O JORNALISMO BRASILEIRO DESCOBRIU O JORNALISTA

Daqui para diante, o jornalismo avançará em torno da redescoberta da individualidade. A aprovação ao jornalista não dependerá mais da chamada para a manchete principal – forma do aquário definir as prioridades da casa -, mas da aprovação das redes sociais.

Li a excelente análise do Wilson Ferreira sobre a sinuca de bico da Globo e sua tentativa de “humanizar” o jornalismo, apresentando o lado pessoal dos jornalistas.

É curioso essa nova fase do jornalismo.

No pós-ditadura, o jornalismo viveu sua fase de maior liberdade. Os jornais precisavam se legitimar, depois do apoio à ditadura. E as diretas trouxeram um vento novo na opinião pública, uma convergência para o centro democrático. Os jornais passaram a perseguir, então, um espectro maior de leitores de diversas inclinações políticas. E o caminho encontrado foi através dos colunistas, que ganharam liberdade para ousar vôos próprios no mercado de opiniões.

Houve uma nem sempre saudável competição para conquistar leitores. Alguns optavam por análises instigantes, outros, por acenos populistas, praticando o exercício fácil da indignação e do bordão de passar o país a limpo.

A partir da crise generalizada da mídia, em 1999, e, especialmente, a partir do pacto de 2005 em torno do padrão Murdock de jornalismo, houve um enquadramento total e irrestrito do exercício do jornalismo.

Os jornalistas menos enquadráveis, saíram. Os jornalistas dignos, e mais cautelosos, se retraíram. Os oportunistas aderiram. E o jornalismo de esgoto escorreu à vontade, tocado por robôs sem direito a pensamento próprio. O auge foi a vergonhosa cobertura da Lava Jato, onde medo e oportunismo se mesclaram de forma ignominiosa.

A mídia se transformava em partido político, entrava de carona na Lava Jato pensando em ganhar força para enfrentar os grandes grupos multinacionais que estavam a caminho.

Ocorreu o inverso, conforme magistralmente descrito por Wilson Ferreira. A economia foi destruída, emergiu o monstro da Lagoa do bolsonarismo e a mídia foi exposta ao duplo desgaste junto à esquerda e à direita bolsonarista enquanto seu modelo de negócio entrava definitivamente em xeque.

O novo-velho jornalista

Agora, há o fenômeno da humanização do jornalista, descrito pelo Wilson. Chegou-se a ela através de um trajeto tortuoso, no qual o jornalismo brasileiro desceu às profundezas do esgoto. E agora parece emergir novamente.

Obedece à seguinte cronologia:

Fase do jornalismo de ódio

É a que domina o jornalismo na fase inicial do jornalismo de esgoto. Cria-se o mercado e aparecem candidatos de toda espécie. O pioneiro no estilo, Arnaldo Jabor, talentoso, rapidamente foi superado pelos pitbulls puros, destilando grosserias mais apropriados para o público que pretendiam atingir: as futuras hostes bolsonaristas. Cria-se um mercado para o jornalista de ódio, cujos exemplos mais bem sucedidos foram Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, precursores dos YouTubers de direita.

Já as redações passam a ser povoadas por jornalistas-robôs, obedecendo cegamente aos comandos do aquário.

Fase Lava Jato

A entrada da Lava Jato traz uma fase intermediária. O jornalismo de ódio é substituído pelo jornalista-polícia, reeditando um tipo de jornalismo degradante, praticado no auge da ditadura, do jornalista que se identificava tanto com a fonte que passava a atuar como policial.

Substitui-se a truculência anterior por reportagens de textos anódinos a serviço de vazamentos criminosos da Lava Jato. O ódio ficava por conta do leitor.

Transição

Consumado o impeachment, há uma mudança rápida no jornalismo. Os colunistas que se lambuzaram no ódio são afastados e adota-se o estilo liberal inglês: liberal nos costumes, conservador na política e elegante no texto.

É a consolidação da era do jornalista-robô.

Gradativamente alguns jornais começam a ensaiar uma pequena abertura, abrindo espaço para colunistas de uma, digamos, esquerda consentida: esquerda nos fins, direita nos meios. É o pessoal contra a concentração de renda e a favor da flexibilização da legislação trabalhista; contra o aumento da miséria e a favor do fim do BPC (Benefício de Prestação Continuada) na reforma da Previdência. E tratando as teses de participação externa na Lava Jato como “teoria conspiratória”.

Período Bolsonaro

A eclosão do fenômeno Bolsonaro acelera essa busca dos valores perdidos – ainda que devidamente pasteurizados. Abre-se espaço, pela primeira vez, para colunistas que ousavam, ainda que timidamente, questionar o sistema. Direitos humanos entram de novo na pauta e deixam de ser tratados como prática populista. E cada incursão desses colunistas reverbera, traz um público novo, muito além do público-gado criado nos anos de jornalismo de ódio. Jornais e jornalistas começam a redescobrir a relevância do caráter individual de cada jornalista.

Em todo esse período, a resistência veio da chamada imprensa alternativa, as reportagens mais instigantes, os contrapontos mais relevantes, a cobertura crítica da Lava Jato.

Entrada da CNN

A entrada da CNN no mercado brasileiro provoca a mudança final na imprensa empresarial. No padrão norte-americano clássico, os jornalistas são a atração. Cada jornalista expõe seu caráter visando criar empatia com o público. E são tratados como produto principal do veículo.

Enquanto a meta-publicidade da Globonews é uma sucessão de sons ambientes enervantes e de enaltecimento do veículo, na CNN trabalha-se na promoção da imagem dos jornalistas.

Obviamente há limites para a opinião, ainda que mais elásticos que no padrão brasileiro. Não se questiona o mercado, não se questionam os abusos dos grandes negócios públicos. Mas há uma preocupação em apresentar mais que um lado das grandes questões nacionais e em praticar uma isonomia ainda que relativa. E um objetivo permanente de buscar a notícia contextualizada.

Além disso, o novo modelo de negócios pressupõe uma série de subprodutos que dependem da imagem pessoal do jornalista – como podcasts e programetes de vídeo.

Aliás, é curioso como a CNN montou o seu cast. De um lado, excelentes jornalistas veteranos deixados de lado pelas emissoras nos tempos em que a imagem individual de cada jornalista era sufocada pelo figurino único imposto pelo diretor de jornalismo – no caso da Globo, Ali Kamel. 

Só um jornalismo burocratizado para abrir mão de talentos como Sidney Rezende, Carla Vilhena e Márcio Gomes

De outro, um grupo de jovens jornalistas talentosos, provavelmente arregimentados entre setoristas dos grandes jornais em Brasilia, cuja competência estava escondida no modelo burocrático de cobertura dos veículos brasileiros.

A nova competição

Daqui para diante, o jornalismo avançará em torno da redescoberta da individualidade. A aprovação ao jornalista não dependerá mais da chamada para a manchete principal – forma do aquário definir as prioridades da casa -, mas da aprovação das redes sociais.

Há uma melhoria nítida na qualidade da cobertura, especialmente nos canais televisivos, tornando quase insuportável o jornalismo de “achismos” e “opinionismo” vazio que ainda viceja em algumas emissoras.

Mesmo assim, a credibilidade perdida é um cristal trincado da mídia nacional, que acompanhará a mídia brasileira até o final dos tempos. Ou até quando se dispuser a fazer uma autocrítica sincera do período em que violentou os princípios básicos do jornalismo.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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