Prezado Ministro Barroso,
Aqui do meu canto, e com olhos de quem viu o fracasso da República, o desperdício de oportunidades de um país que jamais de completou, tomo a liberdade de me dirigir ao senhor.
Acompanhei Rui Barbosa, quando se tornou o primeiro Ministro da Fazenda e implementou a política econômica que resultou no episódio conhecido como “encilhamento”. Na época, ousei o livro “América Latina, os Males de Origem”, sonhando com o país que nunca se fez. Combati as teorias raciais da época, me espelhei no modelo norte-americano de empreendedorismo – que ainda não fora sufocado pela concentração de poder nas grandes corporações. Sonhei um Brasil multi-racial e justo. Cheguei a escrever cartilhas sobre o Brasil, em parceria com meu amigo Olavo Bilac, para ensinar as crianças a conhecerem essa grande Nação. Acreditei que, em algum momento, o país superaria suas manchas históricas, seus males de origem, e se faria grande.
Saí desse plano no início dos anos 30, profundamente decepcionado com a visão curta e a ambição ampla de meus conterrâneos. E, desde então, estou aqui, observando este país que não me sai do pensamento.
O senhor me chamou a atenção desde o primeiro momento em que se auto-proclamou condutor do meu povo. Sem querer constrangê-lo, aquela história de se comparar a Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa e San Thiago Dantas, incluindo-se no panteão dos juristas estadistas, provocou muitas pilhérias aqui no meu canto.
Ruy se indignou, mas releve: ele sempre foi indignado. Ele bradava:
- Como pode um advogado que se especializou meramente em adaptar a Constituição às demandas corporativas, ousar se comparar a mim, que implementei a constituição, adaptei o modelo americano ao país, no tempo em que era habitado só por bugres.
Desculpe a franqueza, mas acredito que a única semelhança sua com Ruy foi a maneira como tratou o seu colega negro do Supremo.
San Thiago foi mais ferino. Ele, que, em parceria com Afonso Arinos, um de centro-esquerda, outro de centro-direita, tinham a ambição de conferir um mínimo de valores e de noção de projeto nacional à elite do seu tempo, fez um muxoxo de pouco caso:
- E mais um que usa slogans de escada para chegar ao andar superior.
Não vou falar nada porque o próprio San Thiago, depois que se enriqueceu com a banca privada, cismou de se tornar criador de cavalos de corrida.
Diria que o que mais lhe entendeu foi Joaquim Nabuco. Não pela produção intelectual, já; que ele tem uma obra portentosa de interpretação do Império e participou de lutas modernizantes contra a escravidão. Mas porque, depois do status intelectual, encantou-se pelos Estados Unidos e aboletou-se ao lado dos poderosos, porque ninguém é de ferro. Mesmo assim, fez um muxoxo com a comparação:
- Meu sonho americano era Boston, Nova York, não um enclave latino na Flórida.
Bom, dr. Barroso, faço essa longa digressão para chegar ao centro da nossa questão: seu papel de propagandista do mais brutal processo de destruição do país, algo que nem a República Velha ousou ir tão longe e, pior, levantando a bandeira do Novo Iluminismo.
Dr. Barroso, onde o senhor estava com a cabeça, quando permitiu que o deslumbramento o jogasse nessa arapuca? Não o reputo uma pessoa mal-intencionada. Fosse assim, jamais interromperia meu descanso eterno para lhe enviar essas mal traçadas linhas. Nem o imagino uma pessoa intelectualmente pouco dotada. O que me espantou foi sua absoluta incapacidade de entender a complexidade do mundo, os processos de construção de um país e de criar um mínimo de empatia com o Brasil e seu povo.
Aquele seu artigo para o convescote brasileiro em Harvard, a Brazil Conference, “Ética e Jeitinho Brasileiro, Por Que a gente é assim”, foi um desaforo ao pensamento jurídico-social brasileiro. Uma visão totalmente estereotipada sobre o brasileiro, a partir da leitura rasa de orelhas de livro de brasilianistas, um amontoado de lugares comuns preconceituosos sobre o Brasil, que você taxou de “ensaio”, o artiguete não prenunciava coisa boa.
Admito que, como você, eu não era especialista em nada. O que fiz, no meu tempo, foi olhar todas as ciências com visão moderna. Você não é especialista em nada, a não ser na retórica da advocacia. Mas conseguiu olhar tudo com olhos do início do século 20, com os mesmos vícios de origem sobre os quais eu alertava na época. E como pretendia, com essa visão anacrônica, reescrever a história do país a partir das decisões do Supremo, adaptando a Constituição ao seu modo de entender o país.
Com sei que o senhor é um homem bom, apenas um pouco iludido pelo sucesso, vale a pena conferir onde o Novo Iluminismo nos jogou.
Desde que seu pessoal assumiu o poder, com Michel Temer, começou o desmonte. Passaram a cortar recursos para saúde, educação, pesquisas, recursos para matar a fome dos nossos conterrâneos. Desmoralizaram a política, os partidos políticos, a administração pública. Acabaram com os direitos trabalhistas, os investimentos públicos, encareceram os financiamentos do BNDES, Enfim, desmontaram todas as ferramentas existentes em qualquer nação moderna.
E o que o senhor dizia? Citava uma frase de Gramsci: “O velho morreu e o novo ainda está nascendo” para justificar toda aquela destruição. Aqui entre nós, meu velho amigo Antonio quase reencarnou de tanta indignação.
