Ontem, em uma live privada, o ex-embaixador Marcos Azambuja sintetizou os tempos atuais em dois movimentos: a complexidade e a rapidez. Em outros tempos, tudo era muito mais simples e lento. Havia tempo para a correção dos erros. E havia filtros nas informações.
Foi uma live instigante com um sábio. Azambuja tem amplo conhecimento que vai além da visão geopolítica.
Pego esses pontos que ele apontou e acrescento análises pessoais. Vamos trabalhar em cima desses conceitos para montarmos o nosso xadrez.
Peça 1 – rapidez
A Internet não apenas ampliou o universo de informações. Tornou muito mais rápida a disseminação das informações e, consequentemente o conjunto de eventos deflagrados pela sua circulação. Ou seja, acelerou a história.
Esse é um ponto relevante, que aponto há anos aqui.
Confira-se o marketing montado para Joao Dória Jr., emulando Donald Trump. Em pouco tempo tornou-se conhecido. Em tempo mais rápido, sua imagem cansou. Foi eleito governador devido ao antipetismo, mas não venceu na capital – onde o grau de conhecimento sobre ele era maior.
Esse ponto é essencial para analisar o mundo contemporâneo. Não apenas há rapidez na construção e desconstrução de imagens de pessoas, mas também das ondas da opinião pública. Qualquer cochilo e as ondas se invertem.
A mídia passou dez anos plantando ódio, surfando na exploração dos sentimentos bizarros da opinião pública, em movimento emulado de Rupert Murdoch. A brasa acesa explodiu no “mensalão”, mas refluiu nos anos seguintes, graças aa habilidade de Lula em enfrentar a crise de 2008. Voltou com a Lava Jato, resultando no impeachment devido à extensão do golpe – juntando mídia, Supremo, lobistas, influencia externa -, à incapacidade de Dilma Rousseff em enfrentar a conspiração e à grande participação do Supremo – com o companheiro Gilmar Mendes impedindo a posse de Lula como Ministro de Dilma,
Esse movimento de ódio e de subversão das leis e dos conceitos atingiu o ápice com o bolsonarismo.
Menos de cinco anos depois, inverte-se o ciclo, a Lava Jato murchou e há uma multidão de cultivadores do ódio pulando rapidamente do barco que afunda e tornando-se liberais desde criancinha.
Quem não entendeu, ficou de calças na mão. É significativo o discurso constrangedor do Ministro Luis Roberto Barroso, na seção do Supremo Tribunal Federal que consumou a condenação do ex-juiz Sérgio. Repetiu a cantilena que era homem bom, só fazia o certo, e quem condena os “pecadilhos” da Lava Jato é a favor da corrupção. Os mesmos bordões que, em outros tempos, garantiram a popularidade do candidato a líder da patuleia jurídica soaram como o sujeito que entra em um missa de corpo presente de bermudas.
Repare a rapidez na alternância de visões tão radicalmente opostas: Moro, de herói a vilão; Barroso, de iluminista que ouvia a voz do povo, a exibicionista que tenta por todos os caminhos ser ouvido pelo povo. Arrisca-se a perder popularidade até entre seu público preferencial – a ralé do judiciário (por tal, entendam-se os magistrados com menor grau de informação.
Peça 2 – a complexidade
Um levantamento rápido dos fatores que determinam essas mudanças de onda mostrará o fator complexidade.
De um lado, os ventos internacionais, desde aqueles de ciclo mais longo – a desmoralização do ultraliberalismo no mundo -, até os imprevistos – a derrota de Donald Trump devido aos efeitos da pandemia. Mais ainda, depois de séculos o pêndulo do poder mundial retorna para o Oriente e o Brasil torna-se dependente de fornecedores de vacina. No meio do caminho, ocorre uma ampla desorganização do mercado de informações permitindo o advento da ultradireita montada em algoritmos e Fakenews.
Logo depois, uma pandemia acelera o fim do ultraliberalismo, estimula os conceitos de cooperação, de solidariedade, recupera a relevância dos Estados nacionais e das políticas públicas.
O que parecia interminável – a era do neoliberalismo – esgotou-se à medida em que a pandemia espalhava a pobreza ao mesmo tempo ampliava a riqueza dos bilionários e expunha o risco das disrupções políticas, devido à superexploração dos trabalhadores. Especialmente, consolidou a noção clara de que o combate ao inimigo dependeu substancialmente dos Estados nacionais e da municipalidade.
No Brasil, ocorreu a o mesmo processo complexo. Primeiro, valeram-se das ondas subterrâneas para tirar Lula das eleições. Sobe Bolsonaro espalhando ódio e destruição.
Em um mundo chacoalhado pelas incertezas, há um fator tipicamente nativo: a falta de caráter institucional dos homens públicos, mídia, juízes e políticos. São capazes de caminhar do radicalismo mais odiento para se tornarem humanistas e legalistas desde criancinhas, ficando prontos para retornar ao ninho original se as circunstâncias mudarem.
