Precisamos falar de transição, agora. Houve um tempo, como sabemos, em que as pessoas eram mortas e sumiam pelas mãos do Estado ou se auto-exilavam ou eram banidas do país, também pelas mãos do poder da época. Vítimas da repressão eram presas e enfrentavam tamanho suplício nas prisões – choques, estupro, submissão ao “pau-de-arara” – que os seus companheiros de luta armada não viram outra saída se não sequestrar figuras internacionais, de expressão, que poderiam causar incidentes diplomáticos se perdessem a vida aqui, no Brasil. Como exemplo: embaixadores. Essas figuram foram usada como “moeda de troca” para salvar vidas em sofrimento. Sim. Estamos falando da ditadura, implantada em 1964. O tom didático e “professoral” é proposital, porque até hoje, embora tudo isto pareça óbvio, não é. Há quem faça questão de ignorar tudo o que foi escrito a respeito.
Quando houve a “anistia”, em 1979, os “retornados” – como eram chamados na época os que finalmente puderam voltar ao país depois de amargar longo exílio, faziam depoimentos para jornalistas interessados em falar dos acontecimentos até então sob censura – que vigorou “oficialmente” até 1978 -, ou escreviam livros, contando em detalhes a tortura a que foram submetidos.
Fique por dentro do 247
Receba diariamente as principais notícias do 247Enviar
Este era o pavor dos que atuaram no aparelho repressivo. Ver os seus nomes veiculados e ligados aos horrores perpetrados contra seres humanos, concidadãos. Revelações que poderiam cair nas mãos de suas mulheres, filhos e netos. (Demonstraram um “pudor” que não tiveram na hora de violentar estudantes nuas, desfigurar corpos massacrados por suas “porradas” e fazer desaparecer os cadáveres de jovens, trabalhadores e, lideranças sindicais e políticas).
Para embaralhar a opinião pública e tentar uma “saída” para as suas biografias e a de suas instituições, os generais e seus batalhões de torturadores iniciaram o discurso do “revanchismo”.
O que era um termo definidor de quem procurava vingança pelas próprias mãos, punindo a quem matou e os torturou – coisa que nenhum retornado tentou ou tinha em mente – o “revanchismo” passou a ser usado maldosamente pelos agentes repressivos para definir os que relatavam, com justa razão, pela imprensa ou por livros-depoimentos, os horrores sofridos nos porões, sem que pudessem ser denunciados, na época. Vivíamos sob censura.
Assim, no discurso dos perpetradores, todos os que contassem as suas dores, ou procurassem, enfim, saber que “noite” foi aquela, passaram a ser qualificados de “revanchistas”. Nenhum torturador, nenhum chefe de comando ou general fez “mea culpa”. O Exército e as instituições afins envolvidas na prática de tortura, jamais vieram a público reconhecer que houve muito mais que abuso de poder. Houve arbítrio. Pelo contrário. Adotaram o negacionismo, a postura de avestruz. Enterraram as suas cabeças dentro dos quartéis, não porque entenderam a necessidade de se retirarem da política, ou por terem aceitado a mudança dos ventos, mas por medo de que tudo o que fizeram viesse à tona. Temiam que os seus netos fossem apontados na escola, nos clubes, nos grupos de amigos.
Apenas um veículo de Comunicação conivente com o golpe e a repressão, pediu desculpas à sociedade – mas, onde estão os corpos? – pelo terror imposto a todos nós. Quarenta anos e 434 mortos e desaparecidos depois.
Propositadamente os generais repetiram à exaustão, a fábula de que quem contasse a própria saga ou pesquisasse a respeito era “revanchista”. Os que não viveram esse tempo compraram a versão do jeito que eles venderam, e ainda hoje reverberam o termo, como se escrever sobre as torturas ou denunciá-las – como é obrigação dos que prezam pelo princípio universal dos Direitos do Homem -, fossem revanchistas. No máximo, poderiam ser tachados de “denuncistas”, por revelarem, com muita propriedade, uma história que lhes pertence.
Fazer disto um instrumento de manipulação política, querer encontrar no direito de narrar e fazer memória, um pretexto para fechar regimes, surrupiar direitos e subtrair liberdades, é a nítida intenção de retroceder a um tempo que deveríamos ter revisto, sim, para não repetir.
O que esses senhores (militares, principalmente) precisam entender de uma vez por todas, é que se não queriam que as suas mulheres, filhos e netos, soubessem que dividem a mesa com assassinos e torturadores, não se metessem nesta atividade vil, degradante e desumana. O erro não está em quem conta. O erro está nos que fizeram as barbaridades em nome da “ordem”, ou seja, lá o que os moveu.
O precisam entender é que os governos posteriores ao seu ciclo dantesco de poder tiveram a grandeza (ou seria fraqueza? Ou a limitação jurídica?) de não puni-los. Nem mesmo a Comissão da verdade usada pelo general Villas Boas – patrono do atual ciclo vergonhoso de fascismo inaugurado por ele com um “singelo” tuíte, como pretexto para um golpe -, não tinha poderes para punir os perpetradores. Nem era este o objetivo. O que se pretendeu foi atenuar as angústias dos familiares, sem respostas para o destino dos seus entes queridos. Não era “revanchismo”, senhores. Era “transição”, construção de memória. Uma memória que os assombra.
O deles é um discurso falso, torpe e usado pelo general Villas Boas e seu grupelho para justificar a necessidade de um golpe que nos legou o atual estado de coisas. Infelizmente, há os que compram termos da direita, para vender na feira dos desinformados. Reproduzi-los, só coloca lenha na fogueira. “Revanchismo” é o chavão dos covardes.
DENISE ASSIS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)