É emblemático o que ocorreu em Jacarezinho: mais uma entre tantas operações policiais desastradas, mortíferas e ao arrepio da lei? Ou, considerando as alianças táticas e estratégicas entre grupos políticos do Rio e do Planalto Central, a sinalização (simbólica) de um projeto de poder que se impõe pela violência e pelo terror?
Uma análise da carnificina do Jacarezinho dentro do contexto da violência institucional sistêmica do Rio, aparentemente aponta para um fenômeno restrito à política de insegurança pública daquele estado. Afinal, somente em 2021, o Instituto Fogo Cruzado já registrou 30 chacinas — casos em em que três ou mais pessoas foram mortas a tiros em uma mesma situação — na região metropolitana do Rio.
Mas, há outros elementos que podem ser considerados nesse caso específico.
Portanto, propomos ir além de uma análise dessa operação policial. Queremos discutir sobre arranjos políticos que usam da violência, do medo e do terror, objetivando o controle do poder político e estatal.
O uso do argumento de combate ao crime para justificar as chacinas é um indicador do estado de terror, antessala do estado autoritário.
Por outro lado, como lembrou certa feita o sociólogo e fundador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Paulo Sérgio Pinheiro (em entrevista ao UOL, em 2018), “quando falam em crime organizado na favela, é uma piada, porque os organizadores não estão lá. Aqueles são pés de chinelo intermediários; os traficantes moram na Barra ou em Miami”.
Neste artigo apresento duas hipóteses interrelacionadas: (a) o (verdadeiro) crime organizado comanda o estado do Rio de Janeiro e (b) esse experimento de ocupação e domínio do crime é um “laboratório” arquitetado por grupos políticos para o que pretende executar em relação ao estado brasileiro.
Quando observamos o Rio, verificamos, histórica e empiricamente, a construção de um projeto de poder do crime organizado que foi imiscuindo-se nas instituições daquele estado nos últimos anos.
O “laboratório carioca” do crime no controle do estado se concretiza numa coalizão, não necessariamente coesa, mas com intereses comuns, conectando os poderes político, econômico e religioso (representado nesse caso pelas igrejas-lavanderia do dinheiro sujo de diversas fontes do crime, contravenção, drogas, sonegação, etc) com grupos policiais e milicianos.
É importante esclarecer que, apesar do uso corriqueiro, o conceito de crime organizado indica o controle do poder do estado por organizações criminosas.
Quando analisamos o Rio de Janeiro, observamos que o aparato estatal está cada vez mais dominado por prepostos (agentes públicos) de várias dessas organizações.
As relações cada vez mais estreitas entre esses poderosos criminosos que lucram com os tráficos de drogas e de armas e o jogo do bicho; as conexões desses grupos com empresas (inclusive igrejas, que lavam o dinheiro sujo e corrompem agentes públicos) e com vários setores das polícias; as múltiplas relações das milícias com as polícias e outros agentes públicos no domínio de territórios (dado que as milícias já controlam mais de 50% do estado) e por fim, como essas redes criminosas foram se infiltrando no aparelho estatal (com a eleição de seus representantes em cargos nos poderes executivo e legislativo nos municípios e no estado e, através de outros mecanismos adentrando em setores do poder judiciário e do MP) sinalizam que o estado do Rio de Janeiro já estaria dominado pelo crime organizado.
A chacina de Jacarezinho, neste contexto, indicaria essa conexão entre os poderes político, militar (polícias) e econômico (empresas) com as organizações criminosas (milícias, jogo do bicho, grandes traficantes de drogas e de armas) à medida que tal operação de agentes públicos demonstra todo o desdém às regras constitucionais, democráticas e republicanas e aposta na produção do terror e do extermínio como política de segurança (estratégia claramente utilizada por organizações criminosas). Por isso, a certeza da impunidade dos perpetradores da violência institucional, sendo respaldados verbal ou implicitamente pelos representantes dos poderes públicos daquele estado.
O que ocorreu em Jacarezinho seria a parte visível de um iceberg cuja extensão muito maior estaria relacionada ao controle do estado de direito por grupos criminosos.
A operação policial autorizada pelo chefe do Executivo estadual e chancelada pelo MP violou, entre outras, a cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, referente à garantia da proteção à dignidade humana pelo Estado, pois colocou em risco a vida de milhares de pessoas e provocou uma carnificina totalmente evitável.
Ademais, afrontou uma ordem do STF (ADPF 635) que determinou a suspensão de operações policiais durante a pandemia (dado que tais operações, sem efetividade – como apontam inúmeras pesquisas e especialistas em segurança pública -, se constituem numa política de extermínio de negros e pobres periféricos, sem impactos positivos às políticas de enfrentamento às drogas).
Usando da letal e ineficaz estratégia da guerra às drogas (que mata os bagrinhos – facilmente substituíveis – para proteger os tubarões do mercado das drogas e crimes conexos), o estado optou, novamente, pela política que combina “caça ao inimigo interno” seletivamente escolhido (método herdado da ditadura) com a estratégia bélica e panfletária de tirar do foco as mazelas da política de segurança pública daquele estado (que funciona como escudo do crime no poder).
E mais, sinalizou que no Rio há um estado paralelo com suas próprias leis.
Porém, ao chamarmos a atenção para esse eventual projeto de poder do grupo político que domina aquele estado levantamos outra hipótese: o Rio serviria como um ensaio para outro projeto de poder autoritário, militarizado, miliciano e fundamentalista que se projeta no plano nacional?
Não por acaso, autoridades no Planalto Central aplaudiram a chacina de Jacarezinho, a sinalizarem às possíveis conexões entre os dois projetos (de poder), não obstante o repúdio nacional (daqueles que prezam pelo estado democrático de direito) e internacional do massacre promovido por agentes do Estado.
O Brasil que não implementou uma justiça de transição após a ditadura vê, no presente, grupos saudosistas do passado autoritário investirem novamente contra a ordem democrática, na certeza da complacência e impunidade das instituições republicanas.
Esperamos que a história não se repita nem como tragédia, nem como farsa.
ROBSON SÁVIO REIS SOUZA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Doutor em Ciências Sociais e pós-doutor em Direitos Humanos