Tratando-se de fundos, será possível aglomerar títulos para pegar um imóvel maior ou mais valioso, bem como um lote mais substantivo de ações de estatais, empresas de economia mista e empresas cujos ativos tenham sido incorporados ao patrimônio público por inadimplência.
Quando o Ministro Luís Roberto Barroso comandou a votação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra a candidatura de Lula, em 2018, estava selada a sorte do federalismo brasileiro. Acompanharam a votação os Ministros Jorge Mussi, Og Fernandes, Admar Gonzaga, Tarcísio Vieira e Rosa Weber. Após a Lava Jato – também com papel central de Barroso – ali estava o golpe final abrindo as portas para o bolsonarismo e para a maior ameaça ao federalismo brasileiro desde a República Velha.
Ontem, a votação da PEC dos Precatórios – aprovada com voto da maioria dos parlamentares do PDT, partido tido como de esquerda – comprovou essa dissolução do federalismo.
Um país é formado por um arquipélago de interesses regionais, setoriais e individuais. A soma dos interesses individuais não forma o todo. Durante décadas a força política estadual colocou o poder sob influência de São Paulo, Minas Gerais, e por conta de ser capital da República, no Rio de Janeiro. A miséria e o coronelismo espalharam-se pelo Nordeste. Cada parlamentar nordestino era um vereador buscando migalhas de orçamento no Rio de Janeiro – e, depois, em Brasília. Enquanto isso, parlamentares paulistas e mineiros falavam em nome da Federação, impunham políticas econômicas que beneficiavam estritamente a cultura do café e outros benefícios sistêmicos para suas regiões.
Agora, nem isso se tem. Há uma bancada – no Congresso e no Supremo Tribunal Federal – que segue expressamente as orientações do mercado, conforme explicitou recentemente André Esteves, do BTG Pactual. Empresários da economia real, em geral pequenos e médios, valem-se das sobras do poder, em geral medidas que liquidam com os custos trabalhistas. Da soma desses benefícios individuais, sem ninguém para pensar a Federação, há um desmonte do mercado de consumo, fruto da instabilidade do emprego e da redução da massa de salários, que prejudica a todos da economia real, indistintamente.
Sem a visão federativa, os chamados interesses difusos não têm quem os defenda. É o que está ocorrendo com o desmonte das políticas sociais, com o fim do Bolsa Família, com a redução dos investimentos em ciência e tecnologia, com o desmonte do BNDES e da Petrobras e com o golpe que se arma sobre o setor elétrico.
Alemanha e Estados Unidos se tornaram nações quando uma geração de pessoas – à frente da política e da Justiça – passaram a defender o todo, em relação aos interesses particulares.
Duas instituições que, em outros países, seriam fundamentais para defender a Federação – mídia e Supremo – foram capturados pelo mercado e se limitam a críticas contra os modos de Bolsonaro.
Tome-se o caso dos precatórios. Apenas ontem o Jornal Nacional revelou a verdadeira face dos precatórios, em uma reportagem sobre os precatórios alimentícios, que formam a maioria do setor. São dívidas da União com aposentados, funcionários públicos, pequenos proprietários desapropriados e com estados e municípios.
Ontem, comprados por recursos abundantes do orçamento secreto, a Câmara aprovou a PEC do calote. Deputados do PDT, essenciais para a vitória do governo, sustentaram que a adesão foi fruto de negociações. Uma desculpa risível, já que as negociações consistiram em reduzir o tamanho do calote para professores do Nordeste. Cada deputado receberá seu quinhão no orçamento secreto, atenderá sua base e garantirá sua reeleição. A Câmara se tornou uma imensa câmara de vereadores comprada com o uso indecente do próprio orçamento.
Como essa operação é essencial para conseguir a adesão aos grandes negócios da privatização, o Supremo não se pronuncia, mesmo sendo explicitamente o maior e mais explícito ato de corrupção da história da República.
Por que, então, o mercado supostamente celebrou a votação, sabendo que é golpe, que não atenderá famílias afastadas do Bolsa Família, que permitirá a esbórnia com dinheiro público?
A jogada foi percebida por nosso colunista Luiz Alberto Melchert, que está preparando um artigo especial sobre o tema.
A PEC dos Precatórios contém dois pontos: um público, outro pouco observado.
O ponto público é o calote; o pouco observado é a criação de um mercado secundário expressivo para os precatórios. De fato, um dos itens permite a utilização dos precatórios para a compra de ativos públicos, prédios e outros ativos que serão definidos pelo governo.
O que ocorrerá, então? Como explica Melchert:
- Pela PEC, haverá um teto de dispêndio com precatório, 0,75 do valor do teto de gastos. Isso vai provocar um escalonamento dos precatórios, sendo que alguns deles, ao serem emitidos, já poderão ser escalonados para daí a cinco anos, sempre numa escala crescente.
- Ao mesmo tempo, o deságio dos precatórios em leilão só pode chegar a 40% do valor de face, se houver verba. Em outras palavras, se o cidadão quiser passar por fora da fila, terá de dar um desconto de até 40% ao governo e quem der desconto maior leva a grana.
- O pagamento de precatórios com imóveis já era permitido, mas não escancarado e sem limite em relação à dívida, como se fez na PEC. Pior ainda é que se incluirmos os valores mobiliários, ou seja, promove-se a privatização sem discussão, à guisa de quitação da dívida pública com precatórios, mas não dela com os bancos que, para todos os efeitos, ficam solenemente preservados.
- Agora, passamos ao mercado secundário. No primeiro momento, os títulos vão cair de preço à vista sob a alegação de que só Deus sabe quando serão pagos; depois, com a possibilidade de se trocarem por imóveis, esses papéis serão integralizados em fundos cujos advogados vão representar para que ativos sejam entregues.
- Tratando-se de fundos, será possível aglomerar títulos para pegar um imóvel maior ou mais valioso, bem como um lote mais substantivo de ações de estatais, empresas de economia mista e empresas cujos ativos tenham sido incorporados ao patrimônio público por inadimplência.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)