Com a mesma leviandade com a qual o então deputado federal e ex-capitão do Exército bradava na campanha eleitoral de 2018, que “iria abrir a caixa preta do BNDES aos empresários amigos do PT”, o agora presidente Jair Bolsonaro se desculpou, na última 5ª feira, 16 de junho, em Brasília, perante apoiadores no cercadinho montado no Palácio da Alvorada sobre uma das vertentes que o ajudaram a se eleger: o combate sistemático à corrupção, do qual o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social seria um dos pilares, ao lado da Petrobras. O presidente da República admitiu estar convencido agora de que não existe nenhuma caixa-preta no BNDES: “Eu pensava que era. Não foi caixa-preta, na verdade. Está aberto. Eu também pensava que era caixa-preta, mas está disponível, no site do BNDES, todos os empréstimos feitos para outros países”, disse ele, sem deixar, porém, de criticar os adversários petistas.
Como se recorda, essa crítica foi um dos motores da campanha de Jair Bolsonaro (então no PSL) à presidência a fim de revelar supostos esquemas dos governos petistas para escoar dinheiro público para países e organizações ligadas ao “Foro de São Paulo”. Na gestão de Paulo Rabello de Castro, no governo Temer, foi feito um amplo levantamento das operações do BNDES de 2004 até 2018 e nada de irregular foi apurado nas operações em si, afora uma concentração exagerada de empréstimos para o grupo da Construtora Norberto Odebrecht (incluindo a petroquímica Braskem, da qual controla 51% das ações e a Petrobras tem 47%) e outras empreiteiras. Mas era o tempo das obras do PAC. Tudo o que uma prefeitura ou um estado fazia e tinha alguma co-participação federal (seja por financiamento do BNDES, Banco do Brasil, Caixa ou outro banco ou órgão federal) era embrulhado no PAC, palanque eleitoral que ajudou a eleger o “poste” Dilma Roussef, a “mãe do PAC”, em 2010.
Os grandes tomadores de crédito do banco eram a Petrobras (através da qual empreiteiras e fornecedores superfaturaram à vontade como se apurou na Lava-Jato) e a Embraer, já que os aviões exportados precisam ter financiamentos a longo prazo para superar a concorrência. As empreiteiras que participaram de licitações no exterior (África, América Latina e Caribe) eram as beneficiárias. Mas não as tomadoras diretas dos recursos, concedidos aos países contratantes. As condenações de políticos nesses países, do qual o Peru e Angola são os maiores exemplos, ao lado de Colômbia, Panamá, México, Gana entre outros, confirmam a reprodução dos esquemas de corrupção domésticos detectados pela Lava-Jato. Ainda assim, por insistência de Bolsonaro que demitiu o então presidente Joaquim Levy acusando-o de fazer pouco empenho para “abrir a caixa preta”, ainda em 2019, na gestão de Gustavo Montezano, o banco estatal chegou a gastar R$ 48 milhões na auditoria dos contratos de empréstimos a empresas e governos estrangeiros, mas não encontrou indícios de irregularidades.
No site do BNDES é possível ver o ranking dos beneficiados de 2004-06, de 2007-09 (governos Lula), de 2009-12 (Lula e Dilma), 2013-15 (Dilma), 2016-18 (Temer) e 2019-20 (Bolsonaro). No total acumulado (2004 a 2010), a Petrobras lidera com R$ 62,4 bilhões, mas os créditos minguaram desde a Lava-Jato. Somados os financiamentos a subsidiárias da Petrobras, o BNDES, com aportes do Tesouro, desembolsou mais de R$ 100 bilhões. A Embraer é a 2ª tomadora, com R$ 51,2 bilhões. A seguir estão a Norte Energia (consórcio de empresas do grupo Eletrobrás, Cemig/Light, empresas de energia e fundos de pensão, que levantou R$ 23,388 bilhões), e a Vale (R$ 23,323 bilhões). A CNO, holding da Odebrecht vem em 5º, com R$ 14,899 bilhões, à frente do Tesouro de São Paulo (R$ 14,484 bilhões). Com os créditos à Braskem e outras subsidiárias da Odebrecht, o grupo baiano, em recuperação judicial e regime de emagrecimento forçado, levantou mais de R$ 22 bilhões no BNDES (fora Caixa, BB e operações indiretas para projetos de que era sócio).
Mas até nas operações com os chamados “campeões nacionais” – grupos empresariais escolhidos para serem grandes campeões brasileiros no comércio exterior (repetindo a escolha dos grupos que o BNDE- sem o S, acrescentado na Nova República, chamados para pilotar projetos de substituição de importações que ajudassem o país (então só com 15% de produção própria de petróleo) a superar a crise de 1973, quando os preços do barril mais do que triplicaram, quase jogando na lona o chamado “milagre brasileiro” – não se descobriu as irregularidades propaladas. O noticiário desta semana, com os movimentos dos grupos Marfrig, que assumiu posição de 31% nas ações da BRF (fusão da Sadia e Perdigão) e JBS para levar mais proteínas de carnes bovinas, suínas, aves ou produtos veganos às prateleiras dos supermercados dos quatro cantos do mundo, provou o tino do banco para operações de fomento. Mas pessoas em cargos importantes no BNDES tiveram contas bloqueadas quando se procurava pelo em ovo.
