Em seu livro recém-lançado “Dano colateral” (selo Objetiva da editora Companhia das Letras, 352 págs.), a jornalista Natalia Viana mapeia e expõe a impunidade dos militares nos casos que resultaram em 35 mortos civis em operações urbanas que tiveram a participação do Exército e da Marinha de 2011 a 2019. Basta dizer que nenhum militar foi condenado até o momento por nenhuma dessas mortes. Na conta não entram os casos que culminaram em feridos graves, como o do músico e estoquista Vítor Santiago Borges, que teve a perna amputada após ser atingido a tiros por militares do Exército, no Rio.
Natalia, diretora da multipremiada Agência Pública de Jornalismo Investigativo, vê padrões nos casos que pesquisou. O primeiro é a recusa dos militares em prestar socorro aos civis feridos (“como se vissem as vítimas como criminosos que não merecessem atendimento”). Depois, as versões “estapafúrdias e fracas” que procuram criminalizar as próprias vítimas, quase sempre levantando a tese de que reagiram a um ataque. Em um dos processos citados por Natalia, fala-se até em “legítima defesa imaginária”.
Um terceiro padrão é o papel “extremamente condescendente” da Justiça Militar quando se trata de mortes de civis em operações do tipo GLO (Garantia da Lei e da Ordem). “São coisas que se repetem em todos os casos. O próprio Exército age para encobrir os seus erros e para que seus militares não sejam punidos. Culpabilizam inocentes”, disse Natalia à coluna.
Outro ingrediente comum nos casos, segundo Natalia, é que “as vítimas e as famílias ficam completamente alijadas de qualquer acesso à Justiça”. “A Justiça Militar é muito mais fechada e inacessível do que a Justiça comum. Há histórias de famílias que vão aos quartéis pedir informações e não recebem esclarecimentos. […] As pessoas ficam absolutamente sem recursos para questionar. A Polícia Civil não pode investigar, a Polícia Federal não pode, só quem pode são os próprios militares.”
O levantamento desmonta o argumento usado pelas Forças Armadas para justificar a alteração legal – intensamente criticada, é bom que se lembre, pelas organizações de direitos humanos e pelo Ministério Público Federal – autorizada em 2017 pelo então presidente, Michel Temer (MDB). Ele sancionou um projeto de lei enviado pelo Congresso que transferiu para a Justiça Militar o julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares quanto em atividade operacional, em especial nas GLOs.
De 1996 a 2017, o julgamento desses casos foi realizado por tribunais de júri da Justiça comum. Enormemente empoderados em 2017, por razões que o livro também destrincha, os militares conseguiram aprovar a alteração. O projeto de lei foi relatado pelo senador Pedro Chaves (MS), do partido de direita PSC, e contou com o apoio entusiasmado e decisivo do STM (Superior Tribunal Militar), do MPM (Ministério Público Militar), dos comandantes militares e do Ministério da Defesa.
Quando escrevi sobre a aprovação desse projeto, em 2017, o Ministério da Defesa argumentou, em nota, que casos do gênero seriam melhor tratados por uma “justiça especializada”, isto é, a militar. Disse ainda que o processo em Justiça comum “pode prejudicar definitivamente a carreira do militar, seja pela demora no julgamento, seja pelo risco jurídico de não compreensão das peculiaridades de sua atividade e de seus atos no exercício da missão militar”. O Exército garantiu que haveria “maior celeridade” nos processos.
A Anistia Internacional havia ponderado, na época, que as Forças Armadas há muito demonstravam não prezar pela apuração rigorosa de crimes do gênero em suas fileiras. O maior exemplo havia acabado em 1985. Ao longo de 21 anos e depois da ditadura militar (1964-1985), as Forças Armadas não reconheceram torturas em seus prédios e não levaram a julgamento nenhum oficial por tortura, sequestro e desaparecimento das mais de quatro centenas de presos políticos no período. Sem contar os mais de 8,5 mil indígenas mortos no período por ação do Estado brasileiro, segundo concluiu a CNV (Comissão Nacional da Verdade), e mais centenas de trabalhadores rurais e outras vítimas diretas e indiretas da ditadura.
O país tinha visto um gravíssimo antecedente já na democracia. Em novembro de 1988, semanas depois da promulgação da Constituição, tropas do Exército chacinaram três operários (William Fernandes Leite, de 22 anos, Walmir Freitas Monteiro, de 27 anos, e Carlos Augusto Barroso, de 19 anos) que faziam uma greve na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) em Volta Redonda (RJ). Eles lutavam, com outros 20 mil operários, por reajuste salarial e outros direitos trabalhistas.
William e Walmir foram mortos com um tiro de fuzil cada um e Carlos teve o crânio esmagado. Em maio do ano seguinte, um monumento erguido em homenagem aos mortos, de autoria do arquiteto Oscar Niemeyer, foi atingido por uma grande explosão que derrubou a estrutura de 15 toneladas de concreto armado, horas depois de sua inauguração no Dia do Trabalho de 1989.
Segundo o relatório final da Comissão Municipal da Verdade D. Waldyr Calheiros, de Volta Redonda, três bombas explodiram e uma não chegou a ser detonada. As quatro “foram confeccionadas por um tipo de explosivo plástico denominado plastex, fabricado exclusivamente pela fábrica Presidente Vargas da Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel), de controle do Exército”.
O relatório lembra ainda que, em 1998, o capitão do Exército Dalton Roberto de Melo Franco declarou à Justiça Militar que havia sido abordado, em 1989, por um coronel do Batalhão das Forças Especiais para que realizasse o atentado a bomba contra o monumento em Volta Redonda. Dalton disse que se recusou e, por isso, passou a sofrer retaliações.
Nem o massacre nem o atentado a bomba resultaram na condenação de militares. O general José Luís Lopes da Silva, que em 1988 era o comandante das tropas da 1ª Brigada de Infantaria Motorizada do Exército que reprimiu a greve da CSN, segundo a Comissão Municipal da Verdade, nunca sofreu processo ou condenação. Pelo contrário, ele foi indicado em 1999 ao cargo de ministro do STM pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Numa discussão acalorada no Senado quando da sua indicação, o general declarou, sobre a operação na CSN: “Sob o ponto de vista militar foi plenamente bem-sucedida”.
De acordo com um documento que a Chefia de Operações Conjuntas do Ministério da Defesa me enviou em janeiro de 2019 em resposta a um pedido que fiz pela Lei de Acesso à Informação, de 1992 até aquela data haviam ocorrido no Brasil 183 operações do tipo GLO.
Ao longo de todo esse tempo e de todas essas operações, teriam as Forças Armadas mudado seu comportamento sobre apuração e punição dos crimes cometidos contra civis? Teria o Exército aprendido algo desde 1985, com o fim da ditadura, ou desde 1988, com o massacre na CSN?
A leitura de “Dano colateral” permite concluir que não. Nada.
“O Exército age para proteger os seus, quando é um caso politicamente relevante. Tem muito soldado que é punido porque é encontrado com maconha, por exemplo. Mas quando se trata de acusações mais sérias contra oficiais, não é assim… […] Sem dúvida nosso Exército não aprendeu que deve se subjugar ao poder civil. O Exército não pode ser o seu próprio monitor. Precisa de forças externas que o monitorem. O Exército não é o melhor juiz de si mesmo. Eu relatei os casos que estão mais bem documentados. Há muita documentação sobre que aconteceu. E muito claramente erros que devem ser punidos”, disse Natalia ao UOL.
RUBENS VALENTE ” SITE DO UOL” ( BRASIL)