OS BASTIDORES DO GOLPE DE 7 DE SETEMBRO DO JAIR. OU O SEGUNDO GOLPE FRUSTRADO DO GENERAL HELENO

CHARGE DE AROEIRA

Ainda vão ser contados em detalhes os bastidores desta tensa semana em Brasília, especialmente da noite de 6 de setembro de 2021, quando a tropa avançada de caminhoneiros invadiu, às 18h, a extremidade da Praça dos Três Poderes, sob o beneplácito da Polícia Militar do Distrito Federal, que não agiu para impedir a remoção da primeira barreira de grades metálicas e pôs sob ameaça a integridade das instalações do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional e até mesmo do Palácio do Planalto, sede do governo de Jair Bolsonaro, até a tarde do feriado de 7 de Setembro. Bolsonaro e seus aliados esperavam encontrar multidão avassaladora na manhã do dia 7. Capaz de respaldar o golpe militar que gestavam há dois meses. Mas o que se viu foi um público bem menor que os 2 milhões propagados, tanto em Brasília quanto em São Paulo. Isso frustrou o entusiasmo golpista de Bolsonaro que se sentiu mais confortável diante do maior público da avenida Paulista para investir mais pesadamente sobre o Supremo e chamar de “canalha” o ministro Alexandre de Moraes, que conduz o inquérito das “fake news”.

Menos de 48 horas depois dos urros de Bolsonaro na Paulista, após duras respostas dos presidentes do STF, Luiz Fux, que o ameaçou com “crime de responsabilidade”, e do Superior Tribunal Eleitoral, Luiz Roberto Barroso, que demoliu seu governo, e de estar ameaçado por novos pedidos de “impeachment” além dos 131 engavetados pelo presidente da Câmara dos Deputados, o aliado Arthur Lira, do PP-AL, um dos líderes do Centrão, o que se viu nas palavras do governador de São Paulo, João Dória, foi um “leão que virou um rato”. Na verdade, mais para gato, pois miava, em lugar dos urros habituais, quando recuou e tentou dar o dito por não dito na “Declaração à Nação”, a carta de Dez Mandamentos redigida pelo ex-presidente Michel Temer, assinada, com pequenas emendas, por um presidente da República acuado pela ameaça de “impeachment”. Foi a segunda vez que Temer salvou Jair com uma carta. A primeira foi em 1999, quando JB defendeu num programa de TV o fuzilamento de FHC. Presidente da Câmara, Temer o livrou da cassação por falta de decoro.

A Nota ou Declaração foi recebida com perplexidade por seus mais radicais apoiadores e até desagrado de alguns dos militares no seu entorno, que já tinham embarcado no projeto (até aqui abortado) do golpe. É interessante observar que foi o segundo golpe frustrado do qual participou o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em 44 anos. Vou tratar disso mais adiante.

Sem dúvida, foram as providências tomadas pelo presidente do STF, Luiz Fux, que integra o Supremo desde 2011, que esvaziaram as condições políticas e militares para o golpe de Bolsonaro. Uma matéria publicada na manhã de 9 de setembro no site “Brasil de Fato”, assinada a quatro mãos pelo editor do site Brasil 247 (do mesmo grupo), Gustavo Conde, e pelo professor de História da Universidade de Brasília (UnB), Fernando Horta, é digna de fé. Tanto que quase as mesmas informações foram publicadas de modo mais sucinto no Blog do Noblat, do experiente jornalista com 53 anos de atividades, Ricardo Noblat no site “Metrópoles”. Por sinal, Noblat foi personagem dos bastidores quando ligou insistentemente para o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), cobrando ação de sua PM para impedir a vandalização da Praça dos Três Poderes. Acontece que o governador, aliado do presidente Jair Bolsonaro, a quem cedeu seu ex-secretário de segurança, Anderson Torres, para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em 29 de março deste ano, estava simplesmente ausente de Brasília, recolhido em uma de suas fazendas em Goiás, justamente num momento crucial como esse. Antes de partir, na tarde de segunda-feira, 6 de setembro, Ibaneis rondou a capital e disse não ter visto “nenhuma anormalidade”. O jornalista acionou então o vice-governador, Paco Britto, do Avante, alertando-o sobre a gravidade da situação institucional.

