O sistema jurídico de um país se ampara na segurança jurídica (na previsibilidade das decisões dos juízes e Tribunais) bem como na capacidade de incluir o cidadão comum como um ator importante no progresso social, dotando o da capacidade de ir a juízo como sujeito de Direito. Esta capacidade confere ao indivíduo o sentimento de pertencimento, tão essencial ao conceito de comunidade e cidadania.
As virtudes cívicas foram concebidas ainda na Grécia, mas seus efeitos práticos se fizeram sentir no Iluminismo francês e no constitucionalismo norte americano[1]. A participação direta do cidadão se contrapõe a qualquer proposta de exercício aristocrático do poder político (inclusive por juízes e promotores). Neste sentido, o ativismo judicial claramente reduz o papel do cidadão, pois a sua participação passe de ator a simples destinatário do Direito dos Tribunais.
Um governo de juízes é de todo deplorável e não contribui para a democracia, na medida em que a interpretação que juízes e Tribunais sobre o que é Direito não pode servir de estrutura normativa para a produção de efeitos no futuro. A atividade do Judiciário se volta para o passado.
A própria economia dita de mercado se ampara na percepção – por vezes frágil – de que as leis e as decisões dos juízes e Tribunais podem ser previstas em nome da segurança jurídica. Se o cidadão comum precisa saber, de antemão, qual é a velocidade máxima para andar em uma rodovia pública antes de ser multado, da mesma maneira as empresas necessitam saber das posições dos Tribunais antes de fechar um contrato.
A segurança jurídica é um valor indispensável ao desenvolvimento das sociedades capitalistas.
Atualmente vivenciamos um condenável e crescente ativismo judicial no Brasil, o que conduz a substituição da Direito pela Moral (como se já não houvesse padres e pastores em número suficiente no país).
O Supremo Tribunal Federal brasileiro se notabilizou pela absoluta ausência de colegialidade em seus julgamentos que, de coletivos, passam a ser exercidos de forma individual. As regras do regimento interno do Supremo Tribunal podem ser aprimoradas para evitar um excessivo protagonismo do indivíduo. A lealdade (confiança) é um valor de suma importância em órgãos colegiados.
Não se conhece nenhum registro de ATIVISMO JUDICIAL em Suprema Corte na história do Direito contemporâneo em que os seus membros se encontrem tão isolados e, por vezes, poucos dispostos a encontrar terreno comum. Ativismo judicial de Suprema Corte pressupõe união e coordenação interna. Temos diferenciar ativismo judicial do Supremo Tribunal do eventual ativismo judicial de seus indivíduos. São dois fenômenos absolutamente distintos. O ativismo judicial dos indivíduos da Corte retira o vigor do colegiado como um todo e somente acontece nas hipóteses em que não há homogeneidade de pensamento.
O ativismo judicial de uma Corte somente se revelaria possível caso presente uma indefectível coesão interna entre seus membros.
Na medida em que a Suprema Corte invade espaço tradicionalmente ocupado pelos demais Poderes da República, fica exposta a uma reação quase que imediata, a qual somente pode ser resistida através de firme coesão interna.
Hoje se costuma afirmar, sem exagero, que não temos uma Suprema Corte uma, mas sim onze ilhas pensantes, cada qual isolada dos demais membros por um vasto oceano ideológico. Temos os garantistas, os punitivistas, os de centro, os pragmáticos, os teóricos, enfim, uma gama de personagens que vivenciam a realidade da TV Justiça (ou a Justiça na TV). Esta heterogeneidade aliada à imensa exposição atual na mídia (Ministros participam, rotineiramente, de programas de tevê e dão entrevistas nas quais por vezes até antecipam como será seu voto como) por vezes impede a simples apuração do resultado de um julgamento. Sem a possibilidade de se aferir o argumento vencedor, nem mesmo a Corte sabe o que está decidindo.
