A CAPA DE VEJA COM BOLSONARO É O RETRATO DA DECADÊNCIA DA DEMOCRACIA NO PAÍS

CHARGE DE NANDO MOTTA

“A chance de um golpe é zero”, exclama o título da capa da Veja desta semana, acompanhada de um retrato de Jair Bolsonaro, sentado de lado para a câmera, com olhar meio desconfiado, visivelmente incomodado, como se perguntasse: “O que eu estou fazendo aqui?”.

É o mesmo que ele deve se perguntar todo dia de manhã, ao sentar na cadeira principal do gabinete da Presidência da República, no terceiro andar do Palácio do Planalto.

O simples fato de a revista puxar para o título da capa uma negativa sobre o autogolpe frustrado no 7 de setembro revela, ao mesmo tempo, o vazio da entrevista e a decadência da democracia brasileira.

Em que outro país civilizado o chefe da Nação se sente obrigado a dizer uma coisa dessas, depois de passar meses em guerra com o Supremo Tribunal Federal e ameaçar não cumprir suas decisões?

Na chamada do online da revista, outra aberração:

“Vai ter eleição, não vou melar”.

Não diga! Que beleza… Folgo em saber que não vai ter golpe, vai ter eleição e quem vencer tomará posse. Não é fantástico? Nem Michel Temer conseguiria escrever algo tão objetivo, sem mesóclises.

Parece brincadeira. Quer dizer que vai ter eleição porque o presidente quer e não porque isso está entre as cláusulas pétreas da Constituição? .

E se ele não quisesse, como já ameaçou várias vezes, o que aconteceria?

Dá para imaginar a chanceler alemã Ângela Merkel dizer algo assim insólito sobre as eleições marcadas para amanhã, em que seu partido corre grande risco de ser derrotado, depois de quase 16 anos no poder?

No auge da maior crise sanitária, política, econômica, social e moral na história recente do país, o que sobrou da entrevista de duas horas foi só isso.

O tempo todo na defensiva, sem dizer nada sobre os graves problemas que assolam o país e suas propostas para enfrentá-los, tem-se a impressão de que a entrevista poderia durar dois dias, e não sairia nada que preste.

Fica-se sem saber, ao final, se foi a revista que solicitou a entrevista a Bolsonaro ou se foi Bolsonaro quem pediu para falar à Veja porque tinha algo de novo e de importante a dizer ao país.

Como não tinha nada de novo, muito menos de importante a falar, repetiu a mesma lenga-lenga de sempre, com frases inconclusivas, mentirosas e ocas de sentido, exatamente como fez no discurso da ONU esta semana.

Para não variar, mentiu ao dizer que as Forças Armadas estão participando do processo eleitoral “a partir de agora” e, por isso, “você não tem por que duvidar do voto eletrônico”.

Eletrônicas são as urnas, e o processo todo sempre teve a colaboração das Forças Armadas, desde que foram implantadas.

Pelo menos, o presidente não voltou a defender o tal do voto impresso, já enterrado pela Câmara, sem o qual não haveria eleições.

Mudou de ideia apenas para dar uma satisfação aos seus devotos e aproveitou para fazer um agrado ao ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, que ele andou xingando de nomes bem feios, antes de assinar a retratação preparada pelo escrivão Temer.

E mentiu novamente ao dizer “eu não convoquei a manifestação” (não fez outra coisa nas semanas que antecederam os atos), mas admitiu pelo menos que “extrapolou” nos discursos e jogou no ar mais uma frase sem sujeito:

“Esperavam que eu fosse chutar o pau da barraca”.

Quem “esperavam”? Os seus seguidores, a imprensa, as Forças Armadas, o Vaticano, a Cruz Vermelha? Ou não foi ele mesmo quem criou todo esse clima de ameaças às instituições para promover o autogolpe, afinal flopado?

Bolsonaro pode falar qualquer coisa em nome da “liberdade de expressão”, que ele agora defende com tanto vigor. O problema é que ninguém mais acredita no que ele fala, nem seus devotos, que mesmo assim o continuam venerando como o “Mito”.

A capa da Veja revelou não só a decadência e a fragilidade da nossa democracia, mas também a da própria revista, criada por Mino Carta, há mais de 50 anos, e que hoje vive seus estertores, esquecida nas mesas das salas de espera dos consultórios.

De influente na formação da opinião pública nos áureos tempos, que vão longe, a velha senhora da imprensa ficou irrelevante, e hoje já não se sabe mais nem quem é seu dono, que a comprou falida da família Civita, por alguns simbólicos reais, e assumiu sua dívida gigante.

Bolsonaro e Veja hoje são símbolos de um país que se degradou e afundou na lama da anomia social e da realidade virtual.

Esta “entrevista exclusiva” e bem combinada pode servir como epitáfio de uma época em que o medo e a ignorância venceram a esperança e o saber.

Bom final de semana.

RICARDO KOTSCHO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)

https://outline.com/EZpaPC

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