Aí veio Bolsonaro, criando uma onda do politicamente correto, e o senhor entrou na onda, como se todos os males do país se resumissem a ele.
Seria interessante uma passada de olhos pelo país que o senhor ajudou a desenhar.
Na Escola Politécnica, maior centro de engenharia do país, a maior parte das ofertas de estágio é para o setor financeiro. Nas TVs a cabo, os gestores de fortunas são amplamente hegemônicos nos comerciais. Nas estatísticas do IBGE, o setor financeiro é dos poucos que tiveram alta do emprego. O sonho da elite de jovens que se emprega nos bancos de investimento é ganhar muito dinheiro rapidamente e parar de trabalhar cedo.
O fenômeno da financeirização está invadindo todos os poros da sociedade, criando um país de rentistas. Os objetivos de vida vendidos pelo mercado, através da publicidade ou da mídia, se resumem a “tacadas”: o sonho de ter uma boa ideia, montar uma startup, vender para um fundo e, dali em diante, gozar a vida. E comprar um apartamento em Miami, para ficar vizinho do senhor e do seu colega Joaquim Barbosa.
Não apenas saúde, educação, previdëncia mas, também, padarias, lojas de conveniência, botecos, terras agrícolas, serviços públicos, tudo passou a ser colocado sob o tacão do mercado. Basta ter alguma perspectiva para ser adquirido por um fundo. O destino dos empreendedores é se tornarem rentistas – os poucos que acertaram na “tacada” -, ou empregado, obviamente dentro da nova legislação trabalhista, sem direitos, sem redes de proteção social.
Como se chegou a isto?
Dois fatores levaram a essa tragédia nacional e certamente passaram ao largo dos inúmeros “ensaios” que o senhor produziu.
O primeiro, o custo do do dinheiro. O modelo perverso, implementado pelo Plano Real, foi mantido por Fernando Henrique Cardoso e Lula, também por Dilma Rousseff – depois de um curto período em que enfrentou o mercado e foi massacrada pela mídia.
Não apenas se praticou os mais altos spreads do planeta. Mas houve um trabalho pertinaz para desmontar o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Para abrir espaço para o crescimento da capitalização das empresas vi mercado, a dupla M-M (mídia-mercado) encetou campanhas pesadas sobre os supostos subsídios ao BNDES.
Sem acesso ao crédito dos bancos comerciais, aos financiamentos do BNDES, a parte mais dinâmica da economia caiu no alçapão do mercado, criando uma distorção econômica e política fatal para o futuro do país.
Numa ponta, a indústria de fundos apropriou-se de toda a poupança popular. Com esse cacife, avançou sobre o conjunto das empresas, assumindo controle de boa parte da economia. Ou seja, democratizou-se o capital entre os cotistas, mas concentrou-se a estrutura de comando. E, com o controle de setores cada vez mais amplos, o poder econômico tornou-se poder político. A maneira como o BTG Pactual, através da Estapark, assumiu o controle da Zona Azul de São Paulo é um caso clássico. Uma licitação claramente manipulado pela Prefeitura de São Paulo, beneficiando a empresa, conseguiu a aprovação do Tribunal de Contas do Município, inclusive de conselheiros nomeados pelo PT, o silêncio eloquente da mídia, e o endosso do Judiciário.
A maneira como o senhor sancionou a venda de subsidiárias de estatais, sem ao menos analisar a lógica do negócio, a relevância ou não da subsidiária nos negócios da estatal, provocou um sentimento muito negativo entre os juristas deste lado. San Thiago tentou de todo jeito mandar mensagem, mostrando o absurdo da decisão, mas os algoritmos da mídia impediram a mensagem de chegar ao seu destino.
Ficou assim. Quando chegou por aqui a informação de que seu colega Luiz Fux acionou o Conselho Nacional de Justiça contra uma juiza do Pará, em uma demanda do banco Itaú, cujos advogados eram do reputado escritório Barroso, Fontelles, Barcellos, Mendonça e associados, sucessores de Luis Roberto Barroso & Associados, todo mundo olhou para o Rui que houve por bem nada comentar.
Cada vez mais fecham-se os espaços para o pequeno empreendedor. Os que conseguem escapar da armadilha e montar algum negócio promissor, em pouco tempo receberão uma proposta financeira, venderão seu negócio para um grande grupos, e passarão a engrossar o exército dos rentistas improdutivos.
Com o dinheiro dos investidores difusos, os gestores adquirem o controle de empresas, ganham os benefícios do controle, e utilizam o poder adquirido para influenciar políticas públicas e atos de governo – como foi o caso do BTG Pactual na licitação da Zona Azul de São Paulo, influenciando Prefeitura, Tribunal de Contas e Justiça.
A vitória final desse modelo veio com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer – a versão civilizada do bolsonarismo.
De lá para cá começou o desmonte de toda a estrutura de um país civilizado, corte de verbas para educação, desmonte do SUS.
Acredito que o senhor, como homem bem intencionado que é, se comportará como Charles Laughton, em testemunha de acusação. Percebendo o enorme engano cometido, vestirá novamente as vestes da coragem e virá a público desfazer parte do mal cometido. E que não se resume a Bolsonaro.
Atenciosamente, Manoel Bonfim
LUIS NASSIF ! JORNAL GGN” ( BRASIL)