O PÚBLICO E O PRIVADO

CHARGE DE AROEIRA

A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, alertou em audiência, 6ª feira, 13 de agosto, o novo ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Bruno Bianco, sobre a impossibilidade de os governantes usarem o órgão em nome de interesses privados, e não da sociedade. Ela narrou a advertência, que serviu de admoestação à atividade recente do ex-AGU, o terrivelmente evangélico” André Mendonça, indicado para o STF, em evento no mesmo dia, promovido pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe): “Pela manhã, em audiência com o novo advogado-geral, eu enfatizava isso: tenho segurança de que hoje temos compreensão dos governantes de que, se eles usarem os advogados públicos, nada conseguirão”, disse a ministra Cármen Lúcia.

Procuradora Geral do Estado de Minas Gerais e indicada, em junho de 2006, para uma cadeira no STF, ela lembrou aos procuradores e advogados presentes que, até a década de 1970, era comum os governantes dizerem: ‘Eu faço, depois compete ao advogado público defender’. Mas nós não defendemos estripulias ou inconstitucionalidades. O Brasil tem débito com a advocacia pública pela má compreensão do seu desempenho”, disse.

Em decisão tomada em junho último, o Tribunal de Contas da União, que é um órgão auxiliar do Poder Legislativo, reconheceu a legitimidade da Advocacia-Geral da União para a representação de agentes e ex-agentes públicos. “A decisão demonstra o reconhecimento, pelo TCU, de importante atribuição da AGU na defesa dos agentes públicos e de ex-ocupantes de cargos públicos, prevista na Lei 9.028/95, conferindo segurança jurídica a todos os servidores que atuam conforme os ditames legais, em respeito ao interesse público”, como destacou o Consultor-Geral da União, Arthur Cerqueira Valério.

Isso é perfeito. Escalado na carreira pública ou privada para exercer ação no governo, desde que não eivados em vícios, como o nefasto manto da corrupção, o cidadão (enquanto agente público) merece a defesa de seus atos pelos órgãos do Estado quando deixa o cargo. Muitos atos são contestados “a posteriori” na Justiça e pedem a legítima utilização da AGU em sua defesa – tempo e servidores. Outra coisa é serem seus atos (praticados antes ou depois da investidura em cargos públicos) defendidos pelos advogados do Estado. Isso se aplica às esferas de governo: federal, estadual e municipal.

Mas a citação da ministra Cármen Lúcia é exemplar e não cabe somente à atuação dos representantes da AGU, da Controladoria Geral da União, dos procuradores dos diversos ministérios e instâncias de governo, a começar pelo ex-chefe da AGU, o “terrivelmente evangélico” André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar vaga no STF, após a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello, que defendeu acintosamente e com extrema fidelidade, seja inicialmente na AGU, depois como ministro da Justiça e Segurança Pública (entre abril de 2020 e março de 2021 e novamente como chefe da AGU até julho, o presidente da República, parentes e amigos em causas sem conexão com o mandato presidencial.

A carapuça se estende ao Procurador Geral da União, Augusto Aras, com atuação ainda mais pró-ativa a favor dos interesses privados do presidente da República, como sua campanha de reeleição, em outubro de 2022, em franca atividade mais de um ano antes da abertura oficial da campanha eleitoral. Mas o que dizer da ação administrativa e política de toda a máquina do governo em favor da campanha de reeleição do chefe da Nação? Antes mesmo do reforço bilionário do Fundo Eleitoral, toda semana o presidente se desloca pelo país com grande aparato e custo, arrastando atrás de si parte da máquina pública. Às vezes, inaugura ponte que custa menos que os gastos totais da viagem. Noutras, as agendas oficiais casam com as “motociatas” que viraram atos de campanha presidencial no fim de semana.

O exemplo mais grotesco foi dado esta semana pela ridícula e ostensiva movimentação dos tanques e veículos anfíbios da Marinha na Praça dos Três Poderes, sob o pretexto de entrega, em mãos, de um convite, no Palácio do Planalto, ao presidente da República, Comandante em Chefe das Forças Armadas, para acompanhar, em 16 de agosto, exercício das três armas (com Exército e Aeronáutica) em Formosa (GO), no dia em que a Câmara votaria a proposta de voto impresso, insistentemente defendida pelo presidente Jair Bolsonaro. Deu xabu total. O aparato de tanques soltando fumaça preta, por falta de manutenção prévia (deviam ter sido revisados para evitar o vexame militar), transmitiu ao mundo a imagem de uma “república de bananas”, como taxara, há duas semanas, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, quando indagado sobre a ideia de Bolsonaro de não ter eleições sem o voto impresso. À noite, apesar da ameaça, os 229 votos foram insuficientes para alcançar o mínimo de 308 votos (dos 513 deputados) para mudar a Constituição.