Cada qual tem uma linha de pensamento. Os motivos fundantes que levaram a uma decisão colegiada se perdem em um labirinto de longos argumentos. Em suma, não se consegue definir, com clareza, o que o foi decidido pelo Plenário da Corte, o que se revela assaz grave, na medida em que os fundamentos da decisão colegiada é que irão permitir aos juízes e Tribunais inferiores aplicar o novo precedente.
Existem dois exemplos bastante contundentes de decisões do STF a este respeito. O primeiro é o chamado direito à saúde e o acesso a medicamentos especiais de alto custo. O segundo é o caso da regulação do chamado benefício assistencial (LOAS, renda mínima) aos deficientes e idosos. Em ambos os casos, os motivos determinantes dos julgados do STF ainda não estão claros e parecem até mesmo ambíguos ao leitor desavisado. Foram vários anos, com sucessão de algumas decisões sobre estes dois temas e a impressão geral é que não temos uma interpretação segura por parte do Supremo Tribunal, pois o volume de ações tratando destes dois temas só tem aumentado ao longo dos anos.
A latitude e longitude das decisões do Supremo Tribunal demanda algum rigor técnico, na medida em que os fundamentos definem a coisa julgada. São determinadas técnicas para a identificação do argumento vencedor sem as quais resta impossível até mesmo descobrir quem será o relator do acórdão.
O Supremo Tribunal praticamente abandonou o sistema de controle concentrado da constitucionalidade das leis – para o qual se exige uma maioria clara e tem procedimentos rígidos previstos Na lei Federal 9.968/99 – em favor do controle difuso (ou concreto) no qual o voto individual de seus ministros têm mais força e quase não existem regras claras de procedimento.
A insegurança jurídica no país possui uma intensa correlação com o ativismo judicial praticado hoje pelo Supremo Tribunal, ainda que absolutamente necessárias medidas excepcionais em campos de grave omissão da Administração Pública (como vacinação e medidas sanitárias, por exemplo).
O papel do Poder Judiciário consiste, como regra, em corrigir erros do passado e muito raramente se orienta para o futuro, mas hoje tem sido um historiador deficiente (porque julga com significativo atraso) e um agente de profecias autorrealizáveis para o futuro.
O ativismo judicial, nos termos em que praticado atualmente no Brasil, é uma patologia que tem de ser criticada pela academia, especialmente na área criminal na qual a dignidade da pessoa humana – segundo a Constituição – é o núcleo em torno do qual devem gravitar todas as finalidades dos atores do processo. Poder Judiciário e Ministério Público não possuem uma função de política criminal orientada para o futuro. Esta função deve ser desempenhada pelo Parlamento, na medida em que a Constituição define, com absoluta clareza, um sistema de representação popular.
O princípio da legalidade pressupõe lei aprovada pelo Parlamento e não admite normatização produzida dentro de gabinetes de juízes, procuradores e policiais. Esta patologia representa grave ruptura com o sistema constitucional, além de evidente infração administrativa, com possíveis repercussões nos campos cível e criminal.
No caso brasileiro a ruptura se revela ainda mais significativa, pois Legislativo e Executivo responderam, em passado recente, com a produção de muitas leis e criação de estrutura de combate à criminalidade. Durante o governo Dilma Roussef – por exemplo – diversas leis em matéria criminal foram aprovadas no Congresso Federal com apoio do Governo, inclusive a nova lei de lavagem de dinheiro e a regulação das delações. A policia federal foi equipada e estruturada nos últimos 15 anos de uma maneira que sequer se julgava possível, o mesmo valendo para Justiça e Ministério Público Federal que se interiorizaram pela vastidão de nosso país.
A criação do Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público expandiu o controle da sociedade e mesmo com desacertos pontuais (em termos de função legislativa) o ganho final para a sociedade é evidente. Não há notícia de que estes Conselhos tenham interferido nas próprias decisões de juízes e membros do Ministério Público desde 2004 quando foram criados na chamada Reforma do Poder Judiciário. Os Conselhos não sofreram interferência direta, mesmo durante o apogeu do movimento político e judicial que culminou com a deposição da Presidente eleita Dilma Roussef.
