Na memória não guardo a época e as circunstâncias em que conheci pessoalmente Ricardo Carvalho. Não sei se foi apenas no início dos anos 80, quando me mudei para São Paulo e por ali fiquei até 1986. Pode ter sido antes, pois tenho nítida lembrança que, ainda em meados dos anos 70, quando a sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB se alojava no prédio denominado Vila Venturosa, no bairro da Glória, Rio de Janeiro, eu passei a acompanhar suas reportagens na Folha de S.Paulo.
Ele e Fernando Fosch, então repórter da sucursal do Rio (hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Rio), faziam a cobertura da igreja católica e dos direitos humanos. Sim, houve época em que os meios de comunicação destacavam setoristas para isso e Ricardão (forma como os amigos o tratavam, distinguindo-o do Ricardo Kotscho) se especializara nos dois temas.
Eram assuntos que me interessavam. À época, mesmo contratado da Editora Bloch, escrevia – escondido dos editores da revista Manchete – para os jornais Movimento e Pasquim, e com frequência tratava estes temas.
Primeira Lista de desaparecidos – Na Folha, coube a Ricardão divulgar, em 30 de março de 1978, a primeira lista de desaparecidos políticos. Anteriormente (26/03), ele informara, também com exclusividade, o pedido do presidente norte-americano para um encontro com dom Paulo, na viagem que faria ao Brasil no final daquele mês.
O encontro surgiu a partir de uma carta encaminhada pelo cardeal relacionando 23 presos políticos que foram dados como desaparecidos. Na verdade, assassinados nos porões da ditadura sem que seus corpos jamais tenham sido entregues a familiares. Tratava-se da primeira lista pública de presos assassinados pelo regime militar. Era uma lista ainda incompleta, mas foi a primeira elaborada por dom Paulo e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, um defensor dos direitos humanos ao lado do cardeal católico de São Paulo.
Entre os desaparecidos estavam dois cidadãos com dupla nacionalidade: Paulo Stuart Wright, irmão do pastor e Stuart Edgart Angel Jones, um estudante universitário filho do norte-americano Norman Jones com a estilista Zuzu Angel.
Carona de Carter impediu a viagem de Ricardão com dom Paulo
A notícia da carta do cardeal ao presidente com a relação dos 23 nomes de desaparecidos Ricardão estampou nas páginas da Folha no dia em que Carter, após passar por Brasília, desembarcaria no Rio de Janeiro. Ali encontraria dom Paulo e mais representantes da chamada sociedade civil, na manhã de seu último dia no país.
Foi nesse 31 de março de 1978 que tive a sorte de dar carona para dom Paulo, logo após ele deixar a limusine do presidente dos EUA. Em sua passagem pelo Rio, Carter hospedou-se na residência oficial da prefeitura do Rio de Janeiro, a Casa da Gávea Pequena, no Alto da Boa Vista. Ali, na manhã daquela sexta-feira, ele recebeu os representantes da sociedade civil brasileira (*), irritando profundamente o então presidente general Ernesto Geisel. Certamente a irritação era pela presença de dois fortes opositores ao regime militar: dom Paulo e Raymundo Faoro, então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ao final do encontro, Carter, em uma deferência especial, convidou o cardeal de São Paulo a acompanha-lo no caminho da Base Aérea, na Ilha do Governador.
Ricardão orgulhava-se, merecidamente, dos livros que escreveu sobre dom Paulo
Criou uma oportunidade para conversarem apenas na presença da primeira dama, Rosalyn. Oportunidade em que, como o próprio Ricardão relatou em seus livros, dom Paulo fez uma inesperada consulta ao presidente:
“É verdade o que aqui se conta, que os Estados Unidos, ou melhor, a CIA, ensinou os nossos militares a torturarem os presos sem neles deixarem marcas?”
Transcrevendo o que o próprio cardeal relatou em um de seus livros, Ricardão registrou a resposta, pela versão de dom Paulo:
“Carter se voltou para a esposa Rosalyn e lhe perguntou numa altura que me permitisse ouvir: o que posso responder a uma pergunta tão justa quanto incômoda? Rosalyn então sugeriu ao presidente Carter: diga ao senhor cardeal de São Paulo que isso pode ter acontecido”.
Já na Base Aérea, ao deixar o carro do presidente, dom Paulo confessou-se perdido e preocupado em chegar ao aeroporto do Galeão, onde embarcaria para São Paulo. O convite feito pelo presidente dos Estados Unidos acabou prejudicando o próprio Ricardão, que estava no aeroporto com o talão de embarque ao lado de dom Paulo. Mas o passeio na limusine presidencial fez o cardeal perder o voo e o repórter perdeu a viagem com a fonte. Dom Paulo embarcou em outra aeronave.
