Artigo publicado pelo ministro Ricardo Lewandowski no sábado, 28 de agosto, na Folha, tem sido apontado por especialistas e por ministros do próprio Supremo como o roteiro seguro para punir golpistas — e isso não exclui o presidente da República, se golpista for — no caso, é claro, de o assalto à democracia e ao estado de direito não vingar. Na hipótese tenebrosa, cessaria o que canta a legalidade, não é?, porque os criminosos dariam as cartas.
O Brasil vive dias notavelmente exóticos. O artigo do ministro é de uma clareza solar em dias de debates tenebrosos. Sem estes, Lewandowski nem se ocuparia da questão porque, de tão óbvia que é, nem sentido faria.
Qual é a pedra angular da argumentação do ministro? A correta interpretação do Artigo 142 da Constituição, cujo caput transcrevo abaixo, acompanhado do importantíssimo Parágrafo 1º:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
AS QUATRO LINHAS
Bolsonaro tem dito por aí, com sua metáfora pobre repetida “ad nauseam”, que não vai sair “das quatro linhas da Constituição”. E insiste que uma intervenção militar é possível respeitando-se o conteúdo da Carta.
A hipótese deriva do entendimento porco que ele e outros adotam do papel atribuído às Forças Armadas pelo Art. 142, que concede aos militares, por iniciativa de qualquer dos Poderes, a “garantia da lei e da ordem”.
MAS FORÇAS ARMADAS PRA QUÊ?
Observem que o texto constitucional afirma que lei complementar estabelecerá as “normais gerais” dessa intervenção. Não estamos no vácuo. O arcabouço legal existe. A Lei Complementar 97 (alteradas em aspectos laterais pelas Leis 117 e 136) disciplina as circunstâncias em que as forças podem ser empregadas. No caput, basicamente repete o Artigo 142.
É no Parágrafo 2º do Artigo 15 que se compreende em que se traduz a garantia da “lei e da ordem”. Transcrevo.
“§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.”
“Lei e ordem” e “garantias dos poderes constitucionais” são expressões que devem ser entendidas em sentido estrito: eventuais deflagrações de conflito generalizado que impedissem o regular exercício dos direitos individuais e coletivos, com ameaça clara às instituições.
O decreto 3.897, de 2001, no Artigo 3º, acompanhado do Parágrafo Único, evidencia com ainda mais clareza em que consiste a intervenção:
“Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.
Parágrafo único. Consideram-se esgotados os meios previstos no art. 144 da Constituição, inclusive no que concerne às Polícias Militares, quando, em determinado momento, indisponíveis, inexistentes, ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.”
Observem que, em nenhum momento, e nem poderia ser diferente, deve-se entender “garantia da lei e da ordem” como uma força capaz de impor aos Poderes da República este ou aquele entendimentos da Constituição. As Forças Armadas não são intérpretes da Carta. Não têm o papel de dirimir eventuais conflitos entre Poderes.
Até por que o Caput do Artigo 102 da Carta é claro: a guarda da Constituição cabe ao Supremo, não às Forças Armadas.
DE VOLTA AO ARTIGO DE LEWADNOWSKI
Num determinado trecho de seu artigo, o ministro Lewandowski escreve:
“E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a ‘defesa da lei e da ordem’, quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes”.
Ou por outra: a convocação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem fora do que estabelece a disciplina legal é, por óbvio, crime. Ou será que a Constituição teria absorvido em seu Artigo 142 a hipótese de um golpe legal? Isso é uma sandice.
E, como lembra o ministro, a tentativa de golpe de Estado tem prevista a devida sanção penal no país. Está na Lei de Segurança Nacional, derrubada pela Congresso. Mas a punição ao ataque aos Poderes constituídos, ainda que na forma de simples ameaça, foi incorporada ao Código Penal. Ainda depende da sanção de Bolsonaro. Em caso de veto, é certo que será derrubado.
O RUÍDO IVES GANDRA MARTINS
O uso do Artigo 142 para dirimir divergências entre Poderes nasce de uma leitura exótica — se não é única, reúne apenas meia-dúzia de lunáticos — do advogado Ives Gandra Martins. Ele se agarrou a esse equívoco e não o solta mais. Em vez de admitir a bobagem originalmente dita, vai sobrepondo interpretações em camadas, como uma cebola teórica.
Para ele, qualquer Poder que considere que um Outro usurpou uma competência sua tem a faculdade de convocar as Forças Armadas para restabelecer “a lei e a ordem” e a “garantia dos Poderes constitucionais”. Imaginem a folia…
Penso cá num general batendo às portas de Luiz Fux: “Oi, excelência, vim aqui dizer que a decisão tomada pelo tribunal não vale”. E se o Supremo discordasse? Bem, restaria ao general indagar: “Quantos tanques tem Vossa Excelência?”. O mesmo poderia acontecer com o Congresso: “Olá, senador Rodrigo Pacheco, meu blindado está aí fora, e estou aqui para informar que o presidente da República acha que vocês usurparam uma competência dele. Então não vale.” E, ora vejam, até o Supremo poderia chamar um general para mandar um recado ao chefe do Executivo: “Os ministros lá estão dizendo que não pode ser assim”. Ao que responderia o mandatário: “Mas eu sou o seu comandante…”
A interpretação é tão burra que chega a ser surpreendente. Agora que percebeu que Bolsonaro navega em sua interpretação insana para ameaçar com golpe de Estado, Martins diz que o presidente não poderia apelar ao 142 em proveito próprio… Ora, doutor Ives!!! Então o senhor oferece uma leitura da Constituição que institucionalizaria o golpismo na esperança de que um golpista não tentasse fazer uso dela?
CONCLUO
O artigo de Lewandowski é necessário e oportuno porque lembra que:
– a legislação pune o golpista com cadeia — e inexiste excludente de ilicitude para o presidente da República;
– o Artigo 142 da Constituição tem legislação que o disciplina e não é pau para toda obra.
“Ah, Reinaldo, e se Bolsonaro, com o apoio das Forças Armadas, der mesmo o golpe?”
Bem, estaríamos fora das quatro linhas da Constituição. E golpe seria. Enquanto durasse, estaríamos sob a égide do crime e dos criminosos.
Finda a aventura, e chegaria ao fim, os criminosos responderiam por seus atos. Até porque define o Inciso XLIV do Artigo 5º:
“Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Por imprescritível, é também insuscetível de anistia.
Findo o golpe, iriam todos para a cadeia.
REINALDO AZEVEDO ” SITE DO UOL” ( BRASIL)