Fux e os demais ministros do Supremo com os quais trocou ideias, em especial Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, agiram como um verdadeiro Estado Maior

A cândida (?) ingenuidade do GDF (como tratam em Brasília o governo do Distrito Federal) não pegou o presidente do Supremo, Luiz Fux, desprevenido. Fux, praticante de jiu-jitsu desde os 26 anos, quando, instado por colegas do curso de Direito na PUC-Rio, ao contar o roubo de um relógio na praia, enquanto mergulhava no mar, recorreu à arte da defesa pessoal e, com os amigos, que já treinavam em academia, surpreenderam e imobilizaram o grupo de gatunos num outro dia e recuperaram o relógio. Ao longo de quase meio século atuando nos quadros da Justiça, Luiz Fux passou também a praticar a arte da “defesa institucional”. No começo da semana, sentindo as pesadas nuvens (não de chuva que precisam cair no Planalto Central para recuperar gramados e a vazão das nascentes e rios que alimentam os lagos das usinas hidroelétricas do Centro Oeste e Sudeste) que pairavam no ambiente político, ele advertiu autoridades militares para o que poderia acontecer.

Fux e os demais ministros do Supremo com os quais trocou ideias, em especial Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, agiram como um verdadeiro Estado Maior, unindo as informações recolhidas por fontes próprias, incluindo a imprensa, já que órgãos de informação do governo, a começar pela Polícia Federal e a Agência Brasileira de Informação (Abin) há muito foram instrumentalizadas por Jair Bolsonaro. Havia o cuidado de não vazar preocupações com interlocutores pouco confiáveis. Era sabido que desde sexta-feira (3 de dezembro) os hotéis de Brasília foram sendo tomados – especialmente os mais baratos. Isso indicou o deslocamento antecipado de número razoável de pessoas com alguma capacidade financeira – ou contempladas com algum suporte. No dia 6, quase todos os hotéis mais baratos de Brasília estavam lotados. A partir das 12h, a PM do Distrito Federal iniciou os planos de isolamento da região central da cidade (a Esplanada dos Ministérios) como parte do plano de segurança que é imposto compulsoriamente em dia de manifestações.

Tão logo soube da primeira invasão da Esplanada, por caminhões pesados, sob a resistência passiva da PM, o presidente do STF telefonou ao general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, comandante do Exército, a principal força armada do país e com o maior contingente em Brasília. Fux narrou a situação e disse que se a sede do tribunal fosse alvo de vândalos, pediria oficialmente ao presidente Jair Bolsonaro o emprego das Forças Armadas numa operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no DF. Ao fazer isso, Fux instou o Exército a não ficar alheio à situação. Qualquer dos três Poderes da República pode pedir uma operação dessa natureza, mas ela só é deflagrada se o presidente da República autorizar. Antes de fazê-lo, o presidente consulta os ministros da Defesa (general Braga Neto) e do Gabinete de Segurança Institucional (general Augusto Heleno). Assim, alertado por Luiz Fux, o general Paulo Sérgio ordenou ao general Rui Yutaka Matsuda, responsável pelo Comando Militar do Planalto, para que entrasse em contato com o presidente do Supremo. Enquanto isso, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, sem conseguir falar com Ibaneis (o telefone não atendia) ligaram para Gustavo Rocha, chefe da Casa Civil do governo do Distrito Federal. Evitaram ligar para Júlio Danilo Souza Ferreira, o secretário de Segurança Pública, delegado da PF. Ferreira é próximo a Anderson Torres, ministro da Justiça, dos mais fiéis servidores de Bolsonaro.

Rocha garantiu a Gilmar e a Alexandre que tomaria providências para reforçar a segurança do prédio do tribunal. De fato, a Polícia Militar montou nova barreira na Esplanada à altura do prédio do Itamaraty. Dali ninguém passaria, como não passou. Com o apoio do Exército, a arma mais poderosa das Forças Armadas, os ministros do STF estavam convencidos de que não haveria golpe, sequer um ensaio de golpe. Mas se bolsonaristas armados, militares da reserva e policiais tentassem algo parecido? A madrugada foi de extraordinária tensão, e não só para os ministros do Supremo. A tensão diminuiu, quinta-feira, 8, mas não se evaporou. A Esplanada continuou interditada porque bolsonaristas se recusaram a sair com cerca de 40 veículos. De cima de um carro de som, sucediam-se oradores renovando a ameaça de invasão do prédio do Supremo para agredir os ministros que encontrassem. O governo do Distrito Federal poderia multá-los, prendê-los e rebocar os veículos. Nada fez.

