Em 2018, Bolsonaro não tinha um programa de governo capaz de responder à crise. Dispunha de um bordão —”Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”— e de um versículo do Evangelho de João —”Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Hoje, ele marcha rumo a 2022 tendo uma crise sem um governo capaz de oferecer respostas. Tornou-se o principal adversário de si mesmo.
A inépcia de Bolsonaro aniquilou até os seus truques retóricos. No sábado, o presidente disse a um grupo de evangélicos que vê “três alternativas” para o seu futuro: “Estar preso, ser morto ou a vitória.” É como se Deus desejasse esclarecer pela voz daquele que evoca o Seu nome em vão que, embora esteja em toda parte, é o Tinhoso quem controla o Planalto.
Na véspera, o presidente chamara de “idiota” quem prefere o feijão aos fuzis. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô”, disse ele aos devotos do cercadinho. “Povo armado jamais será escravizado. Tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar feijão.’ Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.” Fica claro que o capitão trocou a verdade do versículo 32 do capítulo 8 do livro de João pela mentira segundo a qual a felicidade do brasileiro está na ponta de um AK-47.
Há algo de muito errado num país comandado por alguém que acha que está sempre certo. Muitos brasileiros perguntam aos seus botões por que Bolsonaro oferece um circo de horrores a um país em que falta pão. No momento, 14,8 milhões de pessoas procuram emprego e 19,1 milhões passam fome.
A resposta é simples: Enquanto a insanidade dá as cartas no Planalto, o pessoal só pergunta “por que o presidente se comporta como um louco?” Acabada a loucura, o pessoal vai querer que Bolsonaro acabe também com a fome, o desemprego, a inflação, a vigarice e, sobretudo, a incompetência que se generaliza num governo em franca decomposição.
Sob Bolsonaro, a inépcia não tem fronteiras. Alcança todos os setores. Na Saúde, por exemplo, um Marcelo Queiroga em acelerado processo de pazuelização dedica-se a brigar com João Doria, desqualificar as máscaras e fazer proselitismo com um processo de vacinação retardatário.
Na Educação, o pastor Milton Ribeiro trabalha duro pela segregação de crianças deficientes nas escolas. No Meio Ambiente, o desconhecido Joaquim Álvaro Pereira Leite assiste ao avanço das queimadas enquanto o antecessor Ricardo Salles foge da polícia. Na Defesa, o general Braga Netto vai à guerra pelo voto impresso.
Na economia, Paulo Guedes se desentende com a própria língua. Vitaminada pela alta da gasolina e da conta de luz, a inflação assusta. No acumulado dos últimos 12 meses, já escalou os dois dígitos em quatro capitais: Porto Alegre (10,37%), Goiânia (10,67%), Fortaleza (11,37%) e Curitiba (11,43%). E o ministro Paulo Guedes indaga: “Qual o problema de a energia ficar um pouco mais cara?”
Há inúmeros problemas. Mas nenhum é maior do que a presença no comando da economia de um planejador econômico que se revela incapaz de resolver os problemas, mas genial para organizar a próxima confusão. Ou o próximo “meteoro.”
A exemplo do que fez na pandemia da “gripezinha”, Bolsonaro tratou uma crise hídrica monumental —a maior em várias décadas— na base do negacionismo. O Plano A era ignorar as dimensões do problema e rezar para que São Pedro mandasse os temporais, O Plano B era… Era… Não havia Plano B.
Rendidos à lógica eleitoral do Planalto, o ministro Bento Albuquerque e os estrategistas do Ministério de Minas e Energia se abstiveram de colocar em pé, com a antecedência necessária, um plano de contingência. Algo que estimulasse a racionalização do consumo de energia.
Às voltas com o risco de apagão, Bolsonaro tenta imunizar-se contra o desgaste político lançando apelos patéticos nas redes sociais. Na live da última quinta-feira, o presidente revelou-se capaz de tudo, exceto de explicar suas omissões.
Bolsonaro falou das represas como se estivessem prestes a atingir um nível que as formigas conseguirão atravessar com água pelas canelas. “Em grande parte nestas represas, já estamos na casa de 10%, 15% de armazenamento. Estamos no limite do limite, algumas vão deixar de funcionar se essa crise hidrológica continuar.”
Em vez de explicar a falta de planejamento, o presidente dirigiu aos brasileiros um apelo patético: “Eu tenho certeza que você pode apagar um ponto de luz na sua casa agora. Peço esse favor para você. Apague um ponto de luz agora.”
Repetindo uma esperteza que utiliza sempre que a Petrobras aumento o preço dos combustíveis, Bolsonaro insinuou que a conta de luz ficará mais salgada por causa do imponderável climático e também dos impostos estaduais.
Paulo Guedes ecoou a esperteza do chefe ao dizer que o governo federal pedirá aos governadores “para não subirem automaticamente” o ICMS cobrado sobre a chamada bandeira vermelha que faz subir o custo da energia.
“Isso é um absurdo. Você está no meio de uma crise hídrica, eleva a bandeira para economizar recursos, e aumenta a arrecadação dos Estados, simplesmente porque o imposto deles não foi adequadamente definido”, disse o ministro da Economia. O diabo é que a alíquota do ICMS é a mesma. O que sobe é a irresponsabilidade do governo federal e a conta de luz.
Para prevalecer nas urnas de 2018, bastou a Bolsonaro surfar na onda do antipetismo e enrolar-se na bandeira antissistêmica. Para se reeleger em 2022, terá de lidar com o anti-bolsonarismo e levar à vitrine algo mais vistoso do que desculpas vagas. De resto, terá de explicar por que entregou a “alma” do governo ao sistêmico centrão sem tirar nenhum outro proveito da rendição além da blindagem do seu mandato.
O “custo Bolsonaro” avança na política e na economia. As reformas liberais foram para o beleléu. Diante do declínio da credibilidade e da popularidade do presidente, os investidores nacionais se retraem. Os estrangeiros fogem. O preço do escudo legislativo sobe na proporção direta da elevação da crise institucional que Bolsonaro industrializa. Hoje, noves fora os escândalos que estão por vir, as emendas que financiam o fisiologismo sorvem mais de R$ 30 bilhões do orçamento anual.
Bolsonaro demora a perceber. Mas o centrão já se equipa para desembarcar do governo no primeiro semestre de 2022. Um pedaço do grupo negocia com Lula nos Estados. No Piauí, o PP de Ciro Nogueira, chefe da Casa Civil de Bolsonaro, tricota com o PSDB.
No poder desde a chegada das caravelas, o centrão opera com o bolso e com o olfato. Troca de patrocinador sempre que fareja uma mudança no rumo dos ventos. Enquanto Bolsonaro aproveita o feriado de 7 de Setembro para brincar de golpe, o centrão sonda o mercado político à procura de uma perspectiva de poder que seja mais vantajosa do que o poder presumido de um presidente que conspira contra si mesmo em tempo integral.
Os apoiadores de Bolsonaro no Congresso já pressentiram que o presidente vai se tornando candidato favorito a fazer de um dos seus adversários o próximo presidente do Brasil. Diante dessa constatação, os caciques do centrão operam com três prioridades: obter de Bolsonaro todas as vantagens que o déficit público puder financiar, adivinhar o nome do sucessor e salvar a própria pele nas respectivas províncias.
JOSIAS DE SOUZA ” SITE DO UOL” ( BRASIL)