Agosto costuma ser um mês aziago na vida brasileira. Mortes e fatos importantes ficaram marcados na história de gerações. Meu primeiro choque, aos quatro anos e meio, foi o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954. A cozinheira da família teve um surto e não tivemos almoço. No ano seguinte, morreu Carmen Miranda, a brasileira mais famosa até então. Em 25 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou, sete meses após a posse, em 31 de janeiro. Em agosto de 1976 morreu JK, num estranho acidente na Via Dutra. Este ano, agosto fechou com 580 mil mortos pela Covid-19, sendo pelo menos 25 mil no mês. Entre as perdas sentidas deste ano, agosto nos levou Paulo José e Tarcísio Meira, dois grandes nomes do cinema, teatro e televisão, e Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones. Em outros anos, nos deixaram Elvis Presley (sim, Elvis morreu em 1977, assim como a Terra não é plana), o poeta Carlos Drummond de Andrade (1987) e o nosso roqueiro Raul Seixas (1989), no dia em que uma parte da Terra parou.
Na época da Ditadura, cuja longa noite mais tenebrosa se estabeleceu após o draconiano AI-5 de 13 de dezembro de 1968, o impacto do fechamento político no dia dos cegos, de Santa Luzia e também no Dia do Marinheiro foi magnificamente retratado por Zuenir Ventura* (a quem rendo homenagens) em “1968, o ano que não terminou”, a partir de então a imprensa se dedicava a interpretar as ordens do dia que iam do Dia do Soldado (25 de agosto, quando se comemora o patrono do Exército, o Duque de Caxias) até à data de 7 de Setembro, quando havia os desfiles militares no dia da Independência do Brasil de Portugal, em 1822. A Ditadura conseguiu dar relevância às ordens do dia e manifestações oficiais entre o dia 25 de agosto e o 7 de Setembro. “A Semana da Pátria”, que historicamente era a semana do 7 de Setembro, se estendia por duas semanas de 25 de agosto em diante.
Não porque fosse questão merecedora de efetiva atenção. Entretanto, a partir do momento em que a noite escura da Ditadura tornou os ares democráticos irrespiráveis, cabia sempre vislumbrar se não havia fissuras ou descontentamentos com as práticas de tortura e atos arbitrários que não podiam ser noticiados. Os grandes jornais tinham um censor permanente. Geralmente um coronel ou um major, que não deixava passar nada. Os mais censurados da época, o JORNAL DO BRASIL, que driblou magnificamente a censura no dia 14 de dezembro de 1973 com a antológica 1ª página do AI-5 (usando a previsão do tempo para dizer que tempos sombrios se abatiam sobre a nação – no Palácio do Planalto e no Palácio das Laranjeiras, residências do então presidente, marechal Costa e Silva – e uma alusão de que “Ontem foi o dia dos Cegos, numa chamadinha em alto de página), tinha de sistematicamente dar pistas de censura ao leitor, publicando anúncios classificados onde estava diagramada uma matéria vetada antes de o jornal rodar. “O Estado de S. Paulo” publicava versos de Luiz Vaz de Camões no lugar de textos censurados e o vespertino do grupo (“O Jornal da Tarde”) enriquecia a culinária nacional com receitas de bolo). O oficialista “O Globo” e a desprezada “Folha de S. Paulo”, então ferrenha apoiadora do governo, não eram fustigadas, pois davam candidamente a versão oficial dos fatos.
Mas já se sabia das fricções internas nas forças armadas desde 1972 (o mandato do general Emílio Garrastazu Médici deveria terminar em 15 de março, quando expiraria o prazo de cinco anos do marechal Costa e Silva – 15 de março de 1967-72). Vítima de uma isquemia, em 31 de agosto de 1969, que o deixou semiparalisado, Costa e Silva foi declarado incapaz. Entretanto, uma junta militar composta pelos chefes das três armas (então ministérios) não deixou que tomasse posse o vice-presidente civil, o respeitado jurista e político Pedro Aleixo, que fez restrições ao AI-5 “pelo poder desmedido que daria ao guarda da esquina”. A junta assumiu o país por algumas semanas, no que o jornalista Elio Gaspari classifica de a “Junta dos Três Patetas”. Médici, que tinha sido comandante do III Exército (Sul do país) e do SNI, assumiu o governo em 30 de outubro de 1969 para evitar o racha militar, com mandato tampão original até 15 de março de 1972. As benesses do “milagre brasileiro”, que não podia ser contestado, só louvado, diante da censura, levaram a prorrogação por mais dois anos (até o general Ernesto Geisel tomar posse em 15 de março de 1974).