Não se sabe até quando Jair Messias Bolsonaro vai resistir à tentação do golpe, embora a cada virada da folhinha seu cacife de apoio popular se esvaia

Se os militares tivessem desobedecido o ministro Fux e, no 7 de setembro, as manifestações “flopassem”, os comandantes militares seriam processados por insubordinação e sairiam culpados de sedição. Mas o general Paulo Sérgio honrou a farda do Duque de Caxias e Bolsonaro perdeu liberdade de manobra. Do ponto de vista do STF, a ação era simples. Negasse o Exército a ordem de Fux e o golpe estava consumado. Não haveria necessidade da pantomima do 7 de setembro. Mas, ao adiantar a tomada de decisão, o STF aumentou exponencialmente o custo desta ação para os militares. A exigência da decisão ainda no dia 6 quebrou o plano bolsonarista. Sobretudo porque, de posse das informações de inteligência, o gabinete de Moraes mapeava o financiamento dos movimentos e bloqueava as contas certas e as chave-pix, asfixiando os financiadores de Bolsonaro. Muitas “caravanas” de locais perto de Brasília não puderam sair rumo à capital por falta de dinheiro. O resultado foi o número menor de apoiadores. Pode-se perceber um misto de frustração num Bolsonaro até contido em Brasília, comparado ao virulento de São Paulo.

Não se sabe até quando Jair Messias Bolsonaro vai resistir à tentação do golpe, embora a cada virada da folhinha seu cacife de apoio popular – indispensável a mover tanques e tropas militares – se esvaia. Mas é bom ficar atento ao próximo feriadão brasileiro: o 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, cai também, como o finado 7 de Setembro, numa terça-feira, dando motivos a grandes movimentações no feriadão. Vale lembrar que a última tentativa de golpe militar, abortada a tempo pelo então presidente da República, general Ernesto Geisel, foi exatamente na mesma data, em 12 de outubro de 1977.

Está na História, mas vale recordar o episódio que levou à demissão do então ministro do Exército, Sylvio Frota, militar linha dura que queria impor sua candidatura à sucessão de Geisel (que estava promovendo a abertura lenta, gradual e segura e preferia fazer do general João Batista Figueiredo o seu sucessor). Um dos ajudantes de ordens do então ministro do Exército era o hoje general reformado Augusto Heleno. Heleno foi instrutor de Jair Bolsonaro nas academias do Exército e sobre ele ainda mantém certa ascendência.

Frota era do grupo militar mais radical, que se insurgia contra o processo de abertura política. O general Geisel já tinha demitido em janeiro de 1976 o general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército (SP) pela morte do operário Manuel Fiel Filho nas instalações do Doi-Codi (onde pontificava um dos ídolos de Bolsonaro, o coronel Brilhante D’Ustra). Meses antes, em outubro de 1975, foi morto o jornalista Vladimir Herzog, o que gerou repercussão mundial. Cioso da disciplina militar e da hierarquia de comando, Geisel, que já tinha advertido “os bolsões radicais, porém sinceros”, considerou desafio pessoal a morte do operário, “uma insubordinação“. E demitiu sumariamente o comandante do II Exército em 21 de janeiro. O episódio ficou remoendo na ala militar mais radical, que tinha em Frota um porta-voz. Frota não fora escolhido para comandar o Exército na formação do governo Geisel. O comandante era o general Dale Coutinho, que morreu com poucos meses no cargo e foi substituído por Frota que comandara o I Exército, no Rio de Janeiro. Vários dos movimentos de abertura de Geisel foram contestados por Frota e outros chefes militares. Em 22 de agosto de 1976, a morte de JK gerou a maior manifestação popular em Brasília, na Praça dos Três Poderes, que se teve notícia em todo o período militar. Isso abalou os alicerces do regime e sedimentou em Geisel a necessidade de prosseguimento da abertura política.

