E, assim, em defesa dos “invisíveis”, o STF sancionou a política de Barros, em cima de uma lógica canhestra: todo mundo que recorresse à Justiça era enquadrado como privilegiado, os “visíveis”, pretendendo tirar recursos dos “invisíveis”, uma escolha de Sofia macabra.
Em maio de 2016, o senador Romero Jucá fez as declarações premonitórias.
– É preciso botar o Michel num grande acordo nacional. Com o Supremo, com tudo”.
Seu interlocutor Sérgio Machado concordou:
– Com tudo. Aí parava tudo.
– É. Delimitava onde está, pronto.
A sabedoria do Centrão nunca foi desmentida. Sabia que no Brasil tudo se compra e tudo se vende, e as manifestações morais são apenas armas utilitárias, para disputas. Sabiam que a queda de Dilma Rousseff aplacaria de vez o ímpeto punitivista que se apossava da mídia, do Ministério Público Federal e do Judiciário.
Michel Temer entrou, nomeou como Ministro da Saúde Ricardo Barros, deputado federal paranaense com uma longuíssima história de suspeitas. Ele é de Maringá, terra de Sérgio Moro. Sua base de atuação inicial era o Paraná, base da Lava Jato.
Os inquéritos contra ele continuaram caminhando burocraticamente e ele pode, sem empecilhos, levar adiante a mais nefasta operação de corrupção da história, roubando em medicamentos para doenças graves. Desalojada da Petrobras, praças ao beneplácito dos sistema de controle, o Centrão descobria a nova mina de ouro nos negócios da saúde.
Fez à luz do dia, à luz de decretos públicos. Tirou remédios essenciais para tratamento de crianças com leucemia e colocou no lugar vacinas sem eficácia, em negócios nebulosos com laboratórios chineses, e sempre com a intermediação de empresas ligadas a Barros.
Não adianta o bravo MPF apresentar o inquérito solitário de uma colega contra Barros. O esquema Lava Jato consistia em vazamentos selecionados, em bater bumbo na mídia, crucificando os alvos. Por que Barros, cuja atuação era de pleno conhecimento de Moro, Dallagnol, conseguiu passar incólume, roubando remédios que iam para o tratamento de crianças com leucemia?
Onde estava a brava CGU (Controladoria Geral da República), disposta a criminalizar qualquer irregularidade administrativa das universidades públicas? E a Polícia Federal, que colocou mais de uma centena de agentes para prender professores, por meros problemas administrativos, e em casos menores de corrupção na vigilância sanitária? E a mídia que, apesar de reportagens esparsas sobre Barros, permanecia muda e queda, logo ela que criminalizou até compra de tapiocas e endossou todos os factoides públicos desde 2005?
Há quatro anos, caiu nas mãos de Barroso uma ação contra Ricardo Barros, de um paciente da Síndrome de Hunter, que não tinha mais acesso ao medicamento Elaprase. Um juiz federal da Bahia determinou que a União adotasse providências para garantir o medicamento. A sentença foi ignorada. Barros foi defendido pela Advocacia Geral da União (AGU). O juiz determinou, então, o comparecimento de Barros a uma audiência, para justificar o descumprimento da decisão.
A AGU apelou para o Supremo, e Barroso concedeu a liminar, sob o argumento de que o Ministro já teria adotado as medidas necessárias para o fornecimento do medicamento. Aceitou o argumento, simples assim, sem nenhuma vistoria, nenhum pedido de auditoria. Mas, grande humanista do bem, defendeu ardentemente “a liberdade de locomoção do paciente”. O paciente, no caso, era o Ministro Barros.
Barros ia tecendo sua teia. Suspendeu a compra de remédios essenciais e assinou um contrato com a Global Gestão de Saúde para fornecer similares. Pagou na frente, não recebeu, deixando milhares de pacientes sem acesso a medicamentos essenciais ou com acesso a medicamentos fajutos, sem nenhuma eficácia. A única saída das vítimas era a Justiça. E a Justiça falhou.
Segundo Fux alegou na época:
“O Supremo deve harmonizar direitos constitucionais porque deve considerar o limite da capacidade contributiva. Precisamos de uma interpretação clara se será dado tudo para todos ou se será tudo que tem no SUS para todos”, afirmou. “Não (será tudo para todos). Vai ser uma solução sob medida. O Supremo será o artesão na solução desse caso. Vai ser uma decisão de alfaiate.”
Um alfaiate ceifador de vidas, colocando tantos empecilhos às ações judiciais, ainda que endossadas por entidades médicas, que, na prática, tornava-as ineficazes. Aceitaram o argumento de Ricardo Barros, em defesa de “quem paga impostos”. Barros defendeu que o julgamento levasse em conta não apenas o cidadão que precisa de medicamentos, mas o que paga impostos.
“— O Judiciário não é o melhor locus para a tomada de decisão em saúde, nem na formulação de políticas públicas. Os recursos são limitados. A vida e a saúde de quem tem condições de ir à Justiça não é mais importante do que a vida e a saúde dos invisíveis ao sistema de Justiça — afirmou o ministro, ressaltando que, quando compra medicamentos por decisão judicial, de forma “pingada”, o poder público perde o poder de barganha e acaba adquirindo o produto pelo preço de mercado, sem o desconto possível em grandes compras”.
E, assim, em defesa dos “invisíveis”, o STF sancionou a política de Barros, em cima de uma lógica canhestra: todo mundo que recorresse à Justiça era enquadrado como privilegiado, os “visíveis”, pretendendo tirar recursos dos “invisíveis”, uma escolha de Sofia macabra.
Afinal, como disse o próprio Barroso em palestra no Insper, na época,
“Não existe uma solução fácil ou barata, mas nós vamos ter que reduzir drasticamente o Estado brasileiro de uma maneira geral”.
É evidente que abrir muito poderia dar margem a abusos. Mas sequer se pensou na possibilidade de uma auditoria no sistema de compras da Saúde, já submetida à mais fatal organização criminosa que já se apossou de políticas públicas. Afinal, o governo Temer era intocável, porque qualquer dúvida sobre ele colocaria em xeque os altos propósitos do impeachment. E Temer, o intocável, era o caminho para o desmonte.
Esse é o retrato escabroso de um país cujos poderes perderam totalmente a sensibilidade social.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)