UM CONVIDADO BEM TRAPALHÃO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Vendo e revendo o conteúdo do discurso preparado pelos competentes quadros do Itamaraty (que estavam tolhidos e envergonhados na desastrada gestão de Ernesto Araújo) e lido pelo presidente Jair Bolsonaro na “Cúpula dos Líderes pelo Clima”, quando além de vestir um figurino diferente do normal, que incluía uma gravata em tom de verde, pronunciava palavras e promessas que não correspondiam aos fatos e ações em seus dois anos e quatro meses de governo, comecei a entender por que os fanáticos admiradores o chamam de “mito”. Estava quase irreconhecível, salvo por confirmar o diagnóstico do divã.

Eram tantas mentiras na narrativa com promessas de mais verbas para o combate ao desmatamento da Floresta Amazônica e o reforço dos órgãos ambientais, justamente no dia em que o Orçamento Geral da União (OGU) era aprovado no Congresso com cortes de R$ 240 milhões para a pasta do Meio Ambiente (o que aumentou a redução de verbas frente a 2020), que tive de buscar o dicionário e a ajuda de um psicanalista para entender um pouco a veneração. “Mito” seria a forma reduzida e carinhosa de chamar o militar (reformado com a patente de capitão) e ex-deputado federal, na verdade um “mitômano”, “aquele que expressa mitomania, hábito patológico de mentir”, segundo o dicionário.

Na psicanálise, o mitômano, ou mentiroso crônico, é o paciente que faz isso sem mesmo perceber. A mentira é algo tão compulsivo para esse indivíduo que interfere até mesmo a sua capacidade de julgar racionalmente uma situação, seja nos seus relacionamentos, seja na sua vida em sociedade. Quando o mitômano tem seu raio de ação limitado, vira folclore de anedotas, como o famoso salva-vidas, “Nei Mentira”, relembrado esta semana no grupo “Amigos do Leblon” no facebook. Mais grave é a pessoa que mente e crê na própria mentira exercer altos cargos dirigentes.

A lista dos 40 países e demais representantes de organismos multilaterais globais e grandes conselhos regionais, como a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OCDE, a Comissão Europeia e o Conselho Europeu, selecionados pelo anfitrião do encontro virtual, o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, para marcar com ênfase o retorno do Tio Sam aos compromissos do Acordo de Paris (renegados por Donald Trump) para a redução do aquecimento global em 1,5°C até 2060, mediante o corte das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera da Terra, foi praticamente impecável.

Estavam presentes os maiores países em extensão territorial (Rússia, Canadá, Estados Unidos, China e Brasil). Os maiores emissores atuais de gás carbônico (CO2) – China, EUA, Índia, Rússia, Japão, Alemanha. Os maiores poluidores da história (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Japão, Rússia, China Índia e Canadá). Só 15 países (entre eles o Brasil, em 13º lugar) respondem por mais de 70% atuais emissões. Os países com as maiores populações do Planeta (China, com 1,4 bilhão, Índia, com 1,38 bilhão, Estados Unidos, com 331 milhões, Indonésia, com 273 milhões, Brasil, com 212,5 milhões e Nigéria, com 206 milhões e Bangladesh, com 148 milhões, maior que a Rússia). Ficou faltando o Paquistão, que tem 220 milhões de habitantes). Os países “donos” das maiores florestas, que atuam como “filtros” das emissões de CO2 na atmosfera: Rússia e Canadá, que têm mais de metade de suas terras geladas cobertas por florestas de taiga, o Brasil, responsável por 60% da Floresta Amazônica, nossos vizinhos e parceiros na Amazônia, Peru, Colômbia, Bolívia, e nações com florestas tropicais na África, como República Democrática do Congo, Gabão e Quênia, e na Ásia e Oceania, como Índia, Indonésia, que tem as maiores florestas tropicais do mundo depois do Brasil espalhadas em suas 17 mil ilhas, Austrália e Nova Zelândia.

Como o aquecimento global causa o derretimento das geleiras nas principais cadeias montanhosas cobertas de neve e nas calotas polares, o que eleva o nível dos oceanos, afetando a vida de países insulares e com cidades populosas nas reuniões costeiras, a Cúpula convidou representantes de nações como o Butão, praticamente no sopé do Himalaia, o Chile, pelos Andes, assim como a Bolívia, e as ilhas atlânticas da Jamaica e Antigua e Barbuda, no Caribe. A Costa Rica representou a América Central. Pelo Pacífico, estavam Singapura, rica ilha com 5,7 milhões de habitantes, as Ilhas Marshall, no centro do Oceano Pacífico (representando várias nações-ilhas que podem desaparecer se os governantes e empresários descuidarem das suas responsabilidades), e ainda Austrália e Nova Zelândia. A representante da Comissão Europeia expressou preocupações de países como Holanda, Islândia e Groelândia, vinculada à Dinamarca, que se fez presente.

