Devo aos gibis e sessão de quadrinhos nos jornais o meu interesse pela leitura. Quando criança, ia ao jornaleiro ansioso por novas histórias. A aventura começava com a advertência da mãe, “Cuidado! Anda perto do muro, longe da rua. E nem inventa de ir à banca da avenida”. A tal banca de jornal, proibida, frequentada pelos garotos mais velhos na rua, era o perigo e transgressão que fascinavam. Quem sabe um dia, imaginava.
“Esse, só a semana que vem”, dizia o moço da banca mais próxima. Na ausência de novas histórias, devorava as tirinhas dos jornais. A cada quadro, um desenho acompanhado de fala. Como no cinema. Mas se na sala de projeção a vida passava em duas horas, nos jornais eu era dono do tempo. Criança, gastava o relógio observando um traço bonito, uma ou outra palavra desconhecida. Ali, não tinha pressa. Assim conheci a Laerte.
Ou quase. Pois fiquei espantado ao saber que suas charges nos veículos de grande circulação, onde a lia diariamente, foram publicadas a partir da segunda metade da década de 80, eu adolescente. Para mim, ela, o Angeli, o Glauco e outros cartunistas existiam desde que aprendi o alfabeto. Laerte, em poucos quadros, ajudou e ajuda a enxergar e lidar com um mundo menos óbvio e, não raro, difícil de engolir. É possível, portanto, dizer que a cartunista fez parte não apenas da alfabetização de milhares de leitoras e leitores, dentre os quais eu me incluo, mas também da sua formação.
Laerte venceu o Troféu Juca Pato de 2021. Um reconhecimento por décadas de luta pela defesa de valores democráticos. Faz companhia, assim, a intelectuais, escritores e pensadores como Ailton Krenak, Ignácio de Loyola Brandão e Milton Hatoum, para citar os mais recentes premiados. Um troféu que foi entregue, em anos anteriores, a personalidades como Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Cora Coralina, Sérgio Buarque de Hollanda, Jorge Amado e Raquel de Queiroz, para citar apenas alguns ilustres premiados.
Não bastasse a seleta companhia, a homenageada deste ano faz lembrar, ainda, o jornalista Lélis Vieira e o ilustrador e chargista Belmonte (pseudônimo de Benedito Carneiro Bastos Barreto – 1896/1947), que criaram a personagem que dá nome ao troféu. Ambos foram censurados pelas tiras publicadas nos anos 30 e 40 do século passado. Depois de quase um século, o Juca Pato é entregue, pela primeira vez, a uma talentosíssima e combativa cartunista e jornalista cujas charges retratam um universo de pensamentos tão necessários em tempos tão raivosos e de discussões rasas.
Nas tiras da Laerte, traços de transgressão: como no dia em que eu, pequeno, fui à banca da avenida. Caçula entre os mais velhos, tive a coragem posta à prova pelos amigos maiores: “Tá com medo?” Não tinha como fugir do desafio. Atrás dos colegas, atravessei a rua, por último, quando o semáforo havia acabado de abrir. Corri, aflito para não ser pego. Ainda hoje sinto nos calcanhares o vento quente do para-choques do caminhão.
Em casa, não contei a ninguém sobre a aventura. Mas algo estranho ocorrera: a partir daquele momento, tive vontade de ler coisas novas, desconhecidas. Efeito da adrenalina? É provável que Laerte ainda não escrevesse para o jornal. Mas a vencedora do Juca Pato deste ano já tinha ganhado um leitor, que passou a enxergar o mundo com olhos menos infantis.
RICARDO FERNANDES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)
Publicitário, escritor e vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE-SP). Autor do romance “Através”.