O DEUS DA CARNIFICINA

CHARGE DE AROEIRA

A existência é de natureza intrigante. Nós distinguimos com dificuldade o extraordinário do comum e atribuímos, com frequência, o certo ao habitual apenas por que está lá, diante dos olhos – e não porque possui qualidades para se firmar em nossa lista de valores. Assim se consolidaram, ao longo da História, líderes que, de fato, não faziam jus a tais destaques, enquanto outros, muitas vezes, desapareciam, perseguidos pela adversidade e o desprestígio, quando, com suas mensagens, se revelavam importantes para todos. É assim que nos dilaceramos, às vezes, em torno de causas vazias, em vez de nos dedicar àquilo que, na existência, realmente importa. 

O atual governo, nos debates que desencadeia, dá a impressão de ser um bom exemplo do que se acabou de afirmar. Lança-se com veemência de retórica em causas inúteis ou simplesmente equivocadas aos olhos da opinião pública, ao mesmo tempo em que não atribui importância aos problemas que afetam à maioria. O povo carece de comida, de habitação, de emprego e de hospitais – e não o levam em conta. Para um espectador isento é como se a nação se agitasse sem sair do lugar, uma fórmula de avançar para o abismo a passos seguros. Tem sido deste modo a condução dos esforços contra a pandemia da Convid-19, quer pela negação da doença, quer pela propaganda de remédios ineficazes como se fossem válidos. Estamos, de fato, em termos de medidas oficiais, diante de um estado de genocídio com milhares de óbitos, sem janelas para futuro. 

O filme de Roman Polanski Deus da carnificina, de 2011, com Kate Winslet e Jodie Foster nos papéis principais, lembra o que se passa diante dos nossos olhos. Ali dois casais se encontram para conversar sobre conflitos entre os filhos. Não tinham a intenção de ir muito além, tirando a mera iniciativa de aproveitar a oportunidade para dissolver dúvidas e acertar ponteiros. Em vez disso, as discussões se acirram, como se, de repente, tivessem motivos para matar e exterminar. Haviam evocado, sem querer, o Deus da carnificina, o mesmo que, de tempos em tempos, rege as nossas questões, responsável por conflitos definitivos e aterradores. Em situações semelhantes, qualquer detalhe, até uma folha que entra pela janela e flutua, despretensiosamente, é capaz de provocar desastres impensáveis. Pelo que se deduz a partir de um conjunto de iniciativas do Planalto Central, estamos mergulhados em contextos semelhantes, só que na generalidade dos costumes – e não, como na obra de Polanski, na individualidade de dois casais. Em ambas as circunstâncias, o Deus da carnificina age para proporcionar desastres. E desastres, ao contrário do que talvez pareça, é onde estamos soterrados na saúde pública e em outras esferas, segundo as estatísticas e a definição dos cientistas.  

Não há exemplos, na memória do país, de situações que confirmem o sucesso de um dirigente capaz de anunciar fracassos como se fossem sucessos. Negar que a Terra seja redonda já simula disparates. Por outro lado, as mudanças ocorridas nos ministérios, em vez de acalmar, aumentam a aflição, como se estivéssemos condenados. É de se conceber que o Deus da carnificina, no uso de seus poderes, apresenta potencial para ir longe. Era da sua lavra, em conluio com grupos de evangélicos, a rebelião contra as medidas de cerceamento social em função dos picos na epidemia. Felizmente, o STF, provocado, decidiu em favor da população, impedindo a aglomeração nos bares e nos templos. Sinal de que ainda existe bom-senso.

RONALDO LIMA LINS ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)

Escritor e professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

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