Agora, dependem de Lula para tirar Bolsonaro. E o STF vai se curvando às ondas, como um bambu ao vento. Se amanhã cair Bolsonaro, muda novamente o quadro e se tentará repetir o modelo do delenda Lula.
Além disso, a rapidez com que se criam e se destroem nomes, somadas ao desmonte do sistema partidário, criaram a ilusão dos robôs políticos criados por algoritmos. Vale para o animador de auditório, para o ex-Ministro que destruiu o programa Mais Médicos, mas que resistiu a Bolsonaro, para o presidente do Senado de fala bonita e vazia, para o governador que trouxe vacinas, para o outro governador, que é mais educado.
Ao mesmo tempo, os movimentos das marés erodiram os principais sustentáculos institucionais: um STF que se rendeu ao exibicionismo e a imprevisibilidade dos julgamentos; uma mídia que se desmoralizou agindo como partido político; um Congresso que foi invadido por hordas de bárbaros plantados pela ação deletéria anterior de Supremo, mídia e Lava Jato.
O reinado da ultradireita no poder desgastou-se rapidamente. Em pouco tempo foi destruída a imagem dos principais agentes da nova desordem, Bolsonaro e os militares, atropelados pela pandemia e pela incapacidade de definir políticas públicas minimamente eficientes.
O grau de imprevisibilidade pode ser medido por questões objetivas.
O que teria acontecido com o governo Bolsonaro se houvesse Ministros competentes na área econômica e de saúde, e o presidente fosse um pouco mais esperto, para não embarcar no negacionismo?
Peça 3 – as forças determinantes
Nessa quadra da história, pode-se identificar alguns fatores relevantes, mas é impossível definir o desfecho.
A pandemia trouxe para primeiro plano conceitos que foram soterrados nos anos de predomínio do ultra liberalismo. E trouxe à tona as fragilidades da socialdemocracia. Ao se curvar ao pensamento econômico hegemônico do liberalismo, a socialdemocracia cometeu inúmeras concessões, que acabaram comprometendo seu papel como alternativa de poder – abrindo espaço para a ultradireita.
Em artigo recente, Paul Krugman aponta as fragilidades do governo Obama com semelhanças inevitáveis com o período Lula-Dilma.
Obama começou seu governo com altos índices de aprovação pessoal, mas não conseguiu apoio público para suas políticas. Nem mesmo para o Obamacare, o programa que instituiu um mínimo de dignidade nas políticas de saúde do país obteve boa aceitação. Agora, as políticas de pleno emprego de Biden obtêm aceitação inédita, inclusive nas manifestações dos republicanos nas redes sociais.
O mesmo ocorreu com as políticas públicas dos governos petistas. Quando começou o desmonte, com exceção da educação houve poucas manifestações de apoio, ou o entendimento de que se tratavam de direitos que estavam sendo retirados.
Ajudaram no fortalecimento da imagem de Biden a ideia de que apenas um conservador branco poderia vencer um novo New Deal, diz Krugman. E também a desmoralização do Partido Republicano quando embarcou na nau da ultradireita.
Mas o fator principal foram as mudanças trazidas pela pandemia. Apoiar os pobres e desempregados deixou de ser visto como pecado fiscal.
O diagnóstico de Krugman sobre Obama é semelhante ao do período Lula:
“Uma coisa impressionante sobre os anos de Obama, em retrospecto, foi a deferência dos democratas para com as pessoas que não compartilhavam de seus objetivos. O governo Obama cedeu aos banqueiros que advertiram que qualquer coisa que soasse populista minaria a confiança e às repreensões do déficit exigindo austeridade fiscal”.
“E junto com essa deferência vinha a timidez, uma relutância em fazer coisas simples e populares, como dar dinheiro às pessoas e tributar corporações. Em vez disso, a equipe de Obama tendeu a favorecer políticas sutis que a maioria dos americanos nem percebeu”.
Agora a deferência se foi. Wall Street claramente tem muito menos influência desta vez. Os consultores econômicos de Biden evidentemente acreditam que, se você construir uma economia melhor, a confiança cuidará de si mesma. (…)
E a velha timidez evaporou. Biden não está apenas crescendo, ele está ficando óbvio, com políticas altamente visíveis em vez de cutucões comportamentais. Além disso, essas políticas diretas envolvem fazer coisas populares. Por exemplo, os eleitores sempre disseram aos pesquisadores que as empresas pagam muito pouco em impostos, A equipe de Biden, estimulada pelo fracasso do corte de impostos de Trump , está disposta a dar ao público o que ele deseja”.
Cria-se, então, para um governo pós-Bolsonaro, as mesmas condições que, até agora, beneficiam Biden: uma recuperação estrondosa da economia, alimentada pelos gastos públicos, ajudando na consolidação das outras políticas.