Digo que, além do Paquistão, por seu peso populacional, deveriam estar presentes o Irã, com população de 83 milhões (tão grande quanto a Turquia, presente), e forte lançador de CO2 na atmosfera. O Irã ficou de fora porque Trump, ao renegar o Acordo Nuclear firmado na gestão Obama, com interveniência das principais nações europeias, criou contencioso que ainda não permitiu restabelecer os canais diplomáticos entre os dois países. As nações devem ser vistas pelo tempo ido e o futuro. Os Aiatolás são uma pequena fração da história milenar do “grande Irão”, assim como Bolsonaro é uma expressão circunstancial do Brasil, como já o foram Dilma, Temer, Collor, Lula e FHC, ou Trump nos EUA. O Egito, com 93 milhões de habitantes, poderia estar presente, idem Etiópia e Filipinas. Mas eram 40, não 50 países.

Talvez a pandemia da Covid-19, que obrigou o uso da tecnologia para o encontro virtual, tenha tornado o evento até mais produtivo e interessante, mostrando em “zoom” a reação de cada dirigente à fala de um colega. Escalado como o 19º a falar durante cinco a sete minutos – depois que a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, abriu os trabalhos, saudando a todos e o presidente Biden deu o pontapé inicial com propostas de antecipação de 10 anos na redução de emissões para 2050, seguida por vários mandatários, com metas próprias -, a apresentação do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, era aguardada com expectativa. No Brasil e no mundo. Alvo de críticas recentes por ter desmobilizado os controles ambientais e liberado a exploração mineral (ouro, sobretudo, com o uso intensivo de mercúrio na lavagem do material geológico) em reservas indígenas, além de ter reagido grosseiramente às críticas de dirigentes de países europeus à má gestão no combate ao desmatamento e às queimadas e se indisposto com a Noruega e a Alemanha, que bancam 98% e 2%, respectivamente, do Fundo Amazônia, com verba de R$ 2,9 bilhões congelada depois que o governo brasileiro recusou a ingerência dos dois países doadores na gestão das ações ambientais – o Brasil não aceita a atuação fiscalizadora das Organizações Não Governamentais (ONGs) -, esperava-se que Bolsonaro reforçasse o pedido do seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na véspera, Salles manifestou desejo de acesso ao fundo de US$ 1 bilhão criado pelos EUA, Reino Unido e coalizão de empresas em defesa das florestas.

Contrariando seu histórico, Bolsonaro surpreendeu. Leu, com a habitual claudicância, discurso à prova de gafes feito por experientes diplomatas do Itamaraty, enfim ressuscitado após 25 meses do obscurantismo da gestão Araújo. O presidente listou importantes contribuições do Brasil para o clima global, como depositário das maiores florestas tropicais do mundo, quase todas feitas em governos anteriores, inclusive a meta de CO2 para 2050, que fora proposta por Dilma, na Cúpula de Paris, em 2015. E prometeu dobrar verbas de proteção ao meio ambiente (que no mesmo dia cortara em R$ 240 milhões no OGU de 2021, enfim aprovado pelo Congresso). E as verbas originalmente propostas já tinham encolhido frente a 2020.

Por coincidência, ou troco diplomático, o anfitrião, o presidente Joe Biden saiu da transmissão simultânea em meio à fala do presidente da Argentina, Alberto Fernández, e sequer ouviu qualquer das promessas de Bolsonaro. A diplomacia americana explicou que já estava prevista sua saída para compromisso inadiável. Mas não deixou de ser um tapa de pelica em quem foi grosseiro e o penúltimo mandatário importante a cumprimentá-lo pela eleição para presidente dos Estados Unidos da América, assumindo até 6 de janeiro de 2021, quando o Congresso confirmou a eleição de Biden e Kamala Harris, a “fake news” de fraude alardeada por Donald Trump, que insuflou seus fanáticos seguidores a invadirem o Capitólio, no maior atentado à Democracia americana. A referência elogiosa a “Brasil, à Argentina, à África do Sul e à Coreia do Sul”, sem menção a seus dirigentes no discurso de balanço final, mostra a sutileza da diplomacia. Dirigentes são passageiros. O que importa são os países que seguirão cumprindo papel importante. Para comprovar que toda a regra tem exceção, Biden fez questão de elogiar “o primeiro ministro Narendra Modi pelos esforços da Índia no meio ambiente”.