Esse interregno entre a extensão do governo Médici e a posse de Geisel foi um período de dura censura e repressão policial militar. A revolta armada contra o regime militar ganhou força no intervalo entre a doença de Costa e Silva e a posse de Médici. O fato mais marcante foi o sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, na Semana da Pátria e às vésperas do 7 de Setembro, por grupo armado ligado à Aliança Libertadora Nacional, que impôs uma desmoralização ao regime com a leitura de manifesto contrário ao governo em rede nacional de rádio e televisão. Cabia aos jornais acompanhar notas oficiais e ordens do dia dos chefes militares para perceber as entrelinhas. Geralmente, havia a menção de que “as forças armadas estavam coesas e unidas” contra “o inimigo solerte” – vale dizer que havia movimento de guerrilha na América Latina, inspirado no levante cubano de Sierra Maestra, das forças de Fidel Castro, irmãos e Che Guevara (morto em 1967 quando tentava implantar a guerrilha na Bolívia) contra as tropas do ditador Fulgêncio Batista (em 1959). E o Brasil, que era o maior e mais populoso país, além da economia mais importante da região, tinha focos de guerrilha urbana e rural. Essa clivagem das notas dos comandantes militares durou até meados do mandato de Geisel. Que demitiu comandantes “radicais, porém sinceros” para impor a disciplina nos porões militares, resistentes à distensão e à abertura política. Além de acabar com a censura.
Geisel entregou, em 1979, as chaves da abertura política para o seu sucessor, o general João Figueiredo, a quem coube promulgar a Lei da Anistia. Em 1984, houve a primeira eleição indireta para presidente da República no regime militar, vencida por Tancredo Neves (PMDB em coligação com o PFL, costela dissidente do partido oficial, o PDS, que tinha Paulo Maluf como candidato). Do PFL veio o vice de Tancredo, José Sarney, que tomou posse interina em 15 de março de 1985, e foi oficializado após a doença fatal de Tancredo Neves, que morreu em 21 de abril sem vestir a faixa presidencial. A principal obra que Tancredo deixaria para o Brasil, a nova Constituição, acabou sendo gestada no governo Sarney e promulgada em 5 de outubro de 1988, sob a batuta do então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães.
A primeira eleição presidencial direta pós-1964 (a anterior fora de Jânio Quadros, em outubro de 1960) ocorreu em outubro de 1989, com vitória de Fernando Collor sobre Luís Inácio da Silva, do PT. Acusado de corrupção, Collor sofreu “impeachment” em fins de 1993 e assumiu o vice Itamar Franco, que fez o Plano Real, que domesticou a inflação, em 1º de julho de 1994. Depois elegeu seu sucessor, o ex-ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. FHC negociou com o Congresso a redução do mandato de cinco para quatro anos, em troca da reeleição. Ganhou em 1998. Mas não fez o ex-ministro da Saúde, José Serra, o sucessor, em 2002 – em parte pelo desgaste do racionamento da energia elétrica em 2001. Lula foi eleito e reeleito em 2006, apesar das denúncias do “mensalão” e ainda elegeu o “poste” Dilma Roussef, sua ex-chefe da Casa Civil e “mãe do PAC” em 2010. Dilma foi reeleita em 2014, mas a economia capotou em 2015, com a disparada da inflação, puxada pela alta do dólar, da energia elétrica (que reduzira as tarifas em 2013) dos combustíveis (cujos preços tinha congelado) e repetiu a dose da recessão em 2016, quando sofreu impeachment em abril e saiu oficialmente do governo em agosto de 2017, com a posse definitiva do vice Michel Temer.
