Um servidor público, acompanhado de um deputado federal, seu irmão, foi ao presidente da República denunciar um caso de corrupção. O presidente demonstra saber da história e até diz: “É coisa do Ricardo Barros”. Ou seja, acobertou um crime, deixando de tomar providências. Prevaricou, e isso é crime.
O senador Randolfe Rodrigues antecipa que a CPI da Covid poderá, antes mesmo da conclusão de seus trabalhos, denunciar Bolsonaro ao STF por crime de prevaricação com base no artigo 86 da Constituição. Neste caso, a Câmara teria que autorizar o STF a processar o presidente pela maioria de 2/3 dos votos, ou 342, ocorrendo imediatamente o afastamento. Michel Temer barrou processos semelhantes, em duas oportunidades, com apoio do Centrão, a um preço elevado, em todos os sentidos. Apesar da venalidade do Centrão, é incerto que Bolsonaro, um presidente que sangra enquanto vocifera, teria condições políticas para repetir esse feito hoje.
A CPI levou o país a uma nova realidade política nesta sexta-feira. O nome do deputado e líder do governo na Câmara só foi arrancado no final do depoimento dos irmãos, o deputado e o servidor. Após o senador Alessandro Vieira abalar moralmente o deputado Luis Miranda, apontando sua falta de coragem para declinar o nome do político citado por Bolsonaro, ele superou a “amnésia” e, na inquirição seguinte, a da senadora Simone Tebet, confirmou que foi o do líder do governo.
O crime de prevaricação de Bolsonaro está claramente configurado. Só ontem ele disse que a PF iria abrir inquérito sobre a compra da vacina Covaxin. O encontro com os irmãos Miranda foi em 20 de março. Mais ainda. No primeiro momento, o governo reagiu ameaçando os denunciantes, acusando-os de produzir a maior fake news de todos os tempos, e de terem fraudado um documento real. Mesmo recebendo ameaças eles compareceram.
Há quem pense que o crime é de responsabilidade. Atentar “contra a probidade administrativa” é uma das situações previstas pelo artigo 85 da Constituição, que define tais crimes quando cometidos pelo presidente da República.
Mas há muita água suja para correr nos próximos dias. Por hora, vamos juntando as pontas dos muitos crimes cometidos enquanto os brasileiros morriam, por falta de vacinas, de leitos, de oxigênio e, principalmente, por acreditarem que poderiam se expor, deixar de usar máscara e se aglomerar, pois havia um remédio que poderia curá-los. Um “tratamento precoce” comprovadamente ineficaz, à base de medicamentos com a cloroquina, com os quais o governo gastou milhões em compras que também podem ter envolvido corrupção. Agora muitas peças estão se encaixando no quebra-cabeças.
Crime duplo no negócio com as vacinas
Eu sempre disse, na TV247, que a inaceitável negligência do governo na compra de vacinas devia envolver corrupção, mais que incompetência ou puro negacionismo. A CPI foi trazendo sinais disso até que chegamos ao caso da Covaxin.
A demora na aquisição da Coronavac e da Phizer parece ter sido calculada. Com estes dois fornecedores, não havia intermediários. E não havendo oportunidade para negócios, para a obtenção de propinas, as compras foram dificultadas ao máximo. No caso da Coronavac, com a implicância ideológica de Bolsonaro, porque é chinesa e tinha o governador Dória como patrocinador. A da Phizer, porque era cara, depois porque o contrato previa uma cláusula que exigia mudança legislativa, embora o governo pudesse ter proposto logo a solução através de uma medida provisória. Não o fez. O ex-secretário da SECOM, Fabio Wajngarten, parece ter tentado ser o facilitador da Phizer mas não teve êxito. E assim, foram retardando as compras possíveis, à espera de um bom negócio.
Quando veio a oferta do consórcio Facility, organizado pela OMS, o governo brasileiro empurrou o assunto com a barriga, só aderindo na última hora. E podendo demandar vacinas para porcentual maior da população, optou pelo mínimo, 10%. Com a OMS também não haveria negócio. Resta saber se houve algum na compra da Astrazeca/Oxford.
Já a compra da Covaxin foi feita rapidamente, e superando todos os inconvenientes, como o alto preço, o longo prazo de entrega e a não aprovação prévia da Anvisa. E, diferentemente das outras, teve como intermediadora a empresa Precisa, que vende de tudo e não fabrica nada.