Opção preferencial pelo Fusca – Na Base Aérea, ao se dizer perdido, dom Paulo recebeu minha oferta de carona. A ela se sobrepôs a de uma colega, de O Estado de S.Paulo, que se deslocava junto à comitiva americana em um luxuoso Ford Galaxie com motorista. O cardeal, diante das ofertas de carona em um Fusca e em um Galaxie, optou pela minha oferta. Foi, como Ricardão classificou ironicamente mais tarde, uma “confirmação da opção preferencial pelos pobres”.
Nos anos 80, ao mudar-me para São Paulo, encontrei Ricardão como diretor da seção da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no estado. Eu já era sócio da entidade e lembro de ir algumas vezes na sede paulista, localizada na Rua Augusta. Foi um período em que nos tornamos amigos. Jamais trabalhamos em uma mesma redação, nas em alguns momentos convivemos.
Depois, afastei-me de São Paulo (1986) retornando ao Rio e poucas vezes o encontrava. Mas, em 2009, sabendo da carona ao cardeal no meu Fusca, procurou-me para registrá-la para a posteridade no primeiro de seus livros sobre dom Paulo – “O Cardeal e o Repórter – histórias que fazem História” (Global Editora, 2010).
Anos após, ao escrever o segundo livro – “O Cardeal da Resistência – As muitas vidas de dom Paulo Evaristo Arns” (Editora Instituto Vladimir Herzog – 2013) – encomendou-me o texto relatando o fato com mais detalhes do que no primeiro livro.
Ele engajou-se no resgate da ABI
Por iniciativa de Ricardão, Paulo Caruso desenhou a charge da chapa “ABI Luta Pela Democracia”
Passaram-se os anos e nos encontrávamos esporadicamente, nas minhas idas à capital paulista. Foi no final de 2018 que o cacei para incorporá-lo ao grupo de jornalistas que decidiu resgatar a centenária ABI. Montávamos a chapa que levou Paulo Jeronimo Sousa à presidência da entidade.
Ricardão topou na hora, encarregando-se de nos ajudar a atrair outros colegas de São Paulo. Mais ainda, com a ajuda de Juca Kfouri, trouxe-nos o apoio do Instituto Vladimir Herzog, através de seu presidente, Ivo Herzog. Foi sua ainda a iniciativa de conseguir com Paulo Caruso a charge que retratava a chapa ABI: Luta Pela Democracia, vitoriosa no pleito de 2019. Com essa vitória, ele se tornou o representante da diretoria da entidade no estado.
Algumas divergências nas formas de encarar as lutas políticas acabaram nos afastando. Chegamos até a nos desentender sem, contudo, perdermos o respeito um pelo outro. Até soube que ele continuava falando bem de mim pelas costas.
Ainda no início da pandemia, fez questão de buscar meu depoimento para uma série de programas que gravou com diversos colegas expondo o trabalho em home office. Publicou as reportagens com os áudios dos depoimentos no site da ABI na série “Jornalistas em Quarentena”.
Depois disso, nossos encontros virtuais ocorreram em reuniões da entidade. Soube que havia adoecido, tinha se internado, mas já estava de volta à sua casa. Por isso, receber a notícia de sua “passagem” no domingo (20/06) à tarde, me surpreendeu e me assustou.
Foi difícil acreditar que em uma época em que muitos se vão por conta da Covid, ele nos deixou por um problema no pâncreas. Aos 72 anos, prestes a fazer 73 (03/07). Jamais imaginaria uma despedida tão rápida, de alguém que não deixava transparecer qualquer problema de saúde.
Ricardão, assemelhando-se comigo, sempre se declarou acima de tudo um repórter. Não gostava de outros títulos, nem mesmo o de escritor, apesar dos livros editados (também escreveu “O Maestro”, biografia de João Carlos Martins) e de ter dirigido inúmeros documentários.
Foi sim um excelente repórter. O acervo da Folha de S.Paulo está aí como prova disso. Também nas demais redações por onde passou – Jornal da República, IstoÉ, migrando depois para a televisão, onde foi editor-chefe do Globo Repórter, apresentador do Jornal da Record, diretor de jornalismo da TV Cultura e o primeiro comentarista de sustentabilidade, no Jornal da Gazeta – deixou sua marca profissional.
É mais um dos bons colegas que nos deixam antes do que prevíamos. Pelo que testemunhei, era também um dedicado amigo, sempre disposto a ajudar aos demais. Por isso tudo, fará falta. Ainda mais em um país que estão rareando os bons profissionais, os bons amigos e as pessoas de bem.
(*) Foram recebidos pelo presidente Jimmy Carter os cardeais do Rio de Janeiro, Eugênio Salles, e de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, o empresário José Mindlin, o presidente do BNDES, Marcos Viana, o presidente da OAB, Raymundo Faoro e o diretor de O Estado de S.Paulo, Júlio de Mesquita Neto.
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