Nesse modelo de programa reality show, as emissoras têm o mesmo papel dos cafetões. Exploram o sexo, ganham com ele e não se responsabilizam por nada. Fosse um país sério, haveria a responsabilização
Fiz uma provocação no Twitter, sobre o linchamento do Nego do Borel. Admito que estraguei o ritual sangrento do linchamento.
Agora, vamos abrir a discussão.
Há o ponto inicial, programas de televisão, em concessões públicos, explorando o voyeurismo do público, como A Fazenda, da TV Record, e o BBB, da Globo. Criam um clima de sexualização, estimulam a pegação, permitem a bebedeira e permitem noitadas tórridas, para deleite do público.
Nesse cenário, dois participantes se embebedam, o Nego do Borel e a modelo Dayane Mello. Ambos vão para a cama, um rapaz pleno de testosterona, bêbado, e uma mulher totalmente bêbada. As câmeras vão registrando. E a direção de TV vibrando com as prováveis cenas tórridas, que poderão fazer o deleite do distinto público voyeur. Nenhuma preocupação com a segurança da jovem, nenhum movimento para impedir o assédio do jovem bêbado, nenhum limite à bebedeira prévia.
No dia seguinte, estoura o escândalo: estupro de vulnerável: o jovem bêbado abusou da moça bêbada, que não tinha condições de se defender! Imediatamente a Record expulsa o Nego do Borel e aciona seu jurídico para engrossar as acusações de estupro.
Vamos por partes.
Nesse modelo de programa, as emissoras têm o mesmo papel dos cafetões. Exploram o sexo, ganham com ele e não se responsabilizam por nada.
Fosse um país sério, haveria a responsabilização da seguinte ordem:
1. TV Record seria responsabilizada por ter criado o clima propício ao suposto crime cometido. Teria que ser punida com multas e com TAC (Termos de Ajustamento de Conduta), assim como a TV Globo com o BBB.
2. A Constituição é clara quanto às exigências para concessões públicas, de respeito a princípios éticos. Logo, a União é responsável por não fiscalizar adequadamente as emissoras de televisão.
3. Do mesmo modo, o Ministério Público Federal poderá ser responsabilizado por incluir os abusos cometidos na lista as prerrogativas de imprensa. E não atuar quando esses programas violam seguidamente noções de dignidade humana.
4. A mídia também poderá ser responsabilizada por naturalizar e dar divulgação ampla a esse tipo de programa.
Mas tudo foi resolvido com a demonização do Nego do Borel. Pega-se um jovem, pleno de testosterona, coloca-o em um ambiente de estímulo amplo à sexualização, permite-se que ele se embebede e leve para a cama uma mulher igualmente bêbada. Depois de consumado o crime, basta levá-lo ao cadafalso da opinião pública e todos os pecados serão perdoados, o das emissoras, o do poder público, o do MPF e o da mídia. Se ele já implicava nesse risco, porque foi convidado?
De todos os implicados, eu diria que o único que pode recorrer a atenuantes é o único acusado até agora, o Nego do Borel.
Poderá alegar em sua defesa:
1. Foi induzido pelo clima de ampla sexualização do programa.
2. Estava bêbado quando cometeu o estupro.
3. Mesmo assim, se comprovado o estupro de vulnerável, tem que ser punido sim.
Vamos aos resultados de uma discussão saudável.
Fiz uma provocação pelo Twitter, sobre o linchamento do Nego do Borel, acusado de estupro de vulnerável: uma modelo que estava alcoolizada, sem condições de se defender. Tudo no programa A Fazenda, da TV Record.
No artigo coloquei que, centrando todas as acusações no rapaz, escondia-se a culpa maior a) Da emissora e das demais que recorrem a esse tipo de programa; b) Da União e das autoridades que permitem esses abusos em uma concessão pública; c) do Ministério Público por não atuarem um programa em que há a degradação das pessoas. E mencionei o fato de se colocar um jovem cheio de testosterona em um ambiente sexualizado, com consumo de álcool, sendo induzido à “pegação”, que é o objetivo do programa.
As reações foram interessantes.
Uma minoria concordou em discutir a responsabilidade de emissora, da União e da mídia. A maior parte se mostrou indignada pelo desvio de foco. Preferiu continuar se concentrando no Negro do Borel, protestando com minha menção ao testosterona e à bebedeira como atenuantes do suposto crime cometido.
Aï se dá algo curioso. De fato, testosterona ou bebedeira não podem ser atenuantes para crimes dessa natureza. Retifico o que escrevi. Mas, sem dúvida, são enormes agravantes para apurar a responsabilidade da emissora, da União e demais instituições, permitindo shows escabrosos dessa natureza.
Mas a celebração do linchamento prescinde de complicadores que possam diluir o alvo principal escolhido. Quando é um alvo, forma-se o consenso. Quando se apontam outros personagens, complica-se a análise, o que atrapalha o sentimento primal do linchamento.
Eu poderia ter invocado a condição dele, de negro, para sofrer um julgamento mais severo que a de um branco. Mas não entrei por ai: crime é crime; se praticou o crime (o que se saberá depois das investigações), que seja punido.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)