E com a demora, que chegamos a pensar que era fruto só da incompetência e do negacionismo, morrerarm tantos brasileiros que poderiam ter sobrevivido se tivessem sido vacinados a tempo. O crime é duplo. Entre as 400 mil mortes “excessivas”, segundo o cientista Pedro Hallal, boa parte é composta pelas que foram causadas pelo atraso na vacinação.
E não adianta Bolsonaro ficar dizendo, como ontem, que a compra não foi efetivada. No governo, uma compra acontece quando é emitida a nota de empenho. E esta, no valor de R$ 1,6 bilhão, está no SIAF (sistema de contas do governo) desde 22 de fevereiro. E isso permitiu a assinatura do contrato no dia 25.
Quem é Ricardo Barros
“Isso é coisa do Ricardo Barros”, disse Bolsonaro ao deputado Luis Miranda. Todo mundo sabe no Congresso que o líder do governo opera negócios no Ministério da Saúde.
Seu partido, o PP, era da base do governo Dilma Rousseff. Quando a articulação do golpe do impeachment avançou na Câmara, mas o governo ainda poderia reunir 172 votos (1/3) para barrá-lo, o presidente do partido, senador Ciro Nogueira, apresentou a Dilma a condição para que o PP votasse contra a autorização da Câmara para a abertura do processo: que ela entregasse o Ministério da Saúde ao partido, para ser ocupado por Ricardo Barros.
Dilma não topou. Ela sabia o que isso significava. Não iria salvar o mandato entregando a pasta aos negocistas da saúde. Ciro Nogueira saiu do Planalto e foi ao Jaburu conversar com o vice que conspirava, Michel Temer, que aceitou o negócio. E assim, dias depois a Câmara autorizou o impeachment, Dilma foi afastada, Temer tomou posse interinamente (pois o Senado ainda iria julgar Dilma), trocou o ministério e nomeou Ricardo Barros para a Saúde.
Em 2017, em sua gestão, o Ministério fez uma compra de R$ 20 milhões da Global (que tem a Precisa como maior acionista). Os remédios para as farmácias de alto custo (que fornecem remédios para Aids e algumas doenças raras ou crônicas) nunca foram entregues. Arrasta-se na Justiça uma ação de ressarcimento do ministério.
Quando era ministro, ele nomeou Regina Célia Silva, que segundo o funcionário Luis Ricardo Miranda, foi quem avalizou a importação da vacina Covaxin e o pagamento antecipado de US$ 45 milhões mediante a entrega de um lote inicial, devendo este pagamento ser feito a uma terceira empresa, a Madison Biotech, aparentemente empresa de fachada com sede em Cingapura. Suspeita-se que este pagamento representasse o “pixuleco” envolvido na compra. Deviam ser 3 milhões de doses, mas a tal Invoice falava em apenas 1.300. Miranda discordou e houve a correção.
Barros tentou algumas vezes ser ministro da Saúde no governo Bolsonaro, por indicação do Centrão. Não conseguiu mas, como líder, ampliou sua influência na pasta. Foi ele que liderou a revolta do Centrão contra o então ministro Pazuello, que agora tem muito o que explicar.
Pazuello também prevaricou
Quando deixou o cargo, o general Pazuello disse que estava mesmo cansado do cargo, cansado de pressões políticas, de gente que andava até querendo “pixuleco”.
Depois, quando foi inquirido na CPI, desconversou. Estava falando de emendas com “restos a pagar”, recursos do ano anterior, que os deputados ficavam brigando para serem liberadas. Agora ele terá que voltar à CPI para explicar muita coisa. Se ele sabia dos “pixulecos” e não denunciou, também prevaricou.
Mas há militares de sua equipe que parecem envolvidos no negócio com a Precisa. O sevidor Luis Ricardo Miranda citou militares, e especialmente um coronel, talvez o ex-secretário-executivo Elcio Franco, que teriam exercido pressões “atípicas e excessivas” para que ele não criasse caso com a importação da Covaxin. Estaria aí uma aliança espúria entre militares e o Centrão. Franco esteve ao lado do ministro Onyx Lorenzoni no pronunciamento raivoso e ameaçador de quinta-feira à noite.
Preparemo-nos para semanas muito intensas. Agora a CPI tem seu caso mais importante para destrinchar, tem Bolsonaro em seu foco direto.
Bolsonaro e o Centrão estão amarrados um ao outro neste caso. A dúvida é se o Centrão em algum momento tratará de se salvar jogando Bolsonaro ao mar. Ao impeachment ou ao processo por crime comum no STF.
TEREZA CRUVINEL ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)