdas amorosas continuou — afinal, o romantismo exagerado é uma das marcas do sertanejo desde seus primórdios —, mas o vitimismo das mulheres nesse tipo canção ficou para trás.

Na música “Eu sei de cor”, a protagonista avisa ao amado que sua paciência tem limite: “Deixa/ Deixa mesmo de ser importante / Vai deixando a gente pra outra hora / Vai tentar abrir a porta desse amor / Quando eu tiver jogado a chave fora”. Em “Ai como eu tô bandida” aparece uma mulher descolada, sem medo de ter relacionamentos descartáveis. “Não nasci pra compromisso / Não quero perturbação”, diz a letra.

Mensagens de emancipação feminina se tornaram comuns no funk, no hip hop e no samba, cujo público é urbano. O papel da obra de Marília Mendonça ganha mais relevância quando se leva em conta que as plateias que a idolatram são compostas pelo extrato mais conservador da população. Pregar o chamado empoderamento às mulheres do fundão do Brasil é muito mais difícil.

Mas ela conseguiu. Mandou o recado através de suas composições e também o fez se posicionando na eleição de 2018, por entender que Jair Bolsonaro na Presidência República seria retrocesso em vários campos, inclusive quanto às lutas feministas. Gravou na época um vídeo em que falava “ele não ” e, como de praxe, foi atacada pelas milicias bolsonaristas nas redes sociais.

É preciso dizer com todas as letras que as músicas de Marília Mendonça têm, sim, importância política. Mesmo que alguns só atribuam essa qualidade a artistas como Chico Buarque (os mais velhos) ou aos rappers (os mais novos).

Na linha esnobe, figuras que se dizem progressistas chegaram a perguntar nas redes sociais quem era Marília Mendonça, exibindo um estranho orgulho por desconhecer uma artista que caiu no gosto popular.

Ninguém é obrigado a conhecer o trabalho dela, mas fazer questão de exibir esse desconhecimento é elitismo puro. Comportamento típico de gente que costuma falar em nome do povo mas não quer ser confundido com ele.

Esses nem se deram conta de que, por causa das músicas de Marília, milhões de mulheres e homens do interior do país podem ter parado um pouco para repensar a condição feminina.

Os supostos intelectuais talvez passem a tratar a cantora e compositora com mais deferência depois que o New York Times elogiou a sua obra e chegou a citar o neologismo “feminejo” para noticiar sua morte.

Já para o público que há muitos anos canta sucessos como “Infiel”, isso não faz a mínima diferença. A única coisa que importa agora é a dor pela perda tão precoce da artista. 

CHICO ALVES ” SITE DO UOL” ( BRASIL)

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