A mudança após a Lava-Jato e o governo Bolsonaro é interessante. Multiplicaram-se empréstimos a empresas de fontes alternativas de energia (eólica e solar, sobretudo). Não se sabe a tradição de muitas delas. Espera-se que o BNDES tenha mantido o padrão de examinar detidamente a viabilidade dos projetos antes do OK. O maior tomador de créditos no governo Bolsonaro, com R$ 5,005 bilhões, é a Yaborã Indústria Aeronáutica S.A. O volume é tal que ela figura como a 36ª devedora numa lista dos 50 maiores tomadores de crédito do BNDES. Mas não imagine pelo em ovo, caro leitor. Yaborã é o novo nome da Embraer Aviação Comercial, empresa criada em 2018, no final do governo Temer, quando foi aprovada a fusão da Embraer com a gigante americana Boeing. Entretanto, após um ano de tratativas (e de conhecer os segredos da Embraer), atingida pela crise da Covid-19, com uma desculpa esfarrapada, a Boeing desistiu da associação. Assim, para seguir seu voo, Embraer/Yaborã teriam levantado mais de R$ 57,2 bilhões no BNDES.
Com o país superando a macabra cifra oficial de 500 mil mortos pela Covid-19, milhares de os cidadãos foram às ruas, de máscaras, protestar, neste sábado, contra a omissão do governo federal e para pressionar o presidente da Câmara, Arhur Lira (PP-AL) a colher os pedidos de “impeachment” e responsabilidade contra o presidente da República. Jair Messias Bolsonaro, a autoridade máxima do país, o Comandante em Chefe das Forças Armadas, tem procurado se eximir da responsabilidade pelo desastre na gestão. Ou melhor, na descoordenação, sempre acentuada pelo negacionismo, nas atitudes de marcar posição contra o bom senso – o verdadeiro “nós contra eles” que tende a colocar o Brasil à frente dos Estados Unidos em mortos pela Covid, apesar de ter 213 milhões de habitantes contra 329 milhões dos EUA) -, como a condenação ao isolamento, ao uso de máscaras a prioridade em relação ao inócuo “tratamento precoce” com a cloroquina em detrimento do empenho pelas vacinas. Tudo isto está sendo comprovado na CPI do Senado.
Ainda assim, esta semana, em evento com empresários de supermercados e do setor de comércio, em hotel na Barra da Tijuca, quase vizinho à sua residência no Rio de Janeiro, teve o desplante de declarar “que não errou em nada na pandemia”. E ainda insistiu na defesa da cloroquina. Além das milhões de pílulas que ordenou o Laboratório do Exército a produzir, o governo ainda tem encalhe de 2,3 milhões de comprimidos doados pelos EUA, após apelos diretos ao então presidente Trump, que descartara seu uso contra a Covid-19, como a OMS. Para fugir aos “crimes de responsabilidade” aos quais pode ser imputado, Bolsonaro articulou com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) a aprovação da reforma da Lei de Improbidade, de 1992. Da forma como estava aprovada, as sanções draconianas (como as sofridas por um amigo que trabalhou no BNDES), afasta bons quadros do serviço público. E aumenta a burocracia (pelo exame detalhado de pelos em ovos ou “jabutis” em decisões complexas. Mas, da forma como está sendo desenhada a atualização, só mesmo por “deliberada improbidade” ou falha grosseira, um funcionário público pode ser condenado. Só com dolo provado do agente público há improbidade.
Alguém tem dúvida de que a nova Lei da Improbidade, já apelidada de “Lei da Impunidade”, está desenhada para isentar políticos envolvidos como beneficiários dos caixas 2 descobertos na Lava-Jato? Ou, mais diretamente isentar o presidente da República e seus ministros de “crimes de responsabilidade pelas mortes da Covid-19 e pelos atrasos nas compras de vacinas, que estão fazendo falta nesta 3ª onda? Enquanto os Estados Unidos e a Europa abrem a circulação de pessoas nas ruas e ginásios esportivos, aqui tudo está atrasado e nem 13% dos brasileiros tomaram a 2ª dose que imuniza. Mas trouxemos a Copa América para ampliar os contágios e a circulação das novas cepas brasileiras. Nossos vizinhos do Paraguai e Bolívia, que lideraram as delegações de infectados, ao lado de brasileiros prestadores de serviço, vivem situações desesperadoras, com alta mortalidade, por falta de vacinas.