É preciso deixar claro, de pronto, a separação entre governo e Estado/Nação. E a própria situação do ex-AGU, André Mendonça, em postos da administração é um bom exemplo. Pastor evangélico em paralelo à atividade de advogado, seu primeiro posto na área pública foi na então estatal Petrobras Distribuidora, de 1997 a 2000, quando ingressou na carreira de advogado da União. Na função, começou como procurador-seccional da União em Londrina (PR) passou ao cargo de vice-diretor da Escola do órgão, foi coordenador de Medidas Disciplinares e chegou ao cargo de corregedor-geral. Depois, Mendonça foi diretor do Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa, nomeado pelo então advogado-geral (e hoje ministro do STF) José Antônio Dias Toffoli, e coordenou o Grupo Permanente de Atuação Pró-Ativa da AGU, que em 2010 ajudou a recuperar parte dos R$ 169 milhões, os quais seriam usados na construção do Tribunal Regional do Trabalho de São, desviados dos cofres públicos por condenados como o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto e o então senador Luiz Estevão. De 2016 a 2018, no governo Temer, foi assessor especial do ministro Wagner Rosário, que comandou a Controladoria-geral da União. Em todas as atividades, como diria meu saudoso pai Heitor Menezes Côrtes, procurador aposentado: “não fez mais do que a obrigação”. Os advogados gerais e procuradores gerais da União (ou dos estados e dos municípios) são parte da carreira de Estado. Compete a eles defender os interesses permanentes do ente público.

Mas nem sempre primou pelo mesmo princípio a atividade de André Mendonça enquanto atuou à frente da AGU e no interregno como ministro da Justiça e Segurança Pública. Por pressão do presidente Jair Bolsonaro, as funções de defesa do Estado se misturaram com a sustentação das ações de governo e até dos familiares e amigos do presidente da República. Notará a diferença quem cotejar a postura de Mendonça com a do ex-ministro Sérgio Moro – considerada equidistante e desinteressada pelos apoiadores de Bolsonaro, que viam nele um potencial candidato à eleição em 2022, com a agravante (para a ética do “munus publico” de Bolsonaro) de não travar a Polícia Federal que ameaçava “foder (sic) minha família e meus amigos”. Desde que Moro deixou o governo, em 23 de abril de 2020, as intervenções visando interesses pessoais e viraram praxe não apenas na PF, como no Ibama e órgãos de fiscalização contra crimes ambientais e proteção dos territórios indígenas, por exemplo. E à frente do MJSP, o novo ministro, quem sabe tocado pelo espírito evangélico, quase virou um advogado de defesa do cidadão Jair Messias Bolsonaro.

Os embates que o chefe do Poder Executivo tem travado no território da Praça dos Três Poderes com o Judiciário, à frente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cujos membros são defensores intransigentes da Constituição e das leis de respeito à democracia, e com o Poder Legislativo, mais dócil, embora, seu representante oficial, o presidente do Senado e do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que já deixou claro o respeito à Constituição e adiantou a intenção de nem submeter a questão do voto impresso ao plenário da casa, estão servindo para demarcar a linha divisória entre o respeito ou não à Constituição e às normas democráticas.

A patacoada da exibição canhestra do poderio militar, nos deixou mal perante as nações democráticas de todo o mundo e até mesmo ante vizinhos da América Latina, sobre os quais sempre manifestamos ascendência, pelo menos em desenvolvimento e respeito a princípios democráticos. Mas serviu para desmoralizar a bravata infantil, irresponsável e inconsequente, ainda em campanha, do filho 03, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PFL-SP) que afirmara que “para fechar o Congresso, basta um cabo e um soldado” (em um jipe). Pois com todo o aparato militar, a Câmara reagiu no voto e derrubou a pretensão de Jair Bolsonaro, que há muito vem usando previamente os subterfúgios de seu ídolo Donald Trump, que quando viu que sua péssima atuação na pandemia mobilizara a sociedade americana a comparecer às eleições (o voto não é obrigatório) – presencialmente ou pelo correio, por recomendação sanitária – quis colocar em dúvida, até o ponto de insuflar uma invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, a eleição de Joe Biden.

A sociedade brasileira que deseja a retomada e o avanço da democracia não pode se defender somente no privado ou nas redes sociais. É preciso se mobilizar desde já para ampliar o debate político além das quatro linhas deste pobre Fla X Flu (Bolsonaro X Lula/PT) e derrotar, nas confiáveis urnas eletrônicas, as manobras do atraso.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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