Curiosamente, na tarde do mesmo dia 22, para dar credibilidade à promessa, o ministro do Meio Ambiente, que há um ano, nesta data, na reunião ministerial que selou a saída do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, do governo, sugeriu “aproveitar que as atenções da imprensa estavam focadas na pandemia da Covid-19 para passar a boiada”, desmontando “ações de fiscalização no meio ambiente e outros regramentos”, anunciava que iria pedir R$ 270 milhões para reforço dos órgãos de controle ambiental, que esvaziou desde o começo de sua gestão (INPE, Ibama, ICMBio), além da Polícia Federal, forçando a demissão do delegado responsável pela maior apreensão de madeira extraída de forma irregular da Floresta Amazônica. E ainda teve a cara de pau de posar e postar nas redes sociais, às vésperas da Cúpula, foto sorridente ante pilha de toras de madeira, que mandou isentar de multas. Tudo para tentar botar a mão em boa parte dos US$ 1 bilhão.

Há um erro monumental do governo brasileiro de se achar merecedor do fundo ou de seu maior quinhão. Em dólares de 6ª feira (R$ 5,50), seriam R$ 5,5 bilhões. Mas não dá para o Brasil sonhar em levar todo o bolo e passar à frente da Colômbia e Peru, que têm partes da Floresta Amazônica como Venezuela, Suriname e Guiana (a indígena Sinéia Bezerra do Vale, liderança de Roraima da tribo Wapichana, cujos 13 mil integrantes se espalham pela fronteira e invadem parte da Guiana, lembrou a extensão extra territorial da floresta). Gabão, Congo e República Democrática do Congo, na África; Indonésia, Malásia, Tailândia e Papua e Nova Guiné, na Ásia, também se habilitam aos créditos. Se o governo brasileiro fizer as contas direitinho, só um mínimo de 60% deste fundo iria compensar os R$ 2,9 bilhões que o Brasil abriu mão do congelado Fundo da Amazônia, por não concordar com os critérios de governança transparentes, exigidos por Noruega e Alemanha. É engano imaginar que esse novo fundo não exigirá compromissos de governança e cumprimento de metas, mais rígidas que o Fundo Amazônia pedia em troca das verbas. Por que não ser correto merecer ambos?

O desenho que Joe Biden fez ao final do encontro é de que as novas metas de redução de emissões e a substituição do uso de combustíveis fósseis altamente poluentes (como carvão e petróleo) por energia limpa e novos métodos de produção abrem tantas oportunidades de reengenharia das atividades humanas que errarão os países que se atrasarem nos compromissos. Haverá sanções aos que não contribuírem para a redução de emissões de CO2. E recompensas aos que ajudarem a baixar a poluição ou “limparem” os ares do Planeta. O Brasil tem oportunidades extraordinárias nas duas pontas. Deve exigir compensações pela “limpeza “ que suas florestas exercem. Por isso, é urgente preservá-las. Árvores em pé valem mais que as abatidas irregularmente ou queimadas. Se o Brasil preservou um pouco melhor as florestas nos governos Lula e Dilma, ambos erraram ao suspender os leilões do pré-sal. Agora, com a conversão dos modelos energéticos dos países comprometidos com o Clima, o petróleo pode deixar de ser o “bilhete premiado” que iria garantir o futuro de educação para as novas gerações. O PT errou. Bolsonaro parece não se dar conta do desafio. Estamos atrasados.

Macaque in the trees
Bolsonaro em programa de TV (Foto: Reprodução de vídeo)

Para os que acreditaram nas promessas daquele presidente desconfortável lendo o “script” do Itamaraty em cenário impecável (cercado de ministros com máscaras), vejam o que vi 6ª feira, 23 de abril, na Rede TV, à noite. No dia do encerramento da Cúpula, Jair Bolsonaro foi a Manaus, no coração da Floresta Amazônica. Seria oportunidade (perdida) de reafirmar a proteção ao meio ambiente. Mas Bolsonaro foi apenas prestigiar o ex-ministro da Saúde – em cuja gestão, seguindo a orientação presidencial morreram dois terços das 390 mil vítimas da Covid-19 -, o general Eduardo Pazuello, natural da cidade, na “inauguração” de auditório ainda incompleto”. O pior estava por vir. Teve tempo para participar, à vontade, sem terno, camisa fora da calça, um “Jair raiz” no inacreditável programa “Alerta Nacional” do apresentador Sikêra Jr, da TV A Crítica, afiliada à Rede TV. Nível de botequim de 5ª categoria. Um dos temas até envergonhou o apresentador. Era a sexualidade do funcionário, com rabo de cavalo, que serviu água ao presidente. Após referências homofóbicas constrangedoras, Bolsonaro emendou: “Você tá maltratando esse cara aí. Queima ou não queima? Com aquele rabinho aí? Olha o rabinho dele”, disse o presidente, sob gargalhadas no estúdio. “Pelo amor de Deus, isso é uma entrevista séria”, atalhou Sikêra. Imagina se Biden, os outros mandatários e os possíveis financiadores do fundo de US$ 1 bilhão para preservar as florestas vissem isso?

GILBERTO MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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