Peça 4 – as peças do jogo Brasil
As seguintes ondas estão em crescimento no momento, não se podendo garantir que serão permanentes.
A Covid e o pós-guerra – desde o século 19 tem sido assim. O enorme poder do financismo impõe uma ampla desregulação nas economias nacionais, em cima de teorias não comprovadas – a de que, beneficiando o capital, haveria um transbordamento dos países centrais para os periféricos, universalizando o crescimento econômico. O resultado é um aumento amplo das desigualdades, um desapontamento fatal com as democracias, resultando em radicalizações e guerras. Segue-se um grande conflito – no passado, a 2ª Guerra – que recoloca o bom senso nas políticas públicas e na cooperação internacional.
É possível que, nesses tempos cibernéticos, a 2ª Guerra tenha sido a luta contra o Covid-19. As tragédias humanitárias ajudaram a despertar sentimentos de solidariedade, retorno aos princípios humanistas. Vários dogmas econômicos estão sendo superados nos grandes centros, com reflexos sobre nós, da periferia. Obviamente é um movimento incipiente, que tem como grande obstáculo a subordinação quase total dos grupos de mídia aos interesses imediatos do capital financeiro.
Esse movimento tem o seguinte impacto sobre as políticas públicas:
Economia – Paulo Guedes se incumbiu de enterrar os últimos trunfos do ultra liberalismo pós-Temer. É incapaz de desenvolver políticas anticíclicas, foi incapaz de atuar sobre a pressão setorial de preços, não moveu uma palha para enfrentar a quebra de fornecimento de diversas cadeias produtivas. Preocupa-se exclusivamente com o negócio das privatizações. A pandemia escancarou a necessidade da recuperação das políticas públicas e do papel do Estado.
Federalismo – há um questionamento incipiente, mas consistente, de políticas públicas que afetam o país e que são montadas exclusivamente sob a ótica da Faria Lima. Haverá um fortalecimento das políticas estaduais e municipais.
Políticas sociais – há dois grupos abraçando políticas sociais inclusivas. De um lado, a esquerda lulista, com seu acervo de políticas públicas bem sucedidas. De outro, um bom mocismo que emerge de uma, digamos, direita progressista. Ambos os lados defendem a inclusão, a redução das desigualdades, o fim dos preconceitos, a melhoria da educação. O que os diferencia é que a chamada direita progressista não admite o pobre no orçamento. É diferença relevante.
Presidenciáveis – só existem dois presidenciáveis de peso, Lula e Bolsonaro, e as respectivas contrapartes, o antilulismo e o antibolsonarismo. A sociopatia explícita de Bolsonaro tornou o antibolsonarismo o vetor mais relevante do atual momento político. Por outro lado, nem com algoritmos envenenados se conseguirá turbinar os diversos políticos nomeados “presidenciáveis” pela mídia.
Bolsonaro – por outro lado, Bolsonaro continua sendo o sujeito previsível de sempre. Acuado, parte para o ataque, ora brandindo ameaça de intervenção das Forças Armadas, mas utilizando corriqueiramente instrumentos do Estado para ameaçar opositores. A CPI da Covid levará a atuação política ao ponto de fervura, onde tudo é possível: Bolsonaro se arrastando até 2022; Bolsonaro tentando o golpe e sendo deposto; instauração do terrorismo no país, com os grupos bolsonaristas armados. Ainda mais agora, que a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro mostraram as ligações diretas do Escritório do Crime com o próprio presidente da República – de acordo com reportagens do The Intercept.
Ao mesmo tempo, a revista Veja – controlada pelo Banco BTG Pactual – faz um levantamento das privatizações em curso, por Paulo Guedes, e a mídia corporativa se cala sobre as revelações das ligações Bolsonaro-milícias. Os negócios da privatização continuam sendo o maior fator de blindagem de Bolsonaro.
Aí entra a complexidade dos tempos atuais.
- Com Bolsonaro no jogo, a candidatura de Lula será um superimã, atraindo as limalhas da esquerda à direita
- Assim como Biden em relação a Trump, Lula 2 terá muito mais condições que Lula 1 de implementar políticas fiscais, sociais e de gastos públicos, que rompam definitivamente com o ultra liberalismo pós-Temer.
- Por outro lado, a estratégia de Lula será alargar o arco de alianças, atraindo setores do centro e do centro-direita e parte do empresariado industrial. O que significará abrandar políticas necessárias para romper com o passado ultraliberal.
Com a velocidade dos fatos, 2022 ficou mais distante. Ou seja, daqui até lá muita água irá correr antes das águas encontrarem o caminho dos rios.
De qualquer modo, nos próximos anos haverá um jogo mundial, similar ao do pós-guerra, visando a reconstrução da civilização perdida. Lula poderá ter papel decisivo nesse reconstrução, desde que ultrapasse os obstáculos ao anti-lulismo no país.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)