Alphonse Capone foi um mafioso violento e inescrupuloso. Mandava no submundo com jogos, lavagem, extorsão, corrupção, clubes noturnos, destilarias e esteve no centro de centenas de crimes. O mais famoso deles foi o “massacre do dia de São Valentim”, em 14 de fevereiro de 1929, quando sete homens envolvidos com a máfia foram brutalmente assassinados. Depois de 10 anos de investigações, Al Capone, o capo ítalo-americano do crime organizado de Chicago, caiu por um delito bem menos grave, um atalho na sua quilométrica folha de delinquências: sonegação fiscal. Foi condenado a onze anos de cadeia, saiu de circulação iniciando o desmonte do esquema criminoso. Os outros delitos, comprovados, resultariam em sentenças mais severas em um estado só que aboliu a pena de morte em 2011.
As transgressões nos diálogos entre Sérgio Moro e sua “equipe do MP” na célula da Lava Jato em Curitiba revelam crimes muito graves, cometidos por agentes públicos. Até aqui eles não ensejaram condenações contra qualquer um deles. As decisões do STF quanto ao ex-presidente Lula abrem uma avenida para reparos judiciais – penais e civis – e irão desencadear apelações de outros investigados ou condenados. As sentenças do STF – incompetência e a parcialidade de Sérgio Moro – não utilizaram nem sequer uma vírgula das promiscuidades expressas nas mensagens, mas elas inauguraram a derrocada da Lava Jato a partir de junho de 2019. Só a revelação dos diálogos foi suficiente para tirar Moro de circulação rapidamente e implodir a torre de Curitiba.
Em apenas 2 anos, os capos da Lava Jato foram eviscerados pelos expedientes que mais manipularam, os vazamentos como “peneira”, estratagema vulgarizado por Moro para antecipar a culpa de investigados, inocentes ou não. A publicidade dos diálogos produziu 50 derrotas da Lava Jato nas três esferas do poder. O arremate dos fiascos veio no Supremo Tribunal Federal na segunda quinzena de abril de 2021. O Plenário chancelou por 8 votos a 3 a incompetência de Sérgio Moro, depois da manobra tabajara do lavajatista Edson Fachin, para evitar a inevitável declaração da parcialidade do ex-juiz. O Pleno do STF também convalidou numericamente a decisão da Segunda Turma, do final de março de 2021, onde Moro foi carimbado de faccioso na condenação do ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá. A parcialidade pode se estender às investigações remanescentes, com o mesmo vício.
Antes, no próprio Judiciário, a Lava Jato amargou derrotas emblemáticas após as conversas se tornarem públicas. Caiu a prisão após a condenação em 2 instância e o ministro Alexandre de Moraes pulverizou o acordo pelo qual a Lava Jato administraria R$ 2,5 bi dos recursos recuperados da Petrobrás. A condenação do ex-presidente da Petrobrás, Aldemir Bendine, foi reformada por erro processual e alcançou outras 32 sentenças. A segunda turma do STF também excluiu a obscena delação de Antônio Palocci contra o ex-presidente Lula, divulgada às vésperas da eleição presidencial. Em agosto de 2020, Sérgio Moro já havia sido declarado parcial no julgamento do doleiro Paulo Roberto Krug, no escândalo do Banestado. No TSE, a senadora Selma Arruda, a “Moro de saias” foi cassada por 6×1 e o STJ também abriu investigações sobre possíveis ilegalidades da Lava Jato contra ministros da Corte.
No Executivo, Sérgio Moro foi recompensado com a pasta da Justiça depois de eliminar da eleição de 2018 o candidato favorito, segundo as pesquisas da época. Moro e sua equipe da Lava Jato foram usados e, depois, expelidos pelo bolsonarismo. No primeiro embate, Moro perdeu o parquinho da bisbilhotice, o COAF. Também começou a escapar o controle da Polícia Federal com mexidas nas superintendências, iniciadas no Rio de Janeiro. O controle da Federal foi o motivo do expurgo definitivo do governo. No estratégico cargo de Procurador-Geral da República, Moro queria um ‘consigliere’ da sua “equipe no MP”, mas nem ao menos foi consultado na escolha de Augusto Aras, pinçado fora da lista tríplice. Em sentido contrário, o CNMP puniu os excessos de Deltan Dallagnol por 2 vezes. A Lava Jato de São Paulo se dissolveu e o chefete Dallagnol teve que sair de fininho do comando da operação de Curitiba em setembro de 2020.
No Congresso Nacional os dissabores de Moro e sua ‘famiglia’ se acumularam. No Senado, Sérgio Moro era interlocutor frequente do grupo autointitulado “Muda Senado”. Através dele, Moro tentou enquadrar o funcionamento do STF em uma PEC e, por 3 vezes, fracassou na instalação da CPI da toga para constranger ministros do Supremo. Também não emplacaram 2 nomes ligados a Dallagnol para o CNMP. A Lei de Abuso de Autoridade prosperou, inclusive com a derrubada de 18 vetos. Moro e a Lava Jato boicotaram sistematicamente a proposta. A motivação, hoje se sabe, era o temor sobre o que fizeram de errado. O que Sérgio Moro batizou de “pacote anticrime” foi desidratado na Câmara dos Deputados, onde mantras fascistas foram eliminados, como o excludente de ilicitude, a chamada licença para matar.