Mas Geisel já estava profundamente incomodado com seu ministro do Exército. Após a morte de João Goulart, também em 1976, no exílio no Uruguai, houve sondagens de políticos próximos a Leonel Brizola, cunhado de Jango, para seu retorno ao Brasil (que só se consumou em 1979). Sem consultar o presidente, Sylvio Frota ordena reforço dos contingentes no III Exército nas fronteiras do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina. Esse movimento aguçou a vigilância do presidente sobre seu ministro, que queria se lançar candidato a presidente ainda em 1977 (Geisel marcara o calendário para o segundo semestre de 1978, pois seu governo iria até 14 de março de 1979). No início de agosto de 1977, o deputado Carlos Alberto de Oliveira ameaçou lançar a candidatura de Frota. Em 23 de agosto, Geisel pediu para aprovar um texto que Frota preparara para comemorar o Dia do Soldado (25 de agosto). O pedido inusitado gerou atrito. Em 8 de setembro, Frota ameaçou o jornalista Lourenço Diaféria, da então governista “Folha de S. Paulo”, que elogiava o heroísmo do argento Silvio Hollembach que se atirou no lago do Zoo de Brasília para salvar um menino de oito anos de um ataque de ariranhas, em detrimento do Duque de Caxias (Luiz Alves de Lima e Silva), patrono do Exército. Em 4 de outubro, o general Jaime Portela, expoente da linha dura do regime, visitou a capital para estimular o apoio ao “frotismo”. Isso acendeu a luz vermelha no painel do Palácio do Planalto, onde Geisel e o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, davam as cartas do governo e da abertura política, “lenta, gradual e segura”. Sylvio Frota não se cansava de denunciar a infiltração de “98 comunistas no governo”.

Em 10 de outubro, um domingo, depois de consultar seu irmão, Orlando Geisel, que comandara o Exército no governo Médici, Geisel anunciou aos seus aliados mais próximos, os generais Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil, e Hugo Abreu, chefe da Casa Militar, que iria demitir Sylvio Frota dentro de dois dias, quando seria feriado em Brasília. Seria a primeira exoneração de um ministro de Exército desde 1964. Mas Geisel e Golbery, que eram sagazes, montaram uma verdadeira operação de guerra para neutralizar as iniciativas de Frota. Golbery e Abreu instruíram o Diário Oficial da União a funcionar durante o feriado. No dia seguinte, 11 de outubro, Geisel informou sua decisão aos comandantes dos quatro exércitos e os convocou para uma reunião em Brasília no dia 12. O presidente e Golbery agiram cedo. Desde as 8h30 oficiais altamente graduados estavam no Aeroporto de Brasília para receber os generais-comandantes para uma reunião no Palácio do Planalto. Frota designou um oficial para a mesma missão, atraindo os generais para uma reunião no Alto Comando do Exército. Quem ia para a fila sugerida pelo emissário de Frota estaria degolado.

Geisel reuniu os generais e depois recebeu Frota, que ficou sozinho. O diálogo teria sido curto e direto, segundo o SPDOC da Fundação Getúlio Vargas, que colheu extensos depoimentos de Geisel. O presidente abriu a conversa:

– Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.

– Eu não peço demissão – respondeu Frota.

– Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não vai pedir demissão, vou exonerá-lo.

Em menos de cinco minutos a audiência estava encerrada.

E foi publicado no DOU a exoneração assim como a indicação de Fernando Belfort Bethlem, o comandante do III Exército e um dos trunfos com que contava Sylvio Frota para ganhar a parada, como sucessor. Sylvio Frota tinha elaborado um texto de oito páginas para ser distribuído para todas as unidades do Exército, o que não foi feito. Mas a resistência à abertura, com Figueiredo, exigiu nova demissão, em janeiro de 1978: a do general Hugo Abreu.

Se não fosse tão anticomunista, o general Augusto Heleno, cujo GSI, passou a desempenhar as funções do antigo Gabinete Militar desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, deveria ler as observações de Karl Marx sobre um estudo do filósofo Frederick Engels. Datado de janeiro de 1852, o texto descreve um golpe de Estado recém-ocorrido na França. Carlos Luís Napoleão Bonaparte, eleito presidente do país em 1848, resolveu impor uma ditadura três anos depois. A data escolhida para o golpe foi 2 de dezembro de 1851, aniversário de 47 anos da coroação de seu tio, o general e estadista Napoleão Bonaparte, como imperador da França. Essa repetição de Napoleões no poder inspirou Marx a formular a célebre frase com que abre o texto: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

No Brasil, o general Heleno acaba de participar de um 2º golpe que deu chabu antes de espocar.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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