“O mundo gira e a Lusitana roda”, mas o Brasil de Jair Bolsonaro, com sua insistência em defender o avanço da “agenda conservadora”, está tentando dar marcha à ré na história. Regredimos na agenda de costumes. De reconhecimento dos direitos humanos, das mulheres, dos índios, das minorias e dos negros (que são a maioria dos 213,5 milhões de brasileiros). Estamos com a inflação novamente batendo à porta dos dois dígitos (o IBGE divulga os números de agosto dia 9 de setembro, dois dias após as programadas manifestações convocadas pelo presidente Jair Bolsonaro para o Dia da Independência, com previsão de quase 0,7%, que elevaria a taxa de 12 meses ao limiar dos 10% no IPCA (que mede a cesta de consumo dos mais ricos) e acima dos 10% no INPC, que mede os gastos das famílias com renda até cinco salários mínimos (R$ 5,5 mil). O cuidado do meio ambiente é um desastre total, com o “liberou geral” para grileiros, desmatadores e invasores de terras indígenas para mineração de ouro e outros metais. O resultado é que os chamados “rios voadores” da Amazônia, onde o desmatamento avança a olho nu, e assusta visto de cima pelos satélites, que a própria produção agrícola do Centro-Oeste sente a escassez de chuvas. Escassez essa que está na raiz da crise energética, que deveria ter sido percebida pelo governo quando a produção para exportar das indústrias eletro-intensivas disparou, em maio de 2020, estimulada pelo dólar. E se o país tivesse sido beneficiado com o “choque do gás natural”, prometido pelo ministro Paulo Guedes, desde 2019, com superoferta de gás que reduziria o preço em 30% a 50%, as termoelétricas a gás poderiam estar produzindo a pleno vapor e poupando água dos reservatórios das usinas hidroelétricas. Mas as promessas de Guedes…
Os setores mais atilados do mundo empresarial e da sociedade brasileira já perceberam o desastre que a agenda do governo Bolsonaro está conduzindo o país. Entusiastas de sua campanha e que se engajaram no governo, dele desembarcaram há mais de um ano, quando viram os rumos da insanidade que costeava o alambrado do golpe militar. Agora, que os objetivos do 7 de Setembro, embora ainda inconfessados, estejam escancarados no atentado à democracia e à harmonia dos Três Poderes da República, ex-aliados começam a trocar de trincheira. Em boa hora estão do lado da democracia, da liberdade e do respeito inalienável à Constituição e às regras do Estado Democrático de Direito. Passaram a combater o bom combate: a defesa da democracia e da boa gestão da coisa pública, como também em boa hora fizeram entidades do agronegócio, banqueiros, via Febraban, e entidades empresariais respeitáveis.
Entretanto, uma zona de sombra tentou ameaçar o livre pensamento das “forças produtivas da nação”. A Fiesp, a mais poderosa federação das indústrias do país, pois representa São Paulo, o estado de indústria mais pujante e de maior PIB, liderada pelo apoiador de Jair Bolsonaro, Paulo Skaf, quase se escafedeu na última hora. Alguns de seus líderes têm tanta dependência do governo que fizeram cera para colocar o documento na rua. Vergonhosa foi a submissão da Firjan, sob o longevo comando de Eduardo Eugênio Gouvea Vieira, mais preocupado em poupar a entidade do corte das verbas do Sistema S. No caso da Febraban, a Federação Brasileira dos Bancos, que reúne bancos privados, nacionais e estrangeiros, e bancos públicos, houve tentativa de intimidar os signatários da maneira mais baixa possível. O presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, aliado de primeira hora do presidente Bolsonaro, ameaçou os pares de “perderem negócios e contratos com o governo“ se assinassem o documento que a CEF e o Banco do Brasil se recusaram a fazer. Pelo visto, os negócios do governo Bolsonaro com a banca não são republicanos nem transparentes. E se o padrão se aplica à área financeira, o que não há de ocorrer em outras áreas, mais dependentes da caneta Bic presidencial?
O mês de agosto que acabou (mas Bolsonaro quer prolongar) sempre foi sinônimo de crise porque é nele que se dá o casamento da política com a economia. O Executivo tem de apresentar ao Congresso, até o dia 31 de agosto, a proposta para o Orçamento Geral da União do ano seguinte. O Congresso, após o recesso de julho, quando deputados e senadores voltam a ter mais contato com suas bases eleitorais nos estados, vem com demandas que têm ainda mais dificuldades de serem acomodadas no OGU. Há ainda o agravante de que quando se definia as verbas para a safra agrícola (há alguns anos antecipada para fins de julho) os orçamentos sofriam mais pressão. Às vésperas do ano eleitoral de 2022, com o governo francamente desgastado pela incompetência em diversas frentes, acomodar demandas sem perder aliados ficou mais difícil ainda.
Os brasileiros democratas e responsáveis têm de ter cabeça fria diante dos atos de um governo insensível aos mais de 585 mil mortos pela Covid-19 e insensato diante dos desafios que rondam a nação brasileira. Não se pode aceitar a provocação da arruaça que já está evidente para dar motivo à intervenção das forças militares dos estados, cuja disciplina e hierarquia estão minadas pela pregação golpista e as investidas dos partidários do presidente contra o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. Em meio a um desejado caos, se invocaria a convocação das Forças Armadas para o estabelecimento da GLO – Garantia da Lei e da Ordem. O uso da GLO, vale recordar, já foi tentado no governo Temer, em fins de 2017, quando o Rio de Janeiro sofreu intervenção militar na segurança pública. O comando foi exercido pelo general Walter Braga, sem sucesso. Agora, como ministro da Defesa e subordinado ao presidente da República e comandante em Chefe das Forças Armadas, por que teria de dar certo?
Os brasileiros não serão despertados no 7 de Setembro pelo toque quase silencioso dos clarins das cornetas militares, mas pelo estrondo dissonante dos cornos dos berrantes.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” ( JORNAL DO BRASIL) ( BRASIL)