As derrotas políticas foram inclementes, mas até aqui, os diálogos se prestam a auxiliar as defesas jurídicas e estão sendo disponibilizados por decisão do ministro Ricardo Lewandowski, que já facultou o acesso ao STJ. Os personagens principais das conversas tergiversam, dissimulam, conjecturam possíveis adulterações, alegam deslembrança e não assumem os teores revelados. Uma única procuradora, Jerusa Viecelli, reconheceu a autenticidade de um diálogo com escárnios na morte de Marisa Letícia, ex-primeira-dama: “Errei. E minha consciência me leva a fazer o correto: pedir desculpas à pessoa diretamente afetada, o ex-presidente Lula”, escreveu a procuradora em sua conta no Twitter em agosto de 2019.
Outros mencionados nos diálogos, que não atuavam na operação, admitiram as conversas. Entre eles a atual senadora Mara Gabrilli. “A conversa existiu sim”, confirmou ela em uma entrevista em junho de 2019. Em outra declaração também confirmou o diálogo com o ex-juiz Sérgio Moro: “Foi um comentário. Não estava entregando uma demanda”, se referindo a uma aventada conexão da Lava Jato com o assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel. O apresentador de TV, Fausto Silva, também reconheceu sua participação. Em 7 de maio de 2016, Moro disse a Deltan Dallagnol que foi procurado pelo apresentador: “Ele disse que vcs nas entrevistas ou nas coletivas precisam usar uma linguagem mais simples. Para todo mundo entender”, escreveu o então juiz.
Embora Sérgio Moro e sua turma do MP tenham reiterado não reconhecer a veracidade das mensagens divulgadas, pelos menos três decisões judiciais de 2020 citaram a perícia que atestou a integridade do material que revelou a promiscuidade entre eles os falastrões. As conversas foram apreendidas no curso da chamada operação “spoofing”, que investiga a invasão dos celulares de Moro, de procuradores e de outras autoridades da República. Em uma das decisões jurídicas o ministro Ricardo Lewandowski citou o relatório da Polícia Federal que mostra que os dados apreendidos na “spoofing” foram devidamente periciados e tiveram sua autenticidade comprovada:
“Todos os dispositivos arrecadados foram submetidos a exames pelo Serviço de Perícias em Informática do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, que objetivaram a extração e análise do conteúdo do material, com a elaboração de Laudo Pericial de Informática Específico para cada item apreendido”, diz o relatório. “Dessa forma”, prossegue o documento mencionado por Lewandowski, “qualquer alteração do conteúdo em anexo aos Laudos (remoção, acréscimo, alteração de arquivos ou parte de arquivos), bem como sua substituição por outro com teor diferente, pode ser detectada”.
A mais recente vítima da operação “spoofing” foi o delegado Felipe de Alcântara Leal, afastado do comando do Serviço de Inquéritos. O delegado contrariou uma portaria da Procuradoria-Geral da República, onde Leal deveria apurar se membros do MP do Paraná investigaram ilegalmente ministros do STJ. Desleal à missão determinada, o delegado preferiu apontar eventuais ilegalidades no inquérito aberto no STJ para investigar os procuradores. Com base em um laudo encomendado a outros três delegados, Leal opinou que as conversas entre procuradores, hackeadas por Walter Delgatti Neto, poderiam não ser autênticas, contrariando frontalmente o relatório anterior da PF que atestava a integridade dos diálogos. Com base nos diálogos a Corregedoria do MP também abriu uma sindicância para apurar possíveis irregularidades com autoridades da Suíça e dos EUA.
O ex-Juiz Sérgio Moro segue vulnerável ainda pelas ilegalidades confessadas, além das trocas de mensagens que negaceia. Ele vazou intencionalmente, em nome do “interesse público” uma gravação duplamente ilegal de uma conversa entre Dilma Roussef e Lula, que resultou no veto à posse do ex-presidente no comando da Casa Civil. O áudio foi captado além do horário autorizado e era estranho ao foro de Moro. A conspiração foi determinante para o impedimento de Dilma Rousseff. Moro também grampeou criminosamente advogados, suspendeu o sigilo da delação de Antônio Palocci às vésperas da eleição e, em férias, atuou para abortar a liberdade do ex-presidente Lula. Foram essas razões jurídicas, além de outras, pelas quais ele foi declarado parcial.
A tagarelice de Sérgio Moro e os procuradores, além de repugnantes, expõe abusos e ilegalidades, como denunciação caluniosa, fraude processual, falsidade ideológica, prevaricação e outras. Pela origem ‘hackeada’ das mensagens, é provável que fiquem impunes por alguns desses delitos. Moro pontificava a legalização da prova ilícita, colhida de boa fé. Sorte dele que o Congresso repeliu sua tese fascista. A parcialidade/incompetência é o começo do fim. São punições desonrosas, mas leves, equivalentes a sonegação de Capone, que morreu antes dos outros processos. Moro e Capone são comparáveis? Obviamente não.
“Scarface” era um fora da lei. Moro, um agente da lei, dissonante dos deveres da magistratura.
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