Até hoje não se compreende por que razão a Polícia Federal e demais órgãos de inteligência (ABIN por exemplo) não possuem, também, um controle rotineiro por parte do Congresso Nacional, a exemplo do que ocorre em países da Europa e nos Estados Unidos (onde o comitê do Congresso norte americano realiza uma fiscalização bastante séria destas atividades visando coibir abusos).
O controle externo da atividade da polícia federal exercido atualmente pelo Ministério Público federal se mostrou insuficiente, do que resulta a imediata necessidade de que todos os inquéritos e procedimentos criminais passem pelo crivo judicial (como ocorria no passado) na medida em que temos um sistema de freios e contrapesos.
As próprias delações premiadas também terão de sofrer um controle mais aprofundado pelo Poder Judiciário, ao contrário de outros países, nos quais este controle nem existe ou é meramente formal (Estados Unidos, por exemplo). A experiência brasileira vai sendo construída a partir de fatos e dados.
A própria OAB também terá seu papel de controle e fiscalização sobre as delações, na medida em que os conflitos éticos entre advogados representam uma fragilidade do sistema.
A criação de forças tarefa não auxiliou o Ministério Público a realizar o controle externo da atividade policial no Brasil. Ainda que se revelem iniciativas promissoras, estas equipes interdisciplinares devem zelar pela sua sólida independência funcional, sendo certo que a atividade policial de investigação isenta e republicana tem de ser preservada.
A maior parte das provas utilizadas no processo criminal foi produzida durante o inquérito policial, de maneira que assegurar o desempenho desta importante função investigativa, livre de qualquer pressão externa, deve ser a missão de todos os que desejam um país melhor. Pouco adianta juízes e procuradores demandarem em público total independência da polícia federal, mas internamente adotarem uma mentalidade diversa, que enxerga a polícia federal como mera auxiliar, o mesmo valendo para a Receita Federal que sempre teve os melhores quadros.
Em suma, Juízes Federais, Procuradores da República e policiais federais receberam do Parlamento tudo (absolutamente tudo!) o que demandaram em termos de legislação ao longo dos últimos anos, especialmente sob governos ditos de esquerda. Os poderes de juízes federais e procuradores da República foram claramente alargados. Os próprios Tribunais relativizaram os requisitos da prisão preventiva (medida de política criminal). Concedeu lhes uma musculatura jurídica e independência funcional que não existe em nenhum outro país do Ocidente. As condições materiais e normativas para o desempenho de um trabalho isento, dentro das leis e da Constituição Federal, foram asseguradas. Até mesmo as chamadas Forças tarefa do Ministério Público foram dotadas de farto “orçamento próprio” e os Tribunais Federais deram total apoio estrutural ao desempenho destas atividades.
Até mesmo a chamada Lei de Abuso de Autoridade não interferiu no conteúdo de nenhuma decisão judicial até o presente momento, havendo registro, inclusive, de decisões de juízes de primeiro grau em confronto com ordens emanadas de Ministros da nossa Suprema Corte sem grandes repercussões funcionais (caso, por exemplo, das chamadas “conduções coercitivas”).
A independência foi plena, total e irrestrita ao longo dos últimos anos, mas tal qual adolescente que recebe autonomia, revela se também importante reforçar a responsabilidade de seus agentes, pena de cometimento de graves erros históricos, com consequente erosão da credibilidade destas Instituições.
O momento é, por conseguinte, de serena reflexão acadêmica, ainda em que estejamos com a fumaça da batalha pairando no ar. Importante para o país analisar erros e desacertos, porque devem servir de plataforma para um futuro melhor, no qual a insegurança jurídica e o populismo judicial não nos cobrem um preço tão alto. Indústrias nacionais, comércio e mesmo o sistema financeiro, demandam segurança jurídica pois, do contrário, jamais investirão recursos em atividades essenciais ao crescimento do país (além da própria geração de empregos).
Sugere se, por conseguinte, dez medidas de enfrentamento do potencial problema futuro, com o sentido maior de assegurar a tão propalada TRANSPARÊNCIA, a qual deve valer para todos, sendo que a crítica é construtiva e visa um Brasil melhor.
São medidas simples, factíveis e que podem até mesmo ser implementadas (algumas delas) através de normativos internos das respectivas Corregedorias.
Sugestões: As 10 medidas para assegurar maior transparência de autoridades judiciais, membros do Ministério Público e policiais federais:
1. aprovação do projeto Streck/Anastasia (o Ministério Público tem o dever funcional de produzir no processo criminal até as provas que possam levar à absolvição – proibição do chamado agir estratégico – aumentar o escopo da investigação);
2. o juiz da causa deve receber os advogados das partes e o Ministério Público em uma mesma data, horário e local. Caso isto não seja possível, o atendimento do juiz das partes deve ser gravado e facultado acesso à parte contrária;
3. somente a lei pode predeterminar o juízo competente, sendo recomendável a descentralização das varas federais criminais de lavagem de dinheiro, retomando se o saudável processo de interiorização da justiça federal, evitando se qualquer possibilidade de personalização da figura do juiz;
4. a proibição de que juízes, advogados e membros do Ministério Público se utilizem de instrumentos clandestinos (fora do processo) de comunicação sobre atos e decisões, bem como que o contato com a imprensa se dê através das assessorias de imprensa destas instituições;
5. a proibição de que juízes, membros do Ministério Público e policiais interfiram, de qualquer maneira, no processo de escolha do advogado por parte do acusado, bem como a garantia de proteção da figura do whistleblower dentro destas instituições (MECANISMOS DE COMPLIANCE). Não se pode perseguir quem informa uma ilegalidade.
6. a proibição de que as tratativas que visem formalizar delações premiadas entre policiais e acusados ou membros do Ministério Público e acusados/indiciados se dêem fora de um ambiente institucional (repartição pública) e sem o devido registro que possibilidade a futura conferência de conteúdo por parte das instâncias superiores (válido também para o acordo de não persecução – art. 28 do CPP);
7. a proibição de que juízes e membros do Ministério Público recebam, a título de palestra em instituições privadas, valor superior a 50% do vencimento mensal (incluindo se despesas de transporte e acomodação);
8. a proibição de que juízes, membros do Ministério Público e policiais recebam qualquer forma direta ou indireta de subvenção de governo estrangeiro (na forma de bolsa de estudos, por exemplo);
9. a proibição para que membros do Ministério Público, policiais e juízes possam advogar, ainda que de maneira indireta, após exoneração, em causas nas quais atuaram (risco de captura – porta giratória);
10. a proibição (quarentena eleitoral) para que juízes, promotores e policiais assumam cargos públicos na Administração direta ou indireta, pelo período de dois anos após seu afastamento das funções e também possam se candidatar em eleições para cargos públicos neste mesmo período.
Em síntese, a reconstrução das estruturas fundamentais que permitem o funcionamento do sistema de justiça pressupõe a total transparência e liberdade de pensamento. As eleições somente são livres quando os agentes que atuam no sistema judicial permitem ao eleitor informação fidedigna, liberdade total de escolha e proteção contra o abuso do poder econômico.
O espaço reservado ao Poder Judiciário deve ser marcado pela autocontenção e modéstia judicial, na medida em que seus membros gozam do atributo constitucional da vitaliciedade (os governantes vão, mas os juízes do Supremo ficam). O ativismo judicial deve ser reservado para momentos absolutamente excepcionais e sempre em favor de minorias não representadas no Parlamento.
A academia e a ciência jurídica – especialmente o Direito Constitucional – têm o dever de participar deste debate que se dá a partir de pressupostos teóricos e também fáticos (impossível fazer ciência sem a análise dos fatos), sem os quais o país não conseguirá atingir o amadurecimento institucional presente em outras Nações.
EDUARDO APPIO ” JORNAL GGN” ( ( BRASIL)
[1] Ainda que nos Estados Unidos, bom que se frise, tenha prevalecido o conceito de Federação dotada de um poder central (a União), um conceito mais distante do contratualismo francês que Thomas Jefferson tanto apreciava.