O Site Jota, especializado em assuntos jurídicos, fez um levantamento dos possíveis crimes pelos quais o presidente da República pode ser enquadrado após a investigações e conclusões da CPI do Senado, por atrasar a compra de vacinas, rejeitar o uso de máscaras, condenar as regras de isolamento, tentar a imunidade de rebanho e receitar remédios ineficazes. Segundo o Jota “há fundamentos constitucionais para tanto (art. 58, § 3º), possíveis responsabilidades por crimes comuns ocorridos no âmbito da pandemia”. Seriam os chamados “crimes de periclitação da vida e saúde” (art. 132 do Código Penal), “crimes contra saúde pública” (art. 267 CP), infração de medida sanitária preventiva (art. 268 CP), lesão corporal (art. 129 CP) ou a de mais remota comprovação, o de homicídios mesmo (art. 121 CP). O Jota lista ainda a possibilidade de se cogitar, “além dos crimes inerentes à responsabilização direta da exposição da vida e saúde de brasileiros e brasileiras do presidente (arts. 129 e 132, CP) em inúmeros eventos públicos sem proteção, estimulando a disseminação de vírus e em afronta às determinações sanitárias, também em eventual participação em falsidade ideológica (297, CP). Isso porque o fim, como prova a disseminação de notícia falsa em seu próprio proveito, é sim jurídica e politicamente muito relevante a partir de documento público. Neste ponto, o inquérito do Supremo Tribunal Federal sobre “fake news”, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes é uma pedra no sapato presidencial.
De olho na reeleição de 2022, Bolsonaro já está pensando além da CPI e criando a sua própria narrativa. E prepara o terreno para se defender na Câmara e no Senado. Na votação da privatização da Eletrobrás ganhou bem no Senado. Mas, como o projeto que veio da Câmara teve emendas, será votado novamente pelos deputados no Plenário. Será um teste. Nesta 2ª feira, 21 de junho, um outro flanco de defesa será a eleição de uma lista tríplice de procuradores pelo Conselho Nacional do Ministério Público para ser submetida ao Procurador Geral da República, Augusto Aras. O CNMP é o órgão de controle externo do MP. Aras, cujo atual mandato expira em 26 de setembro, poderia ter mais de um nome na lista final. Aras tem se posicionado para ocupar a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, no STF. Marco Aurélio, que completa 75 anos, tinha anunciado sua saída para 5 de julho, o que anteciparia a sucessão já na próxima semana. Mas preferiu ficar até o aniversário, dia 12 de julho, prolongando o suspense por mais uma semana.
Há três fortes pretendentes ao cargo, do 2º ministro indicado por Bolsonaro: o próprio PGR, Augusto Aras, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins. Com a credencial de ser “evangélico”, uma das características do presidente para a escolha, suas chances diminuíram por ter sido apadrinhado, no passado, pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), o relator da CPI e principal algoz do governo. Martins, que era o candidato do senador Flávio Bolsonaro, se aproximou do centrão do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). O 3º nome é o advogado-geral da União, André Mendonça, que na 6ª feira acompanhou o presidente na visita à Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia, um dos principais apoiadores políticos de Jair Bolsonaro. Mendonça, pastor da Igreja Presbiteriana, atuou na AGU, mais como advogado do governo do que da União (órgão do Estado, assim como a PGR). Defendeu a abertura de igrejas durante a pandemia, em discurso que impressionou negativamente ministros do Supremo, assinou com o próprio nome “habeas corpus” em favor de Abraham Weintraub, então à frente da Educação, e do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.
Pazuello, por sinal, pode ser enquadrado no crime de “putrefação do trato da doença”, o que caracterizaria melhor a responsabilidade do Ministério da Saúde perante o tema. A hipótese de se responsabilizar criminalmente um militar, general três estrelas (Divisão) perdeu força com o “roque” de rei do presidente da República, Comandante em Chefe das Forças Armadas, que não só impediu qualquer punição do Exército à participação de Pazuello no palanque da “motociata” de Bolsonaro no Monumento dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, no mês passado, como o trouxe para um cargo no Palácio do Planalto e impôs ao Exército silêncio de 100 anos sobre a decisão referente ao general Pazuello. Algo como se tudo o que aconteceu ação governamental durante a Gripe Espanhola, de 1914-18, só pudesse ter sido revelado em 2018. Mas já há uma disposição de que sendo militar ainda da ativo, só o Superior Tribunal Militar seria o forum para um eventual julgamento da responsabilidade do ex-ministro da Saúde no morticídio. Mas o presidente do STM, geberal Luiz Gomes de Mattos, já disse, em entrevista à “Veja” em tom ameaçador “que estão esticando demais a corda”, frase a que Bolsonaro recorrer habitualmente, e a clássica “brasileiro precisa saber votar”. E não é que ele parece ter razão…
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GